Até a primeira série

A Lei 12.485, de setembro de 2011, mais conhecida como Lei da TV Paga, abriu portas para a produção independente e alavancou o mercado audiovisual de tal forma que os canais e as empresas tiveram que se adequar rapidamente à demanda de conteúdo e ao público que começou a assistir e a esperar por novos formatos e temporadas de séries brasileiras. Para os realizadores de pequenas e médias produtoras, o desafio é ainda muito maior, até porque eles não querem ficar de fora desta nova possibilidade de ampliar o seu próprio plano de negócios. Mas como emplacar um bom projeto para canais cada vez mais exigentes e em um cenário de forte concorrência?

Para as grandes produtoras, a prática da produção de séries está em uma fase um pouco menos inicial, com alguma experiência mais consolidada nesses últimos cinco anos. Contudo, para os pequenos, o caminho está sendo delineado e os recursos estão cada vez mais acessíveis para eles. Segundo Mauro Garcia, presidente da BRAVI – Brasil Audiovisual Independente (antiga ABPITV), hoje, a entidade tem 617 empresas associadas, sendo que os novos ingressos são majoritariamente de pequenas e médias produtoras, as quais já são atuantes e estão em um primeiro nível de captação no Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

O próprio fundo vem se afirmando como uma fonte importantíssima de fomento, não apenas para as produtoras de maior porte, mas inclusive para quem está dando os primeiros passos, e esta é uma orientação recorrente da BRAVI para os novatos. Em primeiro lugar, Garcia reforça que, antes de desenhar qualquer esboço de projeto, é preciso estudar os editais e fazer uma autoanálise para identificar em qual estágio a produtora se encontra. Começar pelas linhas de desenvolvimento de projetos ou núcleos criativos do FSA, por exemplo, é um ótimo ponto de partida, até porque exigem menos dos iniciantes.

Para Mauro Garcia, presidente executivo da BRAVI, as linhas para o desenvolvimento de projetos são um passo importante, até para amadurecer o projeto

“As linhas para o desenvolvimento de projetos são um passo importante, até para amadurecer o projeto e só depois concorrer nas linhas de produção. Tem uma outra, a dos núcleos criativos, que eu gosto muito. Esses núcleos permitem desenvolver uma cartela mista de cinco projetos, no período de um ano. Com isso, os pequenos têm a chance de trabalhar com bons líderes e consultores, sem precisar de capital próprio. Você amadurece a sua estrutura criativa, de produção executiva e de plano de negócios, e a exigência depois é que dois desses projetos consigam ser viabilizados por contratação de canais”, explica Garcia.

Os projetos dos núcleos criativos podem ser de diferentes gêneros e formatos, para TV e cinema, e acabam englobando muitos interesses de diferentes produtores, que podem trabalhar em parceria e cujas ideias podem ser incubadas por produtoras maiores até ficarem prontas e melhor resolvidas em um intervalo maior. Com isso, Garcia também alerta que o produtor pequeno ainda acaba ganhando tempo para organizar a estrutura da sua própria empresa, levando em consideração aspectos para além do ambiente artístico.

“Não dá mais para fazer tudo sozinho, ser o criativo e o responsável por prestar contas. Não vai dar certo. As exigências estão grandes e o tempo dedicado a cada uma dessas etapas é igualmente grande. Você tem que ter estrutura administrativa, uma arquitetura de orçamento para ver a composição financeira de várias fontes diferentes, públicas ou privadas, para financiar o seu projeto. Tem que ter alguém pensando nessa arquitetura econômico-financeira. Cada vez mais, a prestação de contas e os controles estão mais rigorosos. A parte criativa não é mais suficiente para dar conta disso”.

Aproximação com os canais

Embora o percurso mais natural seja o passo a passo para estruturar os projetos e as produtoras, a BRAVI lembra que não é “impeditivo” para os pequenos e médios se lançarem diretamente nas linhas de fomento de produção e abordarem os diretores dos canais de TV com suas ideias. Inclusive, o próprio RioContentMarket – encontro internacional de produtores independentes que ocorre sempre no mês de março, no Rio de Janeiro, organizado pela entidade –, estimula isso e oferece oficinas, laboratórios e eventos, justamente para aproximar esses agentes e encorajar novos negócios.

Além dos grandes canais internacionais, o evento convida os representantes de canais brasileiros que têm a produção independente no seu DNA e estão em busca de projetos interessantes. Dentre eles, Garcia menciona o Curta! e o CINEBRASiLTV. “Eu diria que esses canais têm um papel fundamental para esse primeiro negócio, a primeira série, essa primeira oportunidade, principalmente, para as pequenas produtoras. Eles trabalham as séries até com menor expectativa comercial e é um aprendizado importante. São parceiros do produtor na curadoria e na formatação do projeto. Os grandes canais já não teriam essa paciência”, acredita ele. Canais internacionais “trabalham com produtoras maiores que eles já conhecem, até porque querem ter certeza da entrega”.

