Fábula gringa em ritmo de cinema de lágrimas

Pelé e sua história chegam mais uma vez ao cinemas. Foi assim no anos 1960, com o folhetinesco “O Rei Pelé”, escrito por Benedito Ruy Barbosa e dirigido por Carlos Hugo Christensen. Depois, já nos anos 2000, com o ambicioso documentário “Pelé Eterno”, de Aníbal Massaini.

Em 26 de outubro, a prodigiosa trajetória do “atleta do século” estará de volta às telas de 150 cinemas (ou 200, como pretende o distribuidor Wilson Feitosa, da Europa Filmes). E, desta vez, numa fábula gringa feita para arrancar lágrimas. E alguns risos.

“Pelé, o Nascimento de uma Lenda”, filme sobre “o garoto que virou o jogo”, uniu esforços internacionais na produção e os diretores Michael e Jeff Zimbalist, que antes haviam se metido em nossas favelas por causa do longa “Favela Rising”. Eles foram certeiros ao definir o recorte narrativo: a história do jogador dos 9 aos 17 anos. Ou seja, da infância, em Bauru, até a adolescência, quando o Brasil ganhou seu primeiro título mundial. Para vencer a Copa de 1958, com um selecionado mestiço, o Brasil derrotou rivais poderosos, incluindo a anfitriã, Suécia (na final, por placar de 5 a 2). E consagrou, aos olhos do mundo, o protagonista do filme, um adolescente negro, nascido Três Corações (MG) e descoberto pelo Santos Futebol Clube.

O filme arranca lágrimas abundantes (e alguns risos). De origem muito pobre, o moleque era filho de faxineiro de hospital (Sr. Dondinho, interpretado por um Seu Jorge muito inspirado) e empregada doméstica (Dona Celeste, vivida por Mariana Nunes, também em ótimo desempenho). A narrativa começa como uma fábula delirante. Dico (apelido de Edson Arantes do Nascimento) e seus amigos correm pelas vielas pobres, com esgoto a céu aberto, de Bauru, pulando imensos obstáculos, com a bola (de meia) nos pés, claro. Um balé-espetáculo (que será reeditado por Dico, agora já disputando uma Copa do Mundo, com seus colegas de time). Nesta segunda construção assumidamente fabular do filme, os boleiros percorrem, jogando-jingando-dançando, os corredores (passando pela imensa cozinha) do hotel sueco onde estão concentrados. Desejam arremessar a bola em torre erguida no meio de um lago. Não conseguem, porque Pelé cai na água e, como não sabe nadar (diz o filme!), é socorrido pelos outros jogadores.

A cópia projetada para a imprensa foi a original, portanto, integralmente falada em inglês. O que nos joga de cara no ridículo. Molequinhos pobres de Bauru, os faxineiros Dondinho & Celeste, um caçador de talentos (caso do personagem de Milton Gonçalves, brasileiríssimo), todos se expressam no idioma de Michael Jackson. Wilson Feitosa, da Europa Filmes, garante que mais de 90% das cópias exibidas no Brasil serão dubladas em português. “Só terão a versão original, os cinemas que assim o desejarem”.

O filme foi formatado para o público internacional e está em fina sintonia com estudos recentes, que analisam a nódoa do “complexo de vira-lata” em nossa história boleira. Para que os gringos entendam a origem da “ginga” brasileira, há um videoclip dentro da trama. Explica-se que desenraizados africanos aqui aportaram como escravos. Para conseguir a liberdade, criaram os quilombos. Para fugir do jugo do feitor, lutavam a capoeira, mix de dança e combate, marcado pela ginga. De seus volteios, teria brotado o jogo de cintura (o futebol-poesia) de nossos jogadores.

“Pelé, o Nascimento de uma Lenda” não se cansa de reafirmar a tese de que o futebol brasileiro seria marcado por tal complexo de inferioridade. Ou seja, nossos dirigentes, brancos e oriundos da elite, acreditavam que nossos jogadores, pretos e mestiços, eram incapazes de enfrentar a força loura e musculosa dos europeus. Em momentos de decisão, vira-latas, amarelariam.

A derrota, em 1950, para o Uruguai, um pequeno país formado com filhos de imigrantes espanhóis e italianos, seria a prova de que fraquejávamos na hora H. Claro que o assunto ocupou espaço nobre nas crônicas de Nélson Rodrigues e outros cronistas de igual prestígio. Mas, na fábula made in USA, que agora chega às telas, nossos jogadores (incluindo o passarinho Garrincha) se ocupavam do assunto como se trabalhassem numa redação de jornal esportivo. E, para piorar, os roteiristas, fiéis à cartilha do cinema comercial norte-americano, não se envergonham de adulterar a história.

Usam um jogador brasileiro (José Altafini, o Mazzola, hoje com 79 anos, também cidadão italiano) como antagonista de Pelé. No maior delírio factual do filme, vemos Dona Celeste, acompanhada de Pelezinho, fazendo faxina na rica mansão do futuro Mazzola, louro, lindo, mauricinho. E os dois garotos, o branco rico e o preto pobre, aprofundando a rivalidade.

