Formação de público para o cinema nacional

Enquanto o cinema brasileiro aumenta a produção a cada ano, e se faz necessários investimento público, patrocínio, formação profissional e qualidade artística, outra questão importante, e que também requer bastante atenção, é a formação de público. As universidades têm tido um papel importante nesta área, assim como os cineclubes e ações institucionais da Ancine, Secretaria do Audiovisual, ProAC e Spcine, que promovem o acesso dos jovens ao cinema brasileiro. “A discussão sobre formação de público ainda está dando seus primeiros passos no Brasil. Historicamente, pouco se produziu em termos de estudo de audiência, economia do audiovisual, recepção, estratégias de lançamento, ocupação de salas e, é claro, isso tudo se traduz diretamente na ausência do debate sobre formação de público”, afirma Luciana Rodrigues, presidente do Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual (Forcine).

Segundo Luciana, isso se deve a diversos fatores, entre eles, uma “cultura de informalidade” que aos poucos vem mudando. “Como ainda não conseguimos construir um mercado nem uma indústria cinematográfica sólida, não nos preocupamos em nos organizarmos no sentido de entender o que são os públicos brasileiros e como chegar até eles”, explica. Felizmente, isso parece estar mudando, segundo ela, graças à criação da Ancine e às políticas públicas nos últimos anos, à produção de estudos pelo Observatório do Cinema e Audiovisual e à própria cota de produção nos canais de acesso condicionado.

Dentro das universidades, diz Luciana, essas preocupações começam a aparecer ainda muito timidamente. “O ideal seria que isso fosse objeto de estudos sistemáticos e mais profundos, inclusive, em forma de especializações em áreas multidisciplinares, como economia, direito, publicidade, engenharia de produção”, orienta.

Formação é aprovada por lei

Em 2014, foi aprovada a Lei 13.006, de autoria do senador Cristovam Buarque, que acrescenta à Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional um dispositivo que torna a exibição de filmes de produção brasileira obrigatória nas escolas de ensino básico. A partir daí, o Ministério da Cultura organizou um grupo de trabalho, com a Ancine e diversas associações da sociedade civil, para pensar qual a melhor forma e o melhor caminho para regulamentar esse dispositivo. “É preciso pensar nos conteúdos que serão disponibilizados, para que sejam conteúdos adequados, que atendam às grades curriculares. Essas obras devem se tornar aliadas do professor dentro da sala de aula. Para a Ancine, esse é um viés importante e necessário para a formação de plateia”, afirma a diretora da Agência Nacional do Cinema, Rosana Alcântara.

Do ponto de vista educacional, formar o público significa, por exemplo, dar condições justamente para os estudantes conhecerem as produções nacionais, de forma a apreciá-las e estudá-las como linguagem, para terem condições de compreendê-las. “Nossos jovens não se reconhecem nas nossas obras”, alerta Luciana. Nesse sentido, ressalta: o uso das produções nacionais nas escolas deve estar além de simplesmente exibi-las. “Devemos ter disciplinas que estudem o audiovisual, que ajudem os estudantes a entender seus mecanismos, a história do nosso cinema, tal como ocorre com a literatura. Compreender nosso audiovisual é um caminho importante para apreciá-lo, para formar público estável e também ocupar cada vez mais outras janelas, pois nossos jovens estão muito mais familiarizados com filmes e seriados na rede do que nas salas de exibição”, diz. Outra questão essencial é ter diversidade, com obras que dialoguem com diferentes gerações e gêneros.

Rosana Alcântara, diretora da Ancine, defende um cinema com conteúdo diversificado para atender as diferentes demandas de público. © Rafael Castilho

Rosana concorda. Ainda que o Brasil tenha conseguido levar milhões de espectadores às salas de cinema para assistir a produções nacionais nos últimos anos, o público desses filmes é, na sua maioria, a juventude que presencia essa linguagem na internet, na TV fechada e na TV aberta, e que prestigia essas obras também no cinema. “Precisamos ter mais filmes com diversidade de temas, de conteúdo e de formato que disputem esse público nas salas de cinema. Nesse sentido, a manutenção da Cota de Tela se apresenta como um dos importantes mecanismos para buscarmos essa diversidade”, defende a diretora da Ancine.

Incentivo à circulação para além da distribuição comercial

Para além do circuito comercial, a intensificação de mostras e festivais demonstra que existe um aquecimento da produção audiovisual que precisa circular, ser vista e encontrar o seu público. Nesse sentido, Rosana afirma que a Secretaria do Audiovisual e a Ancine vêm trabalhando mecanismos de fortalecimento de circuitos não comerciais. Outro ponto relevante são as obras que começam pequenas, mas conseguem fidelização do público e fazem com que a distribuição aumente. “Nos últimos dois anos, vimos isso acontecer com ‘Hoje Eu Quero Voltar Sozinho’, um filme que começou pequeno e que, graças à mídia, à internet e ao boca a boca, foi ampliando seu circuito. E esse ano aconteceu novamente com ‘Que Horas Ela Volta?’, que começou com uma perspectiva e, rapidamente, após o primeiro final de semana, teve sua distribuição ampliada a partir do apelo do filme e da forma como foi trabalhado pelas mídias alternativas e recebido pelo público.”

