Biografia de Ruy Guerra será lançada em São Paulo e no Rio

Depois de cinco anos de pesquisas, em Maputo, Paris, Lisboa, Havana e várias cidades e arquivos brasileiros, Vavy Pacheco Borges, historiadora e professora da Unicamp, lança “Ruy Guerra – Paixão Escancarada”, volumosa e densa biografia do autor de “Os Cafajestes”, “Os Fuzis”, “Kuarup”, “Erêndira” e “Estorvo”.

O livro, embalado pela Editora Boitempo, em belo projeto gráfico de Antônio Kehl, narra a trajetória do cineasta, ator e compositor moçambicano Ruy Guerra, que escolheu o Brasil como seu porto seguro e pátria de suas filhas Janaína Diniz Guerra (de seu casamento com Leila Diniz) e Dandara Ohana Guerra (com Cláudia Ohana).

“Ruy Guerra – Paixão Escancarada”, editado em quase 500 páginas fartamente ilustradas, é fruto de nove anos de trabalho sério e laborioso. Além das substantivas pesquisas de Vavy Pacheco Borges, por três continentes, o livro traz apresentação do sociólogo e professor da USP, Sergio Miceli, contracapa assinada por Cacá Diegues, cronologia “vida e obra”, filmografia, acervos e fontes consultados, bibliografia e índice onomástico. Traz, também, além de belas e raras fotos (do cineasta, de seus companheiros de estrada e familiares), saborosa raridade: história em quadrinho, retirada de exemplar da revista “Pererê”, que Ziraldo criou em dezembro de 1962. Entre os personagens da HQ, aparece Ruy Guerra, aliás, Ruy Batalha. Nos seis quadros reproduzidos no livro, vemos os personagens ziraldianos às voltas com filmagem sob o inclemente sol do Nordeste (Ruy desfrutava na época do êxito – e escândalo – de “Os Cafajestes”, rodado nas areias de Cabo Frio, e só realizaria “Os Fuzis”, em Milagres, no sertão da Bahia, dois anos depois). No comando do filme imaginário da revistinha “Pererê”, vemos Ruy Batalha, com seu sotaque lusitano e suas barbas espessas, às voltas com Galileu, seu Nenén e outros criações ziraldianas.

O livro de Vavy será lançado em São Paulo, nesta terça-feira, 8 de agosto, a partir das 18h30, na Livraria da Vila (Alameda Lorena, 1731, São Paulo). A autora e Ruy Guerra estarão presentes. Treze dias depois (21 de agosto, a partir das 19h00), “Paixão Escancarada” será lançado na Livraria Travessa, no Leblon, Rio de Janeiro (Av. Afrânio de Melo Franco, 290). Mais uma vez, na presença da autora e do cineasta, que a partir da meia-noite já estará festejando com amigos seus bem vividos 86 anos.

Ruy Guerra nasceu (em 22 de agosto de 1931) e viveu em Moçambique até ir estudar no Idhec (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos) francês (hoje Femis). No final dos anos 1950, a paixão por uma brasileira o trouxe ao Rio de Janeiro. Por aqui ficou. Só regressaria a seu país de origem em meados dos anos 1970, quando governo de orientação marxista, liderado por Samora Machel e pela Frelimo, derrotou o colonialismo português. Foi coordenar a construção de bases para um novo cinema moçambicano. A experiência durou longos e duros anos, foi válida, mas marcada por penúria de recursos (a guerra civil continuava e os desafios eram imensos) e por embates artísticos.

Vavy Pacheco Borges levou tão a fundo sua intenção de biografar Ruy Guerra, que produziu o longa-metragem “O Homem que Matou John Wayne”, exibido no Festival de Havana e no Festival É Tudo Verdade (São Paulo, 2016). O documentário, dirigido pelos jovens Diogo de Oliveira e Bruno Laerte, será lançado pela Pandora, no próximo dia 17, em São Paulo e Rio.

Em entrevista à Revista de CINEMA, Vavy fala de suas andanças por Maputo, Havana, Lisboa e Paris e do desafio de biografar um cineasta que é também ator (inclusive de Werner Herzog, no notável “Aguirre, a Cólera de Deus”), compositor (parceiro de Chico Buarque), roteirista (que teve Gabriel García Márquez como parceiro), dramaturgo, polemista e professor universitário. E que tem fama de irascível. O amigo Chico Buarque – lembra a biógrafa – vê Ruy Guerra como “o brigão mais doce do Brasil” .

O que a levou a mergulhar na trajetória de um cineasta que dedicou-se a muitos outros ofícios e fez carreira em muitos mundos (Moçambique, França, Cuba, México, Portugal, Brasil)?

Ruy Guerra foi uma figura que me interessou desde os incríveis, os inesquecíveis anos 1960. A meu ver, fez parte de grandes lances do séc. 20. Primeiramente, pelo nascimento em Moçambique, esteve necessariamente implicado nos fenômenos da colonização; mais tarde, envolve-se na descolonização, pois, a partir de 1976, colaborou na revolução nacional e socialista liderada por Samora Machel, e por 10 anos intermitentes dedicou-se à difícil formação de um cinema no país. Depois, por sua formação francesa nos anos 1950, esteve imerso nas primeiras marolas da Nouvelle Vague e na discussão de um cinema de autor. Finalmente, no Brasil, onde, apesar das inerentes dificuldades financeiras e da censura, se revelou cineasta no Cinema Novo e letrista no início da MPB.

O que levou um rapaz nascido em Lourenço Marques (hoje Maputo) a correr mundos? E por que ele fez do Brasil seu porto seguro, a terra de seus casamentos mais sólidos e o berço de suas filhas?