Ao ser convocado, aos 17 anos, para a Seleção Brasileira, Pelé será hostilizado pelo ítalo-brasileiro, jogador do Palmeiras (interpretado pelo belo cantor mexicano, Diego Boneta). Para começo de conversa, Mazzola não morou em Bauru (nasceu em Piracicaba, fez carreira na capital paulista, depois na Itália, onde vive atualmente como comentarista esportivo), nem Dona Celeste fez faxina na casa da Família Altafini. Tudo indica que Mazzola, escorado em brilhante carreira na Península, com muitas glórias no poderoso Milan, aceitou (autorizou) o papel que lhe coube na trama gringa. Caso contrário, processaria Pelé e os produtores do filme. Afinal, na trama ficcionalizada, insinua-se que ele agiu contra o jovem atleta negro, vindo de Bauru e dos Santos, por racismo.

No filme, porém, a relação entre Mazzola e Pelé é rápida e generosamente resolvida à medida que os triunfos do Brasil vão se consolidando. O palestrino irá abraçar o colega e constatar que estava errado. Os brasileiros não eram “selvagens”, nem inferiores, e iriam ganhar a Copa em solo europeu, derrotando robustos atletas nórdicos.

Há outras liberdades narrativas no filme. Mas não são graves. São apenas simplificadoras. Feitas estas ressalvas, vale constatar que o filme tem bom ritmo, bom elenco (os dois Pelés, o infantil e o juvenil, seguram o tcham, embora o mais novo, interpretado por Leonardo Lima de Carvalho, filho adotivo de Lázaro Ramos e Taís Araújo, na série “Mr Brau”, se saía melhor que Kevin de Paula). Milton Gonçalves interpreta o olheiro Waldemar de Brito com o talento costumeiro. André Mattos está bem na pele do técnico Lula, que treinou o jovem Pelé no Santos Futebol Clube. Rodrigo Santoro aparece como um relâmpago em cena secundária (faz um locutor esportivo). Só Felipe Simas não convence como Garrincha (faltam semelhança física e carisma).

Elenco internacional completa o time de atores brasileiros: Vincent D’Onofrio se sai bem como Feola (embora o construa como um carrasco e todos digam que o gordo era muito do bonachão), o irlandês Colm Meaney (que conhecemos dos longas de Stephen Frears) faz o técnico da Suécia. No filme, em uma coletiva de imprensa, um sueco protagoniza cena inimaginável ao enumerar os defeitos físicos dos jogadores brasileiros, para tachá-los de inferiores. Tudo para que a tese do roteiro – mestiços selvagens derrotarão seu complexo de vira-latas e, com ginga, vencerão os apolíneos europeus – seja reforçada didaticamente.

Os momentos de humor de “O Nascimento de uma Lenda” perdem para os melodramáticos. No melhor deles, o jovem Pelé presenteia a mãe com um fogão a gás. Mas este combustível ainda não chegou a Bauru. Dona Celeste promete dar nova utilidade ao fogão, transformando-o em uma mesa. No quintal da humilde casa da família, em Bauru, o Dondinho de Seu Jorge e o Pelezinho de Leonardo Carvalho treinam com mangas, fazendo curiosos malabarismos. As sequências são ótimas.

Outro bom e lacrimogêneo momento deve emocionar, em particular, os alvinegros mineiros (torcedores do Galo) e os santistas do Peixe: Dondinho, também jogador, chegara ao Clube Atlético Mineiro, na primeira divisão. Mas sofreria contusão tão grave, que teria que abandonar o esporte em definitivo. Vestido com o escudo do CAM, e derrotado, Dondinho abraça o filho e os dois choram.

Será que “Pelé, o Nascimento de uma Lenda” fará sucesso no Brasil? Afinal, por aqui, filme protagonizado por boleiros não costuma ir bem nas bilheterias. Wilson Feitosa aposta no longa da dupla Zimbalist por entender que “eles fizeram um filme humano, de superação, que emociona a todos”. Registre-se que o longa estadunidense tem muito de dois filmes da O2 brasileira: “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, e “Ginga”, de Marcelo Machado, Tocha Alves e Hank Levine. E, até, algumas pitadas de “2 Filhos de Francisco”.

Pelé, o Nascimento de Uma Lenda (EUA, 2016)
Diretores: Michael e Jeff Zimbalist
Elenco: Leonardo Carvalho, Kevin de Paula, Seu Jorge, Mariana Nunes, Milton Gonçalves, Felipe Simas, Diego Boneta, Vincent D’Onofrio e Colm Meaney. Pelé e Rodrigo Santoro fazem participações relâmpago.
Duração: 107 minutos
Censura: livre
Distribuição: Europa Filmes
Estreia: 29 de outubro

Por Maria do Rosário Caetano

 

2 thoughts on “Fábula gringa em ritmo de cinema de lágrimas

  • 20 de outubro de 2017 em 01:03
    Permalink

    Não sei para que Santoro entrou nisso!
    Entrou mais por um pedido do próprio Pelé, e lembrando que fizeram esse filme antes da Copa, e sabe-e lá pq não lançaram.
    Então, Santoro nem tinha feito Focus, que ficou em 1 lugar na Gringa, onde ele luta com Will Smith pela Margot Robbie.
    Não tinha feito Ben-Hur e muito menos Westworld, onde o personagem dele,Hector é um dos mais queridos pelo público mundial, a ponto de até jaqueta do personagem estar sendo vendida nas lojas americanas.
    Fora os memes americanos.
    Então, realmente, o Santoro não precisava ter entrado nisso aí.
    Mas, foi a época.

    Resposta
  • Pingback: Fábula gringa em ritmo de cinema de lágrimas - Mega Buzz

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.