CASES DE PRODUTOS DIFERENTES

Taquaras, Tambores e Violas

Hidalgo Romero acabou trilhando esse caminho. Formado em arquitetura, entrou para o audiovisual e realizou a sua primeira série depois de dirigir o curta-metragem “Acontecências”, que foi selecionado para grandes festivais, como o International Documentary Film Festival Amsterdam (IDFA), em 2009, e o É Tudo Verdade, em 2010. O projeto de “Taquaras, Tambores e Violas” já tinha um primeiro esboço quando surgiu a oportunidade de apresentá-lo ao CINEBRASiLTV. O canal estava recebendo propostas de projetos de documentários ou séries documentais produzidos com recursos do FSA e a ideia de Romero foi aceita.

“Taquaras, Tambores e Violas”, seriado da produtora Laboratório Cisco para o canal CINEBRASiLTV

A série de 13 episódios se dedica a olhar e registrar as manifestações populares brasileiras a partir da fabricação de seus instrumentos musicais. Foi realizada durante oito meses, com recursos do PRODAV 01 do FSA. Inicialmente, a ideia era reunir a cultura popular brasileira com a música e tentar traduzir esse universo em uma linguagem audiovisual. Para estabelecer o recorte final, o projeto passou por um “pitching interno” do coletivo Laboratório Cisco e a proposta final levou alguns meses para se concretizar em textos, imagens e estrutura orçamentária.

“Depois de apresentar a ideia ao diretor do canal, começamos uma frutífera conversa, no sentido de adequarmos a minha proposta a um formato televisivo que viesse ao encontro do perfil do CINEBRASiLTV. Ele foi um grande colaborador e parceiro em todo o processo de elaboração do projeto, e mesmo na realização”, conta Romero.

Para cada um dos 13 episódios, a série apresentava um novo instrumento musical, com suas técnicas e fabricação, em cidades e povoados de cinco Estados, lugares nem sempre de fácil acesso. A pesquisa de pré-produção foi extensa e minuciosa, considerando muitas variáveis que poderiam comprometer o andamento do projeto. A filmagem, no entanto, foi “tranquila” e apontava para as inúmeras possibilidades que se abriam diante da riqueza do tema, segundo Romero. Mas nem tudo foi tão orgânico e fluido nesse processo. Os problemas começaram na montagem, na hora de adequar o resultado final ao formato do canal.

Para Hidalgo Romero, a parceria com o canal foi fundamental para o desenvolvimento final do seriado

“Quando cheguei à ilha de edição, o material bruto era enorme. Tive uma dificuldade imensa em fechar uma edição de 26 minutos”. Ao entregar a primeira cópia e receber um retorno nem tão positivo, Romero teve que voltar para a montagem e entendeu que ali nascia mais uma nova etapa. “Nunca havia pensado na linguagem televisiva do ponto de vista do realizador. Havia pensado apenas como receptor, como público. A primeira coisa que percebi é que não existe exatamente uma única linguagem televisiva. Depende do perfil do exibidor, do público alvo, do assunto que se trata e até do horário em que será exibida a série. Acabei aprendendo como normalmente se aprende: com acertos e erros”.

Em retrospecto, ao comparar a dinâmica da TV com o cinema, Romero conclui que “produzir conteúdo para a televisão é completamente diferente de fazer documentário para salas de cinema” e que “o aspecto mais importante nessa transição foi com relação à narrativa”. No projeto inicial, ele não tinha “sequer considerado ter narração” na edição. Mas, como o público de televisão é mais diverso, foi sendo convencido de que era melhor não deixar as coisas não ditas, o que talvez resultasse num desinteresse do espectador nem tão habituado à linguagem mais subliminar. Aos poucos, foi incluindo o texto de forma inclusive poética e usando mapas ilustrativos. Para dar conta de uma edição mais rápida e intensa do que um curta-metragem, Romero também percebeu que os episódios, embora criativos, precisavam entrar numa linha de montagem para honrar a entrega no prazo. “Correção de cor, mixagem, desenho de som, legendas, arte gráfica, vinhetas, tudo acaba sendo feito em série”, define ele.

302

Da mesma forma que havia uma certa demanda inicial do CINEBRASiLTV percebida por Romero, David Butter encontrou uma oportunidade “difícil de se repetir” por meio do Canal Brasil. Eles procuravam programas voltados para o público feminino, quando Butter estava justamente buscando algum canal que se interessasse por “302”. O projeto é uma transposição do trabalho do fotógrafo Jorge Bispo para o audiovisual, com ensaios de nus de mulheres que queriam posar para suas lentes, dentro de um apartamento. Em 26 episódios, de 10 a 12 minutos, a série conta a história dessas pessoas que, no passado, foram clicadas no “Apartamento 302”.

