A consagração de Kleber Mendonça

Classificado por bocas estrangeiras até de obra-prima, em sua passagem pelo Festival de Cannes, em disputa pela Palma de Ouro, “Aquarius”, do pernambucano Kleber Mendonça Filho, fez jus – no volume de elogios acumulado em sua passagem pela Europa – a uma aposta feita no fim do ano passado, pela revista “Cahiers du Cinéma”, quando incluiu esta produção brasileira de R$ 3 milhões entre os filmes mais esperados de 2016. Mas não foi só o fato de ter causado boas impressões estéticas acerca do cinema feito por estas bandas que tornou o longa-metragem, estrelado por Sonia Braga, um acontecimento na Croisette.

No dia de sua projeção, o cineasta e sua equipe passaram pelo tapete vermelho de Cannes carregando cartazes onde se lia “Há um golpe de Estado acontecendo no Brasil”. Esse protesto contagiou a imprensa internacional que, apesar de ter muito a dizer (de bom) sobre o filme, gastou muita “centimetragem” analisando a situação política nacional. O novo governo e até a ala de oposição da mídia questionou a atitude de Kleber, pelo fato de ele ter sido designado pelo Estado como programador da sala de cinema da Fundação Joaquim Nabuco. A polêmica correu continentes. “‘Aquarius’ é um filme sobre resistência”, definiu (bem) Kleber por lá.

Com uma estrutura narrativa que lembra a estética de realismo seco do cinema americano da década de 1970, sobretudo o filme “A Conversação”, que rendeu a Palma dourada a Francis Ford Coppola em 1974, “Aquarius” explora o clima de paranoia em torno de Clara (Sonia), uma jornalista sexagenária cujo prédio onde mora está em negociação para ser vendido – o que não vai acontecer se depender da vontade dela. Guiado pela tensão, o longa confia ao ator e apresentador do Canal Brasil Humberto Carrão um posto de vilão – um vilão muito discreto, mas perigoso. Ele é o herdeiro da construtora que quer comprar o prédio de Clara, usando uma série de artimanhas nada legais para fazer com que ela saia. A peleja dela para ficar é narrada em paralelo a sua rotina afetiva, com seus filhos, seus netos, seus discos e seus ensaios amorosos. Tudo isso é embalado por uma trilha sonora que vai de Roberto Carlos a Queen, passando por Alcione, e que virou assunto no festival francês.

Kleber Mendonça e equipe do filme protestam na entrada do Palais des Festivals, em Cannes, onde o filme “Aquarius” foi aplaudido de pé. © Anna Luiza Muller

“Em Cannes, os filmes viram bactérias, ou seja, contagiam olhares, gerando debate”, diz o cineasta, consagrado antes por “O Som ao Redor” (2012), que totalizou 29 prêmios mundo afora, a começar pela láurea da Fipresci no Festival de Roterdã.

Na entrevista a seguir, realizada em Cannes e exclusiva para a Revista de CINEMA, o cineasta fala sobre suas opções narrativas, sobre gestos políticos e sobre o lugar da memória na arte de filmar.

 

Revista de CINEMA – Primeiro filme brasileiro desta década a concorrer à Palma de Ouro em Cannes, “Aquarius” assume uma postura corajosa ao adotar como protagonista alguém que vem da classe média alta – segmento muitas vezes hostilizado na cinematografia nacional. O que te interessou mais nesse segmento social?

