Direito de edição: produtoras x diretores

Por Vanessa Lerner

Toda produtora cinematográfica já enfrentou ou em algum momento enfrentará a necessidade de edição final de um filme contra a vontade de seu diretor. Quando isso ocorre, vem a pergunta: quem tem a palavra final no processo de edição de uma obra cinematográfica, o diretor ou a produtora? A solução desse problema não é simples.

A Lei de Direitos Autorais Brasileira foi inspirada no sistema jurídico francês. Essa lei tem um enfoque que pode até ser considerado romântico, pois reconhece a existência de um laço moral, uma conexão íntima inquebrável entre autor e obra que nasce no momento de sua criação. A definição legal de obra intelectual demonstra esse laço: “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito […]”.

Essa conexão recebe a denominação de direito moral de autor e não deve ser confundida com o direito patrimonial de autor. O direito patrimonial do autor refere-se à faculdade do autor em autorizar, com exclusividade, o uso e a exploração de sua obra, que podem ser licenciados ou cedidos a qualquer momento. Já os direitos morais do autor são basicamente os mecanismos legais que têm a função de preservar aquele laço moral. Merece ser mencionado o direito “de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra”. Aí se inicia a confusão! Se levada ao pé da letra, a Lei de Direitos Autorais prevê que todo e qualquer direito moral de autor é irrenunciável e indisponível, ou seja, o autor não pode abrir mão dessas faculdades legais.

Pela lei brasileira, são considerados autores de uma obra audiovisual o autor do roteiro e o diretor. Isso significa que o diretor de uma obra cinematográfica é considerado por essa lei o autor de uma obra intelectual, intitulado à proteção autoral de sua obra no nível patrimonial e moral.Por sua vez, os produtores do filme não são totalmente destituídos de proteção. Devido à natureza de seu trabalho, ao invés de serem protegidos pela lei autoral, eles desfrutam da proteção do direito civil contratual. Usualmente a produtora de uma obra cinematográfica é responsável por toda e qualquer etapa administrativa de viabilização de um filme, desde a compra de direitos do roteiro à contratação do diretor, pagamento de todos os integrantes da produção e até posterior distribuição do filme em cinemas e locadoras. Dessa maneira, é a produtora que assume risco econômico e jurídico da obra cinematográfica, na medida que capta e investe, em nome próprio, recursos para sua consecução e contrata, em nome próprio, inúmeros fornecedores e prestadores dos serviços necessários.

Estabelecido o papel e direitos dessas duas figuras da produção cinematográfica, alguns podem achar que já têm a resposta à nossa questão inicial.O diretor é o efetivo autor da obra cinematográfica, titular do direito moral de autor de se opor a qualquer modificação da obra que considere prejudicial à sua honra e reputação. O produtor tem interesse comercial no sucesso da obra, já que assumiu compromissos com terceiros e efetivamente incorreu em todo e qualquer risco econômico e jurídico da mesma.

Além disso, entre os diretores e as produtoras existe um contrato de prestação de serviços, que estabelece, entre outras obrigações, o próprio dever de dirigir as obras cinematográficas de acordo com o roteiro, e também a cessão dos direitos patrimoniais do diretor sobre a obra cinematográfica. Nesse contrato, devido à necessidade da produtora de ter um produto final satisfatório que forneça o retorno financeiro almejado, é comum prever que o diretor autorize a produtora a efetuar qualquer edição e corte que julgue necessário e, caso qualquer conflito entre ambos se instaure durante o processo de edição, caberá à produtora o direito de decisão final.

Assim, caberá ao produtor a palavra final na edição de um filme, já que o próprio diretor concordou com tal afirmação ao assinar o seu contrato de prestação de serviços?Devemos lembrar que a Lei de Direitos Autorais Brasileira estabelece que os direitos morais de autor são irrenunciáveis e indisponíveis, ou seja, independentemente do que esteja escrito no contrato, o diretor ainda preserva o seu direito de se opor a qualquer modificação da obra que considere atentar contra a sua honra e reputação.

Isso não significa que o contrato de nada vale. Ao concordar, por escrito, que respeitará o roteiro e concederá à produtora o direito de edição final da obra, o diretor estabeleceu com a produtora um dever bilateral de agir sempre com boa-fé . Por esse motivo, os dois cidadãos têm o dever de não prejudicar um ao outro, seja no âmbito pessoal ou financeiro, e justificar a sua conduta sempre que a outra parte julgue-se prejudicada.

Apesar de ainda deter os direitos morais de autor, o livre-arbítrio para utilização desse direito é relativamente limitado. Caso o diretor se oponha a qualquer modificação imposta pela produtora, deverá justificar a sua conduta e comprovar que de fato essa modificação causará dano à obra ou à sua reputação e honra, se não, a injustificada irresignação do diretor poderá ser interpretada como violação de dever contratual que ensejará indenização à produtora.

A complexidade dos direitos em análise dificulta a resposta à nossa pergunta que inicialmente parecia muito simples. Não obstante, uma conclusão pode ser tirada de tudo isso: a nossa legislação autoral não regula de forma satisfatória a proteção autoral das obras cinematográficas no Brasil.

 

Vanessa Lerner é advogada do escritório Cesnik, Quintino & Salinas Advogados.

2 thoughts on “Direito de edição: produtoras x diretores

  • 12 de dezembro de 2014 em 00:44
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    O texto sobre os direitos autorais é bastante didático, simples e esclarecedor. Gostei muito da forma como os direitos morais e patrimoniais foram colocados separadamente mostrando a real importância dos dois direitos.

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  • 1 de outubro de 2017 em 11:09
    Permalink

    Adorei o texto, a linguagem simples, mas esclarecedoras.
    Sou roteirista e gostaria de conhecer a relação jurídica entre produtora e roteirista.
    Obrigado

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