TV da sociedade

O jornalista Nelson Breve, presidente da Empresa Brasil de Comunicação – EBC, operadora da TV Brasil, afirmou que a implementação da TV digital proporcionará aos canais do campo público um “novo patamar de audiência”. A declaração foi feita, no dia 2 de junho, à Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado, em audiência sobre a transição do sistema analógico para o digital na TV pública. A instalação do sinal digital em todas as emissoras e aparelhos receptores e em toda a geografia do país está prevista para 2019 ou 2020 e é fácil supor que o presidente da EBC foi ao Senado solicitar maior celeridade no processo de “universalização do sinal digital”.

A TV Brasil enfrenta carências técnicas desde sua fundação, na verdade, carências seríssimas se levarmos em conta seu projeto original de ser vanguarda nesse aspecto, principalmente, no que se refere à interatividade. Breve afirmou que, quando um dos diversos problemas de qualidade de sinal é resolvido, a audiência da TV Brasil “aumenta e muito”. Explicou que a boa qualidade da imagem e som atrai telespectadores e esses telespectadores ficam ligados no canal devido à qualidade de seu conteúdo. Disse que, quando a digitalização for viabilizada, a TV Brasil estará disputando “a quarta posição entre as emissoras de maior audiência na televisão”.

Interatividade

O dirigente da TV Brasil tem razão ao pressionar o Congresso para que as deficiências tecnológicas do canal sejam superadas. Espero que, nessa superação, esteja incluído o canal de retorno, dispositivo que permite a interatividade e que não está nos planos do governo no que se refere à distribuição de conversores para 14 milhões de famílias do Bolsa Família. A essa altura do século XXI, uma TV pública não interativa nem merece essa designação. Um esforço para chegar ao ponto de partida tecnológico do projeto (a interatividade), depois de sete anos de existência da TV Brasil, é uma obrigação do seu presidente e dos dirigentes dos demais canais públicos (TV Cultura, MCE TV, Univesp TV, Rede Minas, TV Escola, canais educativos estaduais e municipais, canais comunitários).

Mas não é apenas a precariedade tecnológica que impede que a TV Brasil cumpra o seu papel de alternativa à TV comercial. A TV Brasil foi pensada e legalizada não apenas como um canal, mas também como paradigma federal de toda a atividade da TV pública brasileira, no que tange à qualidade e diferenciação artística, inovação de modelos de negócios, comportamento editorial e gerencial. Para alcançar na prática o status paradigmático, terá de resolver, além da questão tecnológica, a questão administrativa (número excessivo de funcionários, incapacidade para aplicar o orçamento e consequente devolução de recursos aos cofres públicos e outros obstáculos corporativos).

Independência

Essencialmente, terá de sedimentar sua condição de canal da sociedade, com nítida independência e distância política dos governos e dos interesses econômico-empresariais. Em outras palavras, que tenha um Conselho Curador com essas características de autonomia, escolhido diretamente pela sociedade, o que ainda não aconteceu desde sua inauguração. Lembrando o entendimento de Mário Covas, quando governador de São Paulo: “na TV pública, o governo paga, mas não manda”.

As TVs públicas têm sempre uma vinculação com algum órgão governamental, para tratar de assuntos referentes a recursos. A TV Brasil está vinculada à Secretaria de Comunicação Social – Secom, que cuida da propaganda do governo e da boa imagem do presidente da República. Ou seja, uma contradição constrangedora, um contrassenso. Uma providência saneadora, por exemplo, seria vinculá-la ao Ministério da Cultura ou ao Ministério da Educação, como na maioria dos países. Ou mesmo credenciá-la como uma fundação, como é o caso da TV Cultura de São Paulo.

Arte

E que seja, acho que é o mais importante, uma emissora esteticamente avançada, ousada, corajosa, inventiva, divergente, instigante, experimental e envolvente – o que não deve ser difícil para bons artistas, jornalistas e técnicos trabalhando sem pressões políticas ou comerciais, compromissados apenas com a realidade e o imaginário da população (e por isso a interatividade plena é a base da TV pública ideal, um espaço de diálogo permanente). A TV Brasil tem alguns bons programas, tem novidades como o “Arte do Artista”, de Aderbal Freire-Filho, mas são exceções e não uma atuação editorial abrangente, não é um firme propósito de ser uma opção de vanguarda, um percurso diferenciado, uma linguagem própria.

Plateia se consegue com linguagem, com o jeito de dizer e de contar, com a narrativa certa para quem está vendo-ouvindo-participando. Que o sentido de audiência esteja focado no espectador cidadão e não no espectador consumista. Uma TV inteligente não apenas no sentido webcontemporâneo, mas principalmente no sentido humano, no sentido comum do pensar, discutir, entender, criar. Em suma, que seja o que prometeu ser: uma TV completamente diferenciada dos modelos explorados pela TV comercial e da chapa-branca da TV estatal, construindo a dessemelhança e o equilíbrio entre os três sistemas televisivos — o do Estado, o do comércio e o da cidadania.

Creio que, se chegarmos a isso (que não é um delírio, é só uma definição de TV pública), não só a TV Brasil, mas todo o campo da TV pública terá a audiência que está buscando. E nós, as individualidades de que são feitas as multidões de multidões, teremos uma opção tentadora na oferta cada vez maior de canais, na multiplicação acelerada de conteúdos à nossa disposição.

 

Por Orlando Senna, escritor e cineasta

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