Festival É Tudo Verdade 2018

O É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários chega à sua vigésima-terceira edição, de 12 a 22 de abril, em São Paulo e no Rio, como poderosa vitrine do que de melhor se produziu, no último ano, no Brasil e na América Latina. Sem esquecer importantes momentos da produção internacional.

O festival, criado pelo crítico de cinema Amir Labaki, vai mostrar 55 filmes distribuídos em cinco mostras competitivas (Longas Brasileiros, Longas Latino-Americanos, Longas Internacionais, Curtas Brasileiros, Curtas Internacionais), em três Sessões Especiais e na Retrospectiva Pamela Yates, realizadora norte-americana, discípula do mestre Haskell Wexler.

O Brasil comparece com safra das mais promissoras. Realizadores jovens e experientes se somam para apresentar filmes que abordam temas candentes como o impeachment (“O Processo”, de Maria Augusta Ramos), o atentado do RioCentro (“Missão 115″, de Sílvio Da-Rin), o ano em que Che Guevara sumiu do espaço público (“Che, Memórias de um Ano Secreto”, de Margarita Hernandez) e a violência policial no Rio de Janeiro (“Auto de Resistência”, de Natasha Neri e Lula Carvalho). Também sobre a violência, mas no seio da família, atua Cristiano Burlan, vencedor do É Tudo Verdade 2013 com “Mataram meu Irmão”. Agora, ele faz a anatomia de outro crime, aquele que, em 2011, abreviou a vida de sua mãe, Isabel Burlan Silva. O novo filme, fecho de sua Trilogia do Luto, chama-se “Elegia de um Crime”.

Completam a competição brasileira, um ensaio poético de Cao Guimarães, “A Espera”, um mergulho de Luiz Bolognesi na vida espiritual da nação Paiter Suruí, com “Ex-Pagé”, e uma cinebiografia, dirigida pelo crítico Mário Abade, “Neville D’Almeida, Cronista da Beleza e do Caos”.

No terreno das cinebiografias, tão caras ao documentário brasileiro, o É Tudo Verdade tem mais a mostrar. Em suas noites inaugurais, em São Paulo (dia 11 de abril), será apresentado, no Auditório do Ibirapuera, “Adoniran – Meu Nome é João Rubinato”, de Pedro Serrano. No Rio (dia 12, na Cinemateca do MAM), se verá o mais carioca dos atores e diretores brasileiros, Hugo Carvana (1937-2014). O pai do vagabundo Secundino Meirelles terá sua trajetória revisitada pela montadora e cineasta Luelane Loiola Corrêa. Para evitar solenidade, algo detestado pelo ator, ela até simplificou o nome para Lulu Corrêa. Diretora do delicioso “Como se Morre no Cinema”, sobre a cachorra Baleia de “Vidas Secas”, Lulu consagra ao humor o mesmo amor do amigo Carvana.

A trajetória de Adoniran Barbosa (1910-1982), o mais paulistano dos compositores de São Paulo, autor do hino extra-oficial da cidade (“Trem das Onze”) deve comover a plateia como doces e irreverentes lembranças. Adoniran se foi há 35 anos, mas segue na memória de muitos graças a seus sambas-reportagem. Foi também ator, inclusive em “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, e teve passagens hilárias pela TV. É de antologia sua participação no programa “O Fino da Bossa”, de Elis & Jair, que até virou disco.

A competição Latino-Americana contará com “Che, Memórias de um Ano Secreto” (o filme disputará, portanto, dois prêmios) e mais seis títulos: o argentino “Amarre seu Arado a uma Estrela”, de Carmen Guarini (também selecionado para a competição internacional), o colombiano “Cartucho”, de Andrés Chaves Sánchez, o uruguaio-argentino “Não Viajarei Escondida”, de Pablo Zubizarreta, o mexicano “Regresso à Origem”, de María José Glender de Mucha, o chileno “Roubar a Rodin”, de Cristóbal Valenzuela, e o uruguaio “A Flor da Vida”, de Claudia Abend e Adriana Loeff.

O filme da cubano-brasileira Margarita Hernandez tem mesmo alma latino-americana. Afinal, se ocupa do ano em que Che Guevara se preparou para iniciar, incógnito, sua aventura nas selvas bolivianas. Com férrea disciplina, ele se submeteu a transformações físicas significativas. Um de seus “transformadores”, o dentista e agente secreto cubano, Fisín, visitou, poucos anos atrás, o Cine Ceará, festival que tem Margarita em seu núcleo curatorial. E contou o que fez para modificar o rosto (em especial, a arcada dentária) do mais famoso guerrilheiro do mundo. Fisín é peça-chave no filme.