A série “302”, de David Butter, que explora o corpo feminino e se encaixou no perfil do Canal Brasil

A aproximação com o Canal Brasil se deu em 2013, durante um pitching, dentro da programação do I Workshop de Produção Independente do Mercado de TV, apoiado pela Riofilme. Daquela apresentação, começaram as negociações e, em abril de 2014, ocorreram as filmagens. Segundo Butter, desde a primeira conversa, o canal ajudou a avançar no conceito, a pensar no formato, na duração dos episódios, em quantos depoimentos colocariam em cada um deles e onde seriam as locações. A série foi financiada com recursos do canal, sem verba do FSA.

David Butter encontrou uma oportunidade para vender sua série ,“difícil de se repetir”, por meio do Canal Brasil

“O maior desafio foi transmitir à série o espírito do projeto original. Para transformar em TV, fomos atrás de pistas oferecidas pelo próprio processo de produção”. Uma das participantes, descreve Butter, teria perguntado ao fotógrafo se ele não gostaria de saber por que elas tinham interesse em posar naquele apartamento. No caso dela, “o ato de posar fechava um lento ciclo de aceitação, iniciado lá atrás, a partir de um incidente de violência sexual. Presumimos, então, que todas tinham e teriam uma história para contar”.

Mais Amor por Favor

André Amparo teve um caminho diferente. Antes de desenhar o projeto da série ficcional “Mais Amor por Favor”, ele conseguiu emplacar a primeira série, ainda inédita, em um canal internacional, mas ainda não pode contar detalhes em função das cláusulas de confidencialidade. A sua trajetória também é mais ampla. Além das séries, ele é diretor de documentários de longa-metragem, tem mais de dez curtas no currículo, além de trabalhos ligados à videoarte e videoinstalações.

“Minha trajetória é mais ligada às artes eletrônicas do que ao cinema. Sou da turma do vídeo. Agora as coisas estão todas mais misturadas e estou achando tudo interessante, tudo virou audiovisual, artes visuais. Sou, na verdade, um grande curioso, tudo me interessa e tento preservar ao máximo esse interesse pelo que é novo e diferente do que já conheço”, descreve ele.

O cineasta André Amparo, reconhecido por seus curtas experimentais premiados, emplacou sua primeira série em um grande canal internacional

“Mais Amor por Favor” está nascendo aos poucos e agora segue na fase de estruturação dos 13 episódios de 26 minutos, financiados com recursos do PRODAV 11 do FSA. A série tem temática relacionada à desmistificação de questões de gênero, relacionamento e sexualidade do público jovem. No centro da trama, será apresentada a história de dois jovens irmãos do interior de Minas Gerais que vão morar na casa da avó, em Belo Horizonte, após um deles causar problemas na cidade em que viviam. Em 2017, ocorrerão as filmagens e a montagem, e a exibição será nos canais da EBC – Empresa Brasil de Comunicações, seguindo a exclusividade inicial prevista no edital.

Cozinhando no Supermercado

Com um perfil mais voltado para a televisão, e uma larga experiência na produção de programas, curtas, médias e longas-metragens, Amadeu Alban conseguiu emplacar a primeira série da sua produtora já para um canal internacional: o Discovery Home & Health. A Movioca foi fundada em 2012 e, em 2015, deu esse salto para as séries com a produção de “Cozinhando no Supermercado”. Segundo Alban, o projeto surgiu após algumas conversas com a gerente de conteúdo, ligada a marcas do canal, e também de uma demanda do supermercado Pão de Açúcar, que queria criar uma série de TV alinhada à identidade da marca deles.

“Cozinhando no Supermercado”, série de Amadeu Alban, criada sob demanda de um patrocinador

O projeto acabou virando uma coprodução entre a Movioca, o Discovery Home & Health e também com a participação da produtora Floresta, que “já tinha experiência em realities”. Sendo assim, o propósito era pensar em um reality de competição culinária, totalmente filmado dentro do supermercado, em pleno funcionamento, com todos os produtos acessíveis. O desafio, portanto, não era pequeno. Mas o produtor contou com o apoio não só do canal, mas do próprio patrocinador, que disponibilizou especialistas em carnes, queijos, vinhos e pescados para participar dos episódios.

“Essa novidade gerou muitas dúvidas do ponto de vista de produção. Tínhamos que filmar com grua, cinco câmeras, uma equipe de produção, participantes competindo em meio a gôndolas, cenografar uma cozinha no mercado, lidar com o público passante e coletar a opinião dos clientes na hora, degustando os pratos dos concorrentes”, relata Alban.

Segundo Amadeu Alban, o seriado “Cozinhando no Supermercado” surgiu de uma parceria com o canal e o patrocinador

O projeto deu certo e o formato já está em negociação para emissoras regionais de TV aberta no Brasil e também com possibilidades no exterior. Na Argentina, a distribuição está a cargo da SmileHood, que já está negociando a venda para Buenos Aires e outros mercados internacionais. A segunda temporada já foi filmada e está prevista para estrear agora em setembro.

 

Ainda neste segundo semestre, a segunda temporada de “Taquaras, Tambores e Violas” também deve ser lançada. O caminho desses produtores, portanto, já foi traçado. É sentar e assistir o que virá por aí.

 

Por Belisa Figueiró

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.