Há outros exemplos, de produtores experimentando novas formas de distribuição com o objetivo primeiro de ganhar mais público. Lívia Almendary, da Taturana Mobilização Social, cita o caso de Rodrigo Siqueira, que em 2010 lançou “Terra Deu, Terra Come”, simultaneamente, nos cinemas e em cineclubes do Brasil inteiro, e o mais recente “Quase Samba”, de Ricardo Targino, que teve distribuição comercial da Vitrine Filmes, mas também contou com um circuito popular simultâneo aos cinemas, o que praticamente duplicou seu público. Segundo ela, os cinemas também estão mais preocupados em criar alternativas, como debates e outras atividades especiais dentro das próprias salas, para atrair mais público.

Na esfera pública, há iniciativas como a da Spcine, que oferece editais para estimular o lançamento de filmes produzidos na cidade e está transformando equipamentos públicos como CEUs e alguns centros culturais em cinemas, com programação voltada para filmes brasileiros. Além disso, este ano, a instituição realizou, junto com a Revista de CINEMA, o programa “Encontro com Cineastas”, que promoveu a exibição de filmes com a participação de seus diretores, nas bibliotecas públicas municipais de São Paulo, especialmente, nas periferias da cidade. Foi possível levar cineastas como Tata Amaral, Beto Brant, Jeferson De e Caru Alves de Souza, que dialogaram com os estudantes logo após a exibição de seus filmes. Para o Fundo Setorial do Audiovisual e o ProAC, os produtos audiovisuais devem ter estratégia de difusão e contrapartida social desde a fase de projeto, o que obriga os produtores a pensarem nessa questão desde o início.

“Os agentes da cadeia audiovisual podem usar todo esse potencial se debruçando sobre a difusão da obra que estão produzindo e como realizá-la desde a fase do projeto: incorporar a questão da distribuição e do alcance de público no próprio processo de produção, pensar a obra um pouco mais em função disso, garantir que mais adiante, quando finalizada, já possa contar um com caminho, uma estratégia, e que não esteja tão engessada nos caminhos tradicionais do mercado”, sugere Lívia.

Ações que levam os filmes até a sua plateia

A Taturana promove circuitos de difusão de filmes cujas exibições são seguidas de atividades e rodas de conversa com especialistas, sobre temas relevantes abordados pela obra, ou com a equipe do filme, que muitas vezes fala sobre os processos de produção e trabalho nesse meio. São sessões gratuitas e abertas ao público, que no conjunto têm como objetivo democratizar o acesso ao cinema brasileiro e, ao mesmo tempo, formar público pelo trabalho mais qualitativo de se discutir o material e inseri-lo em ambientes onde ele faz mais sentido. “Acreditamos que gerar essa relação qualitativa faz com que o filme permaneça vivo, que as pessoas se apropriem dele e se tornem o que chamamos de ‘embaixadores’ de uma obra: pessoas que se engajam em capilarizar o alcance de um filme por interesse territorial e/ou de sua área de atuação”, explica Lívia.

O aumento de poder aquisitivo das classes C e D levou novos contingentes de consumidores de cinema, mas concentrados em entretenimento americano e comédias brasileiras. Pouco ou quase nada se fez na base: escolas. É o que aponta o roteirista e diretor de cinema Luiz Bolognesi. “Ali, é preciso alfabetizar novos consumidores de cinema para narrativas heterogêneas, diferentes linguagens e cinema de reflexão. Aí, avançamos muito pouco.”

Desde 1996, ao lado da também cineasta Laís Bodanzky, Bolognesi coordenou os projetos de cinema itinerante e oficinas audiovisuais Cine Mambembe e Cine Tela Brasil, promovendo o encontro entre cinema e educação em comunidades de baixa renda. Embora no âmbito da Ancine haja um amplo debate sobre o tema, Bolognesi acredita que faltam políticas públicas audiovisuais em educação: formação de professores, disponibilização de conteúdos e mesmo cursos de ensino médio com viés de capacitação. “O audiovisual é o principal meio de comunicação do planeta, predominante em todas as telas e formatos. Como é possível que esta matéria fundamental fique completamente fora da escola? A discussão está muita circunscrita ao viés do mercado. É pouco”, alerta.

Para Luciana, falta tratar de questões efetivamente culturais ao se debater cinema. “Formar um público não passa somente pelo número de pessoas que pagam para assistir a uma obra, mas naquelas que vão sentir que suas vidas se transformaram ao ver essas obras. Em quantos filmes recentes podemos identificar isso? Quantos conseguiram provocar reflexões como ‘Que Horas Ela Volta’? Esse é um tema que me preocupa muito. Se a lógica for só a da renda, estamos todos fadados ao fracasso.”

 

Por Mônica Herculano

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