Do cinema de ego ao cinema da briga de egos

Já virou consenso dizer que o problema do cinema brasileiro atual é o roteiro. Muitos, no entanto, confundem isso com a ausência de roteiristas. Essa explicação é simplória. Basta ver que, recentemente, muitos dos roteiristas de cinema estão migrando para a televisão, que tem um histórico de entender a importância do roteiro. O fato é que o produtor de cinema brasileiro já entendeu a importância do roteiro, mas não entendeu a importância do roteirista. Se quisermos bons roteiros temos que discutir como acontece o desenvolvimento de um filme e valorizar o autor-roteirista.

O principal problema é a falta de investimento em desenvolvimento. A Ancine pede roteiro pronto condenando o roteirista a escrever no risco. Temos que financiar roteiro e esse é, entre todos os setores da cadeia, o que mais necessita do investimento direto do estado. A captação de recursos até pode financiar a produção de um filme, mas não funciona para financiar um roteiro. Afinal, uma empresa não vai dar dinheiro para algo que ela não tem certeza que vai ser produzido. O estado tem que financiar roteiro com a consciência de que é uma atividade de alto risco. A cada sete roteiros que os americanos contratam apenas um é produzido. Isso é normal e eles têm a consciência de que “perder roteiros” é uma forma de diminuir o risco do negócio. Financiar roteiros é igual financiar pesquisa e inovação: você financia um monte de gente e, de vez em quando, registra algumas patentes. Mas, às vezes, uma única patente gera muito lucro.

Além disso, os processos têm sido muito confusos. Quem não é da área de cinema e vê um longa com roteiro ruim, mas ruim mesmo, aqueles ruins inacreditáveis, deve se perguntar: como chegou nisso? Ninguém leu o roteiro? Será que todo mundo é burro nesse filme? Não é bem isso.

Muitos pensam que o problema ocorre pois o diretor é um autor com poder absoluto e ninguém comentou. Isso acontece, sim. Mas cada vez menos. Na maioria dos casos o roteiro ficou ruim pelo motivo contrário: pois faltou autor. Muita gente palpitou, o roteiro foi para todo lado e perdeu a coesão.

Os roteiros ruins do cinema brasileiro atual são resultados de processos caóticos e sem liderança. Saímos de um cinema feito pelo ego, para um cinema feito pela briga de egos. Estamos num momento aonde os produtores ganharam alguma força em relação aos diretores. Isso poderia ser bom, mas nem sempre funciona. Há casos onde o produtor contrata o roteirista para se contrapor ao diretor. O que era para ser uma equipe criativa, vira um conflito político de baixo nível. E nada pior que fazer política na criação. Existe ainda o desconhecimento e a insegurança dos produtores que mandam o roteiro para qualquer pessoa comentar. Por fim, ainda tem a distribuidora, que no Brasil ainda tem pouco preparo para participar do processo de desenvolvimento. Quantos profissionais de roteiro são contratados pelas distribuidoras? Praticamente nenhum. Acho ótimo a distribuidora participar, mas tem que participar de forma profissional.

Um criador pode e deve ouvir o produtor/distribuidor. Mas criação artística não é um bom lugar para fazer “política” de consenso. Arte não é como um projeto de lei do Congresso, que naturalmente vai ter emendas. O trabalho que fiz para a Fox (“9MM”) foi um processo que considero bem sucedido de diálogo entre roteirista, produtor e emissora. Foi interessante ouvir os comentários dos produtores e da emissora e mudar o roteiro a partir disso. Teve casos em que uma única ideia me obrigou a reescrever o roteiro de um episódio completo. E para inserir uma ideia pontual, outras boas ideias são perdidas. No caso ficou melhor e valeu o trabalho. Mas é importante que os produtores tenham consciência da responsabilidade de intervir num roteiro e percebam que uma nova ideia obriga a perder outras boas. E que existe também questões de prazo de entrega do roteiro, renumeração e outras envolvidas. Se mudar mais ou menos fica uma merda. Tem que mudar até o fim. Por isso, os comentários tem que ser responsáveis.

O desconhecimento do processo tem levado a algo curioso: há muitos filmes em que o primeiro tratamento não é o ideal, mas o segundo fica ainda pior. E vai piorando gradativamente.

Uma vez um importante diretor brasileiro me convidou para dar aula de roteiro em sua produtora. “Pois faltam roteiristas no Brasil”, ele disse. Ao invés de formar novos roteiristas, eu propus dar aula para os produtores e diretores. Para eles qualificarem seus comentários. O que falta no Brasil é que todos os setores da indústria entendam mais de roteiro.

E falta a coragem de dar mais poder aos roteiristas. Nenhuma produtora independente do Brasil entendeu a importância do roteirista tal como a Globo e as agências de publicidade, por exemplo, que entendem há anos. Está na hora de entender que a única forma de fazer bons roteiros é valorizar o autor-roteirista.