De outra realizadora latino-americana, há muito dedicada ao cinema documentário, Carmen Guarini, veremos Che Guevara como tema secundário e um de seus conterrâneos e admiradores, o cineasta Fernando Birri (1925- 2017), como personagem central. Em 1997, Birri, cidadão do mundo (daqueles que diziam que sua pátria eram seus sapatos), regressou à Argentina para realizar mais um filme sobre o guerrilheiro, “Che: Morte da Utopia?” (o primeiro fora “Mi Hijo, El Che”, de 85). Carmen fez uma espécie de making of das filmagens e seguiu entrevistando o diretor de “Los Inundados”. Acompanhou-o até sua tranquila passagem, ocorrida em dezembro do ano passado. Birri tinha 92 anos e as inquietações de um adolescente.

Outro título da competição latino-america se mostra intrigante: aquele que acompanha a trajetória da escritora e poeta uruguaia Blanca Luz Brum (“Não Viajarei Escondida”). Esta mulher, que viveu 80 anos (de 1905 a 1985), correu mundo e participou de movimentos intelectuais, artísticos e políticos, foi discípula do marxista José Carlos Mariátegui, mulher do muralista mexicano Siqueiros, amiga de Perón e apoiadora de… Pinochet.

Na competição internacional, um título promete tirar o fôlego dos admiradores de um dos maiores filmes políticos de todos os tempos: “A Batalha de Argel”, produção ítalo-argelina, dirigida por Gillo Pontecorvo, em 1965. O documentário franco-suíço, que chega ao É Tudo Verdade — “A Batalha de Argel, um Filme Dentro da História” — relembra, ao longo de 117 minutos, sob a direção de Malek Bensmail, a trajetória do longa-metragem que recriou parte da luta de libertação da Argélia (do jugo francês), três anos depois do triunfo dos insurgentes. Acabou censurado em muitos países. Na França, sua interdição durou décadas. “A Batalha de Argel” foi usado até como material didático na Escola das Américas, mantida pelos EUA no Panamá, para formar quadros de combate a revoluções e revoltas. Os alunos, futuros torturadores, aprendiam a identificar técnicas de insurreição (dos argelinos) para saber como melhor combatê-las. O mesmo É Tudo Verdade exibiu, em 2003, um ótimo documentário (“Os Esquadrões da Morte – A Escola Francesa”), que destacava o uso de “Batalha de Argel” como modelo necessário ao combate de insurgências.

Os outros onze concorrentes internacionais são o chinês “Canções de Pequim”, de Milena Moura Barba; os norte-americanos “Sammy Davis Jr – Eu Tenho quer Ser Eu”, de Sam Pollard, “Naila e o Levante”, de Julia Bacha, e “Filmmakers Unite: Uma Resposta Coletiva ao Governo dos EUA”, de Ellen Bruno & Jay Rosenblatt, os dinamarqueses-finlandeses “O Distante Latido dos Cães”, de Simon Wilmont, e “Aquele Verão”, de Goran Olsson; o francês “As Crianças da Rua Saint-Mur”, de Ruth Zylberman, o holandês “Amor é Batatas”, de Aliona van der Horst, o germânico-brasileiro “The Cleaners”, de Hans Block e Moritz Riesewieck, o brasileiro-germânico “Zaatari – Memórias do Labirinto”, de Paschoal Samora, e o argentino “Amarra seu Arado a uma Estrela”.

A competição de curtas brasileiros — que dá direito ao vencedor de participar das prévias do Oscar (o mesmo direito se dá ao vencedor da competição de curtas internacionais) — reúne nove títulos. O mais impressionante deles, a se julgar pela sinopse, vem de MG: “Arara – Um Filme sobre um Filme Sobrevivente”. O diretor Lipe Canêdo trabalhou tema sugerido pelo épico “Martírio”, de Vicent Carelli: o uso de indígenas no combate à guerrilha durante a Ditadura Militar (1964-1984). A partir de filme de Jesko Von Puttkamer, cujo poderoso acervo de imagens encontra-se em Goiás, o cineasta mineiro mostra a Guarda Rural Indígena aprendendo técnicas de tortura. Daí que o “arara” do título nada tem a ver com pássaros, nem com os imensos cabides de roupas, nem com os migrantes que partiram em caminhões pau de arara. Guardemos, pois, este termo “pau de arara”