O sucesso de seus primeiros filmes, suas premiações nacionais e internacionais, sua proximidade e parceria com grandes nomes, como Chico Buarque e Gabriel García Márquez, seus romances com mulheres famosas – tudo trazia mais glamour a essa vida de romance. Desde o início, lhe deixei claro que ele me interessava não apenas como produtor de cultura, mas em todas as dimensões de um ser humano.

Werner Herzog, que escalou Ruy Guerra para papel importante em “Aguirre, a Coléra de Deus”, disse recentemente ao amigo: “Ruy, você parece um leão”. Isto se deve à “juba” privilegiada, que ele ostenta aos 86 anos, ou à força de um cineasta do Terceiro Mundo, que construiu sua obra, apesar das adversidades, em três continentes (América, Europa e África)?

Africano, nascido sob o signo de leão, muitas vezes, ostentando uma barba e uma cabeleira tipo juba leonina, Ruy está permanentemente atrás de filmar. Essa paixão escancarada, voraz, permanente, não se apaziguou com o passar do tempo, e fez o leão correr pelas savanas de três continentes. Fazia filmes com o dinheiro que conseguia, nas condições possíveis, mas nunca abrindo mão do rigor e da busca do novo que lhe são essenciais e sem o que perderia o respeito por si próprio.

Você diz a seus leitores que deslizou “suavemente” da história política para os estudos biográficos. Sendo historiadora e professora da Unicamp, você se policiou para não entrar muito na vida pessoal de um cineasta que foi marido de duas atrizes (Leila Diniz e Claudia Ohana), namorado de mulheres famosas (Nara Leão, Luiza Barreto Leite), amigo fraterno e parceiro de nomes como García Márquez e Chico Buarque?

Nos anos de convivência, nos aproximamos bastante e pude refletir sobre o muito do que tinha ouvido e lido. Minha prática de historiadora facilitou o controle do envolvimento forte que esse tipo de trabalho proporciona. Cacá Diegues me alertara logo: “Não faça uma biografia chapa-branca que o Ruy não vai te respeitar”. Optei por desvendar, no início do livro, o caminho teórico e prático percorrido. Não procuro “explicar” Ruy, mas exponho aquilo de que, a meu ver, o todo depende. Vejo Ruy como um “leão indomado”, apesar de concordar com Chico Buarque – para quem ele é “o brigão mais doce do Brasil”– e aceitar que Ruy tem, como ouvi – e não foi uma de suas inúmeras mulheres quem me fez essa afirmação – uma “doçura atrás de sua capa dura”.

Ruy Guerra tem fama de turrão, de dizer o que pensa, de comprar brigas para defender suas ideias. O escritor Eric Nepomuceno diz que ele é “um bicho-papão de pelúcia”. Depois da intensa convivência com ele para construir biografia de sólidas 468 páginas, você concorda com Nepomuceno? No fundo, ele é “um sentimental”?

Em nosso relacionamento, fora de esquadro, demorei a perder o medo desse leão, mas consegui. Por outro lado, a admiração por ele como profissional só fez aumentar à medida que lia as críticas e trabalhos acadêmicos sobre sua produção. Ideologicamente, me senti sempre próxima dele pois fizemos parte de uma geração marcada por ideais e utopias, cujo objetivo resumidamente era “salvar” o Brasil. Hoje admiro-o como alguém que, em seu posicionamento político, nunca passou de incendiário a bombeiro.

Você foi a Maputo, Havana, Lisboa, Paris, sem contar as cidades brasileiras, buscar dados e “atmosferas” para construir “Ruy Guerra, Paixão Escancarada”. O fez por conta, risco e paixão, ou teve patrocínio para tão grande empreitada? Quantos anos consumiu em suas pesquisas?  

Aposentada, graças a minha situação familiar, pude realizar esse périplo tri-continental atrás das pegadas do leão. Autorizada a começar a bibliografia em 2007, nove anos depois o livro estava na editora. Ruy tinha me passado todo seu acervo e prometido que só leria o livro depois de impresso. Ficava inquieto quando eu, por acaso, mencionava diante dele algo como “isso já coloquei no livro”. Cumpriu o prometido.

Em suas conversas com Ruy Guerra, ele marcou posição: “Não quero biografia arrumadinha, nem com traços de pieguice”. O que ele achou do resultado?

Não faz ainda um mês que recebeu o livro e de cara aprovou – como disse “o objeto livro”, sua capa, seu capricho. Ao acabar a leitura poucos dias depois, telefonou para me dar os parabéns, pois o livro estava ótimo. Começou dizendo que não iria comentar a redação, dado que sempre me dissera como escrevo bem. Elogiou muito a estruturação das partes, bem definidas, bem fundamentadas (não seria eu historiadora se não pensasse o indivíduo em seu contexto, em seus grupos sociais…) Emocionou-se muito, chorou e riu, por vezes, ao mesmo tempo, na parte da distante infância e adolescência. Mas concluiu: “Não sei se eu sou esse homem aí…” E eu : “Ah, não,: esse é o meu Ruy”. 

Além de “Ruy Guerra – Paixão Escancarada”, você produziu longa de nome provocador – “O Homem que Matou John Wayne” – sobre a trajetória do cineasta. O que significou esta experiência audiovisual e quando o filme chegará ao público?

O documentário “O Homem que Matou John Wayne” – que fui instigada a realizar por diversas pessoas – foi uma experiência necessária e maravilhosa para eu entrar atrás da tela que sempre me fascinou, para compreender na prática um pouco de sua linguagem e para confirmar minha visão do artista formada ao longo da pesquisa.

 

Por Maria do Rosário Caetano

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