Fest Brasília – Terror político surpreende plateia festivaleira

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

A imensa e politizada plateia do quinquagésimo Festival de Brasília do Cinema Brasileiro recebeu, com aplausos moderados e certa perplexidade, o sexto concorrente da mostra competitiva, o horror político-histórico “O Nó do Diabo”, representante da Paraíba. Afinal, em 50 anos de história do festival, o gênero horror praticamente não fez parte das listas de longas-metragens selecionados para disputar o Troféu Candango.

O diabólico “Nó” nasceu como série de TV comandada pelos paraibanos, de Campina Grande, Ramón Porto Mota, Ian Abé e Jhésus Tribuzi, que se uniram ao realizador mineiro Gabriel Martins, do coletivo Filmes de Plástico. Os três paraibanos amam cinema de gênero, o terror em especial, e atuam no coletivo Vermelho Profundo. Junto com Gabriel, engendraram trama composta em cinco episódios que cobrem 200 anos de nossa história (fincada na escravidão e na exploração de mão de obra) de 1818 a 2018. Ou melhor, de 2018 a 1818, já que o filme parte do presente rumo ao passado.

Fernando Teixeira interpreta Vieira, o poderoso dono de imenso engenho. Ele está presente nos cinco episódios, que referenciam os principais subgêneros do horror. O último dialoga, na terra de Zumbi (dos Palmares), com os zumbis (mortos-vivos, hoje, transformados em ícones pop).

A residência de Vieira, a imponente casa senhorial (utilizou-se, como cenário, a imensa mansão paraibana do escritor José Lins do Rego), impõe-se como “as casas assombradas dos filmes, como o castelo de Drácula”, na definição do loquaz Ramón. Desta fortaleza, Vieira comanda os destinos de seus empregados. Vive da exploração de seus trabalhadores em imensos canaviais. Do presente ao passado, chegaremos a um quilombo, onde os negros se organizam, com as “armas possíveis” (lembremos que estamos num filme de horror) para enfrentar os escravocratas.

O elenco do filme é majoritariamente nordestino. Além de Fernando Teixeira, destacam-se outros grandes nomes do teatro e cinema da Paraíba, como Everaldo Pontes, Soia e Buda Lira. E a eles, somam-se  a veterana Zezé Motta, a luso-angolana Isabél Zuaa (que vimos recentemente em “Joaquim”, de Marcelo Gomes), as pernambucanas Cíntia Lima e Clébia Sousa, mais Alexandre Sena, Miuly Felipe e Yurie Felipe da Silva. Em participação especial – registre-se – o compositor, cantor e percusionista Escurinho, da banda de Chico César.

Os integrantes do Vermelho Profundo, em especial Ramón, esperavam uma noite apoteótica no Cine Brasília. O diretor paraibano disse ao “Jornal de Brasília”, – citando o músico Iggy Pop – que desejava causar pelo menos “euforia” na plateia. Afinal, Iggy, indagado sobre quais efeitos o disco dos Stooges deveria ter sobre as pessoas, respondera: “gostaria que a música agarrasse os ouvintes pelas orelhas e esmagasse a cabeça deles e delas na parede quando saísse do alto-falante”. A sintonia do público brasiliense, que prestigia historicamente o festival, não se estabeleceu na “euforia” esperada por Ramón e seus colegas na Vermelho Profundo. As palmas foram protocolares e frias.

A equipe paraibana esclareceu que não há nenhuma diferença entre o filme apresentado no Festival de Brasília e a série preparada para a TV. O tempo é o mesmo (pouco mais de duas horas), idem para a ordem dos episódios (do presente ao passado), a edição e, principalmente, a banda sonora, vital num filme que se constrói com imagens, mas com atenção especial aos ruídos e músicas. A única diferença, pontuaram, é que na TV a exibição se dará em cinco capítulos (de menos de 25 minutos cada).

O curta-metragem da noite, “Tentei”, da paranaense Laís Melo, tocou o público feminino, em especial. Primeiro pela apresentação, que levou ao palco do Cine Brasília cinco mulheres da equipe, incluindo a diretora e a atriz-protagonista Patrícia Savary. Com discursos consistentes e marcados por pegada feminista, elas chamaram atenção para a violência contra a mulher. Laís criou seu roteiro – a angústia que transtorna o corpo e as emoções de Glória, quando ela procura Delegacia da Mulher para denunciar agressão física –, a partir de sua vivência como jornalista. Durante dois anos, ela trabalhou em um jornal de crimes e muitas de suas pautas tinham a violência contra mulheres como tema central.

A realizadora soma a seu trabalho com o audiovisual, intensa atividade política. É uma das organizadoras do curso de Comunicação Popular do Paraná, militante da Via Campesina e do Levante Popular da Juventude. Mantém atuação firme em coletivos feministas e trabalha como educadora do Projeto CineSol, que atende a jovens não-incluídos em políticas públicas.

No debate, a equipe de “Tentei” só ouviu elogios, em especial, ao trabalho da atriz Patrícia Savaray, oriunda do teatro curitibano, e ao “eloquente silêncio”, essência mesma dos 15 minutos da narrativa. Glória, a protagonista, fala com seu corpo. E não consegue verbalizar a violência quando o agente da Delegacia de Mulheres a interroga.

A própria Laís Melo estabeleceu a grande diferença entre os dois filmes em debate, o dela e o da trupe paraibano-mineira: “embora ambos falem sobre a violência contra corpos de trabalhadores, no nosso (‘Tentei’), buscamos captar o que paira no ar, sem explicitar a violência, sem alimentar o voyeurismo”. Já em “O Nó do Diabo”, a violência “é escancarada”.

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