8 thoughts on “Do cinema de ego ao cinema da briga de egos

  • 11 de janeiro de 2012 em 19:46
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    Maravilhoso artigo, Newton! Valiosa contribuição para indústria cinematográfica Brasileira.

    Obrigada!

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  • 11 de janeiro de 2012 em 20:07
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    Então aí há duas questões (e duas pontas, e dois nós): o Estado e o, hum, Mercado.

    Então aqui vai uma idéiazinha pro Estado (mas que não é idéia-única, tá?): desenvolvidos os roteiros contemplados em editais (profissionais e estreantes), editam-se editais EXCLUSIVOS para a produção dos tais.

    E outra pro, hum, Mercado: contratem roteiristas já contemplados pelo, hum, Mercado ou reconhecidos pelos círculos oficiais, para desenvolverem, NÃO novos projetos, mas um mercado de roteiros de roteiristas NÃO contemplados pelo, hum, Mercado pi reconhecidos pelos círculos oficiais.

    Porque acredito sim, Newton, que ainda “faltam roteiristas no Brasil”. Mas o que falta é, antes, criar-se uma mediana “massa crítica” (leia-se crítica no sentido de crise, ou daquilo da quantidade gerando qualidade) de gente e de coisas do roteiro medianamente sustentadas como sustento propriamente dito(*) e como cultura. E aí sim acredito que poderemos esperar o despontar de grandes roteiros (ou no mínimo como eles deveriam ser) e de uma geração espontânea de novas, hum, gerações de roteiristas.

    Porque ainda acredito, a despeito do meu cristianismo enrustido, que quanto mais (e põe mais, muito mais nisso) egos entrarem nessa briga de egos, menor será a força deles em “politizar” onde não se deve. (Aliás, mercado que é genuinamente mercado… sabe muito bem disso.)

    (*) Meu, e nem precisa desembolsar o que dita a “tabela”. E se não quiserem sustentar o cara, solta uma grana suficiente pra adquirir certos “direitos”, o suficiente pra liberar o desapego do roteirista enredos antigos e a compulsão dele pra desenvolver projetos fresquinhos. Que roteirista que é roteirista tem uma baciada de idéia ou de argumento entuchado na gaveta, né?

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  • 11 de janeiro de 2012 em 21:04
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    Gostei muito do artigo, mas fico pensando um pouco a partir da minha ótica. Se eu quero ser roteirista e se um roteiro meu vai ser transformado em filme e, no andar da carruagem a história muda o rumo de tal maneira que ele fica como se fosse um tiroteio no meio da Av. Paulista, eu perderia o amor por ele, pois a minha ideia original já mudou tanto pela “briga de egos” que eu já nem reconheço mais ela. Eu não pertenço a nenhuma produtora e, sim tenho muitas ideias guardadas na gaveta, esperando virarem filmes, mas se vem alguém e muda tudo, então ele que escreva o roteiro dele. Gosto muito de escrever roteiros e até aceito pitacos nas minhas histórias, mas só isso, opiniões que podem ou não serem aceitas. Obrigado pelo lindo artigo.

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  • 12 de janeiro de 2012 em 17:39
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    O Estado tem que reslver tudo! O Estado-Deus! É preciso que o Estado garanta a visibilidade do filme nos cinemas, dvd, tv. A TV praticamente não exibe nossa produção. Quando vamos produzir filmes que o povo quer ver? Quem queer ser atour deve escrever um livro, não fazer um filme… Um Zé

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  • 13 de janeiro de 2012 em 21:43
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    Faltam roteiristas e não se entende da importância de roteiros no Brasil porque no Brasil não se lê. Livros são artigos de luxo. Roteiro e literatura caminham lado a lado.

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  • 13 de janeiro de 2012 em 22:06
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    “A Ancine pede roteiro pronto condenando o roteirista a escrever no risco. ” Isto vale para todos, não apenas para a Ancine, concordam? Esão rarríssimos editais que tem pelo Brasil, sem falar que quando sabemos, já estão finalizando…
    Parabéns pelo artigo. Muito bom!

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  • 20 de janeiro de 2012 em 17:08
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    apesar de nao tender nada de roteiro mas percebi de cara a importancia desse profissiopnal para arealizaçao de um fime .espero com o tempo eu ate possa entender melhor e participar de trabalho enquanto isso desejo que seja dado ao roterista o valor que lhe é devido

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  • 7 de fevereiro de 2012 em 20:27
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    O EgO DO newton com certeza é enorme. Eu sei que você é da área mais mesmo assim afirmo que temos poucos roteristas, MAIS A QUALIDADE existe e se “Os roteiros ruins do cinema brasileiro atual são resultados de processos caóticos e sem liderança” isso envolve um sistema fílmico que envolve somente uma produção não quer dizer que seja o todo. Você mesmo cita que o roteiro que você fez 9mm para FOX, foi um bom processo de diálogo, não generalize Newton. Mesmo com poucos roteristas conseguimos produzir, lógico que temos que aumentar os profissionais mais o cinema brasileiro não deixa de ter qualidade por causa desta insuficiência.

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