Kleber Mendonça – Pensei muito sobre isso na escrita do roteiro. A história de “Aquarius” é clássica e já estava no cinema e na literatura antes de nós. É a história de alguém que está sendo importunado ou pressionado por alguém que tem um poder maior do que o dela. Mas, para mim, estava claro que Clara não seria uma pobre coitada, nem que a casa dela estaria caindo aos pedaços. O apartamento dela é muito simples, mas muito confortável. Tenho tido um retorno com o filme em que as pessoas falam: “É um lugar que dá vontade de morar”. Ao mesmo tempo, era importante que Clara fosse uma burguesa, a cliente que essa construtora gostaria de ter. Mas ela não concorda com o que estão tentando fazer com ela. E, para mim, isso é mais interessante do que se ela fosse pobre, se não tivesse dinheiro e com tudo atrasado. Se fosse assim, cairia num modelo muito usado em muitas histórias, de desnível de força. Quis fazer um confronto entre iguais. Mesmo ela não sendo uma empresária, como o pessoal da construtora é, ela está no mesmo nível social e econômico que eles. Isso se mostrava mais interessante para mim.

O que te levou a escolher Sonia Braga, que saiu ovacionada de Cannes?

Antes de tudo, o fato de que ela é o que a gente chamaria de uma “legítima atriz de cinema”, com uma mitologia em torno de si dada pelas telas de cinema, sem contar seu imenso talento. Sonia Braga fez parte da minha vida ao longo de décadas sem que nos conhecêssemos, a partir dos filmes que estrelou. Nosso primeiro encontro foi rápido: a gente se falou por volta de junho, julho de 2015, pela primeira vez, e em agosto já estávamos filmando. E foi lindo tudo.

Sonia Braga, como Clara, diante do edifício Aquarius, que dá título ao filme e o tema para exploração social do Brasil contemporâneo. © Victor Jucá

Houve um índice altíssimo de aprovação a “Aquarius” entre os críticos em Cannes, mas a passagem do filme por lá também causou mobilização para além de seu tônus estético, pelo protesto que você e sua equipe fizeram com cartazes denunciando um golpe de Estado no Brasil. Como esse protesto foi organizado?

O protesto em Cannes foi muito simples e muito democrático sobre um momento muito particular – eu diria até muito estranho – pelo qual o Brasil está passando politicamente. E não havia outra opção naquele momento, se não a gente se pronunciar e tomar uma posição. Era uma forma de deixar claro que não é correto e essa não era apenas uma opção minha, mas de toda equipe e de todo o elenco em Cannes, e nós vimos que ali seria uma boa oportunidade de deixar claro que algo está errado no Brasil hoje. O país que retomou uma democracia nos últimos momentos dos anos 1980, agora passa por um vexame, não só internamente, entre nós brasileiros, mas aos olhos do exterior, comportando-se como uma democracia extremamente frágil, débil e imatura. Para nós, não existia outra opção que não nos manifestarmos de maneira muito simples e focada, sem trazer desrespeito ao festival e à organização, usando folhas de papel A4 escritas com fatos, não com opiniões.

Como você avalia o saldo desses protestos, sobretudo, depois que a sua condição como curador da sala de cinema da Fundação Joaquim Nabuco foi posta em xeque, por consistir em um cargo de confiança ligado ao Estado?

Sobre a Fundação ainda é cedo para dizer… Sobre o protesto… Logo ao fim da projeção em Cannes, eu vi que essa manifestação havia repercutido, de uma maneira até maior do que a gente havia pensado. A gente tocou num nervo. E esse nervo está vivo. Acho que isso diz muita coisa sobre o poder das verdades, principalmente, quando elas são apresentadas sem o filtro da grande mídia brasileira. Ao usar a mídia internacional para isso, esse gesto terminou tendo um impacto muito grande em Cannes, cujo festival concentra milhares de jornalistas. Lá, estão milhares de câmeras, quase todas elas com lentes muito potentes. Se a gente estivesse simplesmente defendendo algo sem sentido, não haveria a repercussão que teve. É importante lembrar o que querem que seja esquecido. Este é um dos papéis da arte. E o artista é alguém que, geralmente, olha para onde a maior parte das pessoas não está olhando. Aí, quando você enquadra este lugar, ou canta este lugar, as pessoas percebem o que você está falando e tendem a entender o que está dizendo. Estamos diante um Brasil que precisa de apoio.

© Festival de Cannes

Ali, em Cannes, foi um gesto de autodefesa, de alguém que entende e aceita o processo democrático… Democracia, nesse caso, no aspecto de o povo escolher e defender seus governantes. Mas, como eu não sou inocente, entendo que a sociedade brasileira tem um problema sério com a ideia de Democracia. Somos uma sociedade muito desigual, na qual a Justiça é seletiva, na qual a população negra é massacrada. Isso, para citar um único exemplo, é aceito com uma certa naturalidade por uma parte da sociedade brasileira. Só isso já seria suficiente para mostrar o quanto ela é problemática. Mas jogar no lixo a parte que a gente tinha de representatividade democrática… jogar no lixo resultados de eleição por uma fome alucinada de Poder e entortar todas as leis para atender ao que uma determinada oposição quer… isso está muito errado. Estamos falando no fim do primeiro semestre de 2016 e temos um governo que se colocou lá – o Governo Temer – e que tem feito uma trapalhada atrás da outra, num nível que a gente não via talvez desde o período militar. Nosso protesto tocou apenas porque a gente falou a verdade.

Uma trilha sonora que vai de Taiguara a Queen, passando por Roberto Carlos e Alcione, gera curiosidade sensorial só pelo ecletismo. O quanto essa trilha é uma tradução da própria Clara?

Minha personagem é uma colecionadora. Na vida, se você tem uma coleção, seja lá do quê, haverá espaço nesse coletivo de guardados para coisas bem distintas dentro de um mesmo universo. No filme, fica estabelecido por ações de Clara, o número de canções, de cantores, de grupos muito variados de que ela gosta, pois essas escolhas dela são onipresentes e colocadas por ela mesma, em seu aparelho de som, de uma maneira quase cínica para os demais personagens. Ela é uma DJ narrativa, alguém que coloca músicas para tocar, dando-me a oportunidade de tornar a trilha algo orgânico. Mas não queria adicionar as músicas na mixagem. Gravamos muitas músicas ao vivo, com microfone na locação, apontado para sua vitrola, de modo a valorizar os ruídos, o atrito nos sulcos dos discos. Não queria uma sonoridade limpa.

Existem algumas conexões entre “Aquarius” e “O Som ao Redor” que parecem tornar os dois filmes ainda mais irmãos, como a presença de uma festa de aniversário em ambos, com a mesma música. Era consciente?

Em muitos pontos sim, pelo que a leitura do roteiro me comprova. Há uma personagem aniversariante no início de “Aquarius”, a Tia Lúcia, cujas memórias já haviam sido escritas para “O Som ao Redor”. Mas lá, na hora em que eu filmei esse meu primeiro longa, acabei substituindo a personagem, a quem pude reaproveitar aqui. Pois as conexões existem.

Kleber Mendonça e o diretor de fotografia Pedro Sotero, durante as filmagens de “Aquarius”. © Victor Jucá

Você deu um indício em algumas entrevistas de que “Aquarius” é “um filme sobre arquivo” e também um “filme sobre viagem no tempo”. Mas, na prática, o que tempo e espaço representam como parâmetro estético para este filme?

Como cinéfilo, como alguém que trabalha com a arte de filmar e a estuda há anos, eu vejo o cinema como uma máquina do tempo. As pessoas ficam sonhando ou teorizando sobre uma máquina do tempo, mas ela já existe. Ela é o próprio cinema, que permite que você volte ao passado. Às vezes, eu ligo no Canal Brasil e me deparo com algum filme brasileiro mais obscuro dos anos 1970, e, para mim, é um prazer grande não apenas descobrir aquele filme, como ver o Brasil da década de 1970. E isso vai desde a textura do som até o linguajar, passando por cabelos, pelos carros na rua… os táxis… a textura da imagem. Tudo isso se transforma num documento. É um documento muito particular sobre aquela época. Mesmo que nunca os realizadores tenham pensado neste sentido, por serem filmes muito despretensiosos, feitos sem grande ambição, mas está tudo lá, passados 40, 45 anos.

O filme é um documento, um registro de um momento, de uma época, de um jeito de falar. Penso muito nisso ao fazer um filme. Pensei nisso em “Aquarius”, que é um filme sobre memória, é um filme sobre arquivo. O próprio filme não diz que é sobre arquivo, mas, na minha cabeça, ele é. E aí tem vários elementos que funcionam como máquina do tempo. A ideia de viagem no tempo está muito presente no filme, mas não da maneira como o cinema de gênero tenha preparado a gente para ver. Eu até brinquei, em entrevistas em Cannes, dizendo que o filme não tem uma cabine telefônica fora do Brasil, como em “Doctor Who”, nem tem um DeLorean estacionado fora do prédio de Clara, como em “De Volta Para o Futuro”. Mas o próprio edifício – que tem mais ou menos a idade de Clara, por ser um projeto dos anos 1940, construído nos anos 1950 – é, mais ou menos, uma cápsula do tempo, sendo o último a ser construído naquele estilo. E isso também é fato, não é filme. É o último naquele estilo na cidade do Recife. E até tem uma personagem que tem a mesma idade do prédio e os dois estão ameaçados de extinção de maneiras diferentes.

O quanto essa opção em usar uma protagonista já na faixa dos 60 anos te ajuda em sua reflexão sobre memória?

O fato de ela ter 65 anos deixa claro que ela é alguém de uma idade mais madura. Seria alguém de 60 até 75 anos quando eu escrevi originalmente. E isso é um fato para a linha do tempo percorrida no filme. Se fosse alguém de 30 ou 35 anos, a linha do tempo seria obrigatoriamente menor, de menos alcance. Isso me dá a possibilidade de expandir as memórias dela, presentes nos primeiros 16 minutos do filme. Nos primeiros 16 minutos, onde existe uma festa, tem uma outra pessoa comemorando 70 anos. Isso joga a linha do tempo mais para trás ainda. Isso é verbalizado no filme, pois tem toda uma história por trás desta personagem, que nos leva ao início do século XX, a partir de um móvel, uma cômoda, que é personagem do filme e atravessa várias décadas. Todos esses elementos compõem essa ideia de cápsula do tempo. Todos nós somos viajantes do tempo de alguma maneira. Depois que eu tive filhos e passei dos 40, fiquei pensando muito como a gente atravessa várias fases e como acumula objetos, discos, livros, filmes. E a gente tem que entender como cada um lida com a passagem do tempo. Achei que fazer um filme sobre isso me deixaria totalmente em casa, porque o cinema é um instrumento do tempo incrível. Uma coisa que sempre me chamou atenção, mesmo sendo algo muito criticado, envolve a série “Star Wars”.

Que aspecto da franquia?

Me chama atenção o fato de George Lucas estar sempre modificando algo nos primeiros filmes da série “Guerra nas Estrelas”. Ele fez “Uma Nova Esperança”, em 1977; fez “O Império Contra-Ataca”, em 1980; fez “O Retorno de Jedi”, em 1983. E, diferentemente do que acontece lá fora em toda a maioria da indústria cinematográfica, ele ficou mudando esses longas ao longa do tempo. E essas alterações nesses filmes vão, exatamente, na direção contrária a isso que eu prego de o cinema ser um arquivo, um registro do tempo em que cada filme foi feito. E, quando ele altera os filmes, ele tenta, de alguma forma, fazer uma espécie de plástica. A plástica é uma estratégia estética para se comprar tempo… para se fugir do tempo… E, por mais que essa estratégia seja compreensível como vaidade, não há muito como se fugir do tempo. É uma coisa que eu também lembrei na preparação do meu filme. Quero que “Aquarius” preserve as características que tinha quando foi feito, em 2015, e quando foi finalizado, em 2016. Dentro dele, há todos os elementos de tempo: o passado, o presente e o futuro. E fico feliz pela forma como isso tem ganhado ressonância na primeira leva de reações ao filme, não só entre os observadores brasileiros, mas na imprensa internacional.

E qual seria a importância do espaço num filme que parece se desenhar a partir do corpo de sua protagonista?

Queria que o espectador desenhasse o espaço. Há uma referência, a partir do prédio, mas ela não é delimitadora, pois o “Aquarius”, o prédio, vira também uma sensação, uma presença, um personagem.

Quando você projetou “Recife Frio”, no Festival de Brasília, em 2009, seu discurso era de que aquele filme era um reflexo de “muita coisa equivocada” que estavam sendo perpetradas contra a sua cidade. O quanto Recife é personagem de “Aquarius”? 

É natural que a cidade faça parte dos filmes, porque é lá onde eu trabalho e, por isso, ao partir para escrever um roteiro, fico pensando nela ao escolher onde as cenas vão se passar. E, Recife, além de seu lado mundano, tem algo a mais que ganha uma ressignficação na tela do cinema. Fora isso, eu cresci com filmes de todos os lugares do mundo, menos do Recife. Até os filmes brasileiros se passavam em outros lugares, como o Rio de Janeiro e São Paulo. Nos últimos 15 anos, contudo, a minha cidade passou a ser filmada pelo cinema pernambucano e eu colaborei com a ideia de cidade que nosso Estado levou às telas.

Irandhir Santos, em cena de “Aquarius”, ao lado de Sonia Braga, que foi cotada para receber o prêmio de melhor atriz em Cannes. © Victor Jucá

Como é que você avalia a situação do cinema pernambucano hoje?

As reações ao cinema do Recife vêm sendo acima da média, como resposta a filmes muito distintos entre si, capazes de gerar debate. É comum vermos no país filmes que não acontecem, que passam despercebidos. Mas lá no Recife não tem sido assim. A produção local tem gerado boas discussões. Vivemos recentemente uma leva que incluiu “O Som ao Redor”, “Eles Voltam”, “Tatuagem”, “Ventos de Agosto”… São filmes muito bons, muito diferentes entre si e feitos por cineastas que têm liberdade para expressar o que pensam. Fico feliz em ver Pernambuco no cinema como uma comunidade subdividida de modo a cada um fazer seu próprio filme, do seu jeito. Em apenas nove meses, filmes pernambucanos como “Boi Neon”, “Animal Político” e, agora, “Aquarius”, conseguiram a atenção dos festivais de Veneza, Toronto, Roterdã e Cannes. Há muito oxigênio no cinema de Recife, alimentando filmes que geram debate, e não é de agora. Isso vem talvez desde “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis, em 2003. Vai ser difícil para seja lá quem for que estiver questionando nossos incentivos à produção derrubar o que vem sendo feito no Estado.

Seria possível apontar um potencial heróico em Clara, no embate entre ela e a construtora que começa a ameaçá-la?

Potencial heroico, sim. Mas, como muita coisa nos meus filmes, isso funciona em dois níveis. Eu pensei muito em Anna Magnani… ela em “Belíssima”, por exemplo. Ali, é uma mulher muito forte, uma heroína clássica do cinema italiano. E me agradava a ideia de fazer um filme com uma heroína de cinema, que despertasse uma identificação forte com o espectador. Uma identificação sobretudo emocional, de você entender quem ela é – ou pelo menos de o filme abrir um leque de opções forte sobre quem ela é. A ideia é o filme oferecer uma opção forte de quem Clara é, como essa mulher funciona, quais são os medos dela. O que dá prazer a ela, o que faz com que ela se comova por alguma coisa, o que a irrita. É o que se passa com as heroínas do cinema clássico. E eu gosto de fazer “filmes de cinema”, seja lá o que isso quer dizer. “Filmes de cinema” talvez sejam histórias que só poderiam acontecer no cinema, ao mesmo tempo em que você não perde a realidade de vista, porque ela está sempre ali para compor. Esse meu desejo contínuo me lembrou muito do cinema italiano dos anos 1950 e 60. E era a Anna Magnani que eu tinha em mente.

Havia alguma referência a mais, brasileira talvez, nessa conceituação de Clara?

Tinha um filme muito diferente em mente também, uma produção soviética de 1966, chamada “Asas”. Essa é a tradução americana. É um filme de Larisa Shepitko, sobre uma ex-combatente, uma ex-pilota aérea das Força Aérea russa, na Guerra. Ela leciona para jovens cadetes e se dá conta de que seus dias de glória ficaram para trás. Lida-se nele com uma personagem instalada numa certa dinâmica de cinema russo clássico, mas foi uma referência em que eu pensei no processo.

Essa ideia de “filme de cinema” vale também para seus filmes anteriores?

Sim. “O Som ao Redor” também se passava dentro de uma lógica de cinema, abandonando uma lógica mais naturalista, mais realista, embora sem perder o foco no realismo. E, neste também. A gente chega em uma questão: a gente está em um momento de discussão da realidade social e política em que, se você mantém certa posição ou determinado ponto de vista, você termina entrando num formato determinado de herói ou de heroína. Clara simplesmente mantém sua posição. Não está interessada na proposta que é feita a ela e tenta se manter firme numa situação que ela não escolheu. É curioso que, quando você está escrevendo um roteiro, a personagem fala pela própria boca, como se escrevesse seu próprio discurso. Eu vou só canalizando as situações que eram muito claras no desenvolvimento do drama, do conflito… meio como Chico Xavier. Temos uma heroína que funciona num nível de cinema e também de realidade social, pois a sociedade está toda irrigada para atender a estímulos de mercado. Se você vai contra isso, assume a posição de questionador, de crítico que vai embaçando o negócio. E esse acaba sendo o papel de Clara.

A atriz Maeve Jinkings, Kleber Mendonça, Sonia Braga, Humberto Carrão e Emilie Lesclaux, no Festival de Cannes. © Anna Luiza Muller

Existe na sua obra uma influência forte do thriller, às vezes como ponto de partida, às vezes como lugar de chegada. E “Aquarius” carrega, ao longo de toda sua projeção, um tônus de suspense forte, ora como o de “Cachê”, de Michael Haneke, ora como o de “Irmãs Diabólicas”, de Brian De Palma. De que forma este projeto sobre Clara se relaciona com a tradição do thriller?

O suspense é uma espécie de toque pessoal que vem pela alegria de poder filmar de um jeito muito livre, mas, ao mesmo tempo, sintonizado com as referências do passado do cinema. Se eu tiver que pensar aqui em alguns dos melhores filmes adultos que eu vi, muitos carregam essa centelha de thriller. Se você pensa em um filme como “Vá e Veja”, feito pelo Elem Klimov, em 1985, ele é tenso do começo ao fim sem que você precise engavetá-lo neste ou naquele registro. Queria ir por esse caminho.

É possível cravar que “Aquarius” é um refluxo da situação política de hoje? É um exemplar de cinema político?

Este filme expande questões que já abordei em outros filmes, embora seja bem diferente deles, mas o que me deixa mais ansioso é a possibilidade de ele gerar reações, interações, conexões. Algumas reações que eu já tive até agora, de quem mostrei, é a de que ele seja um filme político. Mas todos os filmes são políticos de alguma forma. O caso é que, com a situação política pela qual o Brasil passa hoje, é impossível algo não respingar no que fazemos. Quando se capta um clima, ele é parte de uma obra de arte. Mas é importante saber que “Aquarius” foi escrito há três anos e filmado no ano passado, ou seja, veio antes de tudo isso que está aí.

 

Confira o vídeo dos bastidores do filme “Aquarius”.

 

Por Rodrigo Fonseca

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