A melancolia do fantástico

Há uma ideia central em “Um Homem Só”, estreia na direção da roteirista Cláudia Jouvin, muito comum à ficção científica: a duplicidade, o embate entre o ‘eu’ e o ‘outro’. Algo como “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson, mas já presente em “Frankenstein”, de Mary Shelley, e replicado aos borbotões no cinema, de forma elegante e bem-sucedida – “Blade Runner, o Caçador de Androides” (1982), de Ridley Scott, e “O Vingador do Futuro” (1990), de Paul Verhoeven, por exemplo – ou não. Em “Um Homem Só”, Arnaldo (Vladmir Brichta) está infeliz com a esposa (Ingrid Guimarães) e com o trabalho, mas é covarde demais para fazer qualquer coisa. Por acaso, escuta sobre uma clínica secreta que clona a pessoa, aumentando o nível de endorfina de modo que sinta mais prazer. O clone o substituirá na vida e o clonado poderá seguir o caminho que quiser. Porém, o clone jamais deve saber sua condição.

O duplo funciona quase como uma projeção. O Arnaldo original pode transformar sua vida, abrir-se para possibilidades e arriscar, porque o risco é seguro. Há alguém em seu lugar, assumindo suas responsabilidades. Ele e o clone são um só, como diz o título, um amálgama de sentimentos e perturbações. Jouvin parece entender bem um mal contemporâneo, o embate entre a formação conservadora, que prega valores como o trabalho e o matrimônio, e os tempos atuais que exaltam o prazer, a paixão, o efêmero. Arnaldo não consegue se desprender de uma ideia do papel masculino moldado nos últimos séculos e abraçar outra possibilidade de vida. Há um medo inerente e inexplicável traduzido em sua covardia. A ficção científica, o duplo, é a catarse. Ou seja, apenas num mundo que não é real, que é típico da ficção, da ordem do fantástico, que Arnaldo se liberta. O filme, assim, é uma ode ao próprio cinema, em que o sonho vira realidade. Arnaldo talvez nunca se libertasse sem o subterfúgio.

Em “Um Homem Só”, porém, a ficção científica está a serviço de outro gênero, a comédia romântica. Como em “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (2004), de Michel Gondry, em que a ciência é a saída fácil para superar os problemas de relacionamento fazendo alguém esquecer o outro, permitindo reincidência, no filme de Jouvin, a tecnologia funciona como chave de acesso para a dimensão do lúdico. E se pudéssemos magicamente modificar nossa realidade? Entre as trapalhadas de Arnaldo – Brichta é um ótimo ator e comediante –, que tenta se ajustar à nova vida, ele conhece Josie (Mariana Ximenes), atendente de um cemitério de animais. Como nas comédias românticas indies, Josie é tudo aquilo que parece inatingível para Arnaldo: bela, impulsiva, comunicativa, ousada. Ela é o oposto dele e isso lhe dá mais motivos para acessar seu outro eu, aquele destemido e arriscado. Josie representa o que Arnaldo quer ser e não consegue.

Como roteirista, Jouvin se dá bem melhor aqui do que no insosso e convencional “Entre Idas e Vindas” (2016), de José Eduardo Belmonte, lançado também neste ano. É salutar seu esforço em “Um Homem Só” para fugir do óbvio e construir seus personagens com empatia. Pena que, como diretora, apesar da boa direção de atores e do bom ritmo, Jouvin não apresente a mesma destreza. A mise-en-scène apenas posiciona os atores e a janela 2.35:1 parece completamente desnecessária.

É curioso notar, porém, a melancolia da comédia fantástica atual brasileira, em seus pouquíssimos exemplares. Tanto “Um Homem Só” quanto “Entre Abelhas” (2015), de Ian SBF, apontam para um mal-estar social, para uma incapacidade do jovem adulto em lidar com problemas e anseios do mundo contemporâneo. Se o humor vem como forma de mascarar a densidade e a crueza das dificuldades e dar leveza ao conteúdo, o fantástico funciona como uma metáfora das possibilidades. Porém, em ambos os filmes, a fantasia é transitória e ilusória, impossível de ser concretizada. Como se, em tempos tenebrosos e complicados como os de hoje – para além das questões sócio-políticas que o Brasil enfrenta –, não houvesse mais espaço para o extraordinário, para o sonho. O futuro é existencialmente temerário; por mais que se pense em alternativas, elas não são alcançáveis. São filmes sintomáticos sobre uma faixa da classe média, que cresceu sob os ditames da geração X e viu o avanço da geração Y, sem saber bem onde se encaixar – o que fazer quando tudo que você aprendeu como certo fracassa? Não à toa, o fantástico aparece como solução. Mas, como não é real, nada se resolve. São filmes melancólicos, pois nos parecem dizer que o mundo é imutável, que é mais fácil simplesmente se acomodar e aceitar – a realidade soterra o fantástico.

Assista ao trailer do filme aqui.

 

Um Homem Só
Brasil, 94 min., 2014
Direção: Cláudia Jouvin
Distribuição: Downtown/Paris Filmes
Estreia: 29 de setembro

 

Por Gabriel Carneiro

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