Um país nostálgico

“Central do Brasil” (1998) é um dos filmes mais representativos do momento do cinema brasileiro conhecido como Retomada, na segunda metade da década 1990. Passados os anos de terra arrasada, durante o governo Collor (1990-92), quando a produção nacional minguou, a retomada deu início a um ciclo produtivo que se mantém até hoje e que tem nesse filme de Walter Salles a afirmação e o impulso necessários para que o tema cinema entrasse em voga.

Premiado no exterior (Urso de Ouro em Berlim), “Central do Brasil” trouxe à lembrança da crítica internacional os tempos em que os filmes do Cinema Novo eram objetos de culto e de intensa discussão. Salles, assim, recolocou o cinema brasileiro no mapa do cinema mundial. Com enorme fortuna crítica por aqui, assim como bem recebido pelo público, quase duas décadas depois, agora lançado em DVD pela Britz Filmes, eis uma boa ocasião para revê-lo, apreciar seus propósitos, seu legado e realçar questões que suscita.

Realizado num instante de otimismo com relação ao papel do cinema como retrato intimista de questões sociais, o filme de Salles seguiu caminho único, sendo indicado ao Oscar de melhor película estrangeira e perdendo apenas na cerimônia de entrega para o italiano “A Vida é Bela”, de Roberto Benigni. A perda do Oscar em si, para mim de somenos importância, projetou por meio de “Central do Brasil” o sentimento de orgulho com respeito a nosso cinema. Um orgulho que, guardado o lado passional, é importante quando se entende que estão em jogo as minudências de poder na política internacional de cinema, tanto quanto elementos que impulsionam uma filmografia na periferia do capitalismo.

Assim, além de seu valor intrínseco enquanto obra artística, “Central do Brasil” se insere e se beneficia de um instante preciso, um instante em que o cinema brasileiro carecia de uma obra referencial, aqui e algures. Sob esse aspecto, ao lado de “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, e “Tropa de Elite”, de José Padilha, creio que Salles realizou um filme emblemático e que permanecerá como objeto de discussão. Esse seu caso específico, porque traz à tona uma temática intimista, a procura do pai nordestino pelo filho, criança, perdido na metrópole urbana, a cidade do Rio de Janeiro. Conduzido por uma escrevente de cartas na central do Brasil, a saga da criança desvela os grandes contrastes sociais e as dimensões colossais do país que vivia euforia de consumo nos anos no plano real. Importante rever “Central do Brasil” sem perder de vista que ele está impregnado pela atmosfera dos anos de governo FHC.

A importância de Walter Salles para o cinema brasileiro em razão de feito “Central do Brasil” é inquestionável. O tema que aborda e as questões que trata nesse filme serviram de base para uma geração ávida para pegar a câmera e por o pé na estrada. Os filmes de Karim Aïnoz (“O Céu de Suely”, de 2006) e Marcelo Gomes (“Cinema, Aspirinas e Urubus”, de 2005), para ficar nestes nomes significados pós-retomada, revelam a força e a influência do que Salles fizera em “Central do Brasil”. Mas aqui cabe destacar que Salles espelha bem também a dificuldade no cinema brasileiro de construção de uma obra autoral que vá além de um filme referencial.

Com selo de apresentação garantido e devidamente reconhecido, a partir de seu filme seguinte, “Abril Despedaçado” (2001), os filmes de Salles não só não obtiveram a empatia do público como geram uma crítica morna. De fato, seu cinema posterior se revelou demasiadamente artificial, calculado, com elementos de realidade forçados, como se de algum modo não estivesse à vontade, ou com domínio da situação, da mise-en-scène. É o que acontece de modo acerbo em “Linha de Passe” (2008). Tudo que havia de vivaz, de pujante, de verdadeiro, de carga dramática nos sentimentos dos personagens de “Central do Brasil”, assim como na maneira sensível de focar o social, se dilui ao ponto de se tornar desnecessariamente burlesco.

Matizada a perda de vigor em sua obra posterior, creio estar fora de questão que ver “Central do Brasil” hoje é necessário. A busca do pai naquele momento, que remete simbolicamente à busca do país profundo, distante dos grandes centros urbanos, se confronta hoje com a realidade de um país cindido, um país em que, talvez, não haja espaço para dramas pessoais, para viagens interiores. Ao pai, ou ao país, procurado, hoje está em pauta a tensão com que vivem segmentos sociais que se integraram nessas duas décadas. Nesse sentido, não deixa de ser espantoso que o Brasil tenha se transformado tanto em tão pouco tempo e que rever “Central do Brasil” guarde certo ar de nostalgia.

 

Por Humberto Pereira da Silva, professor de ética e crítica de arte na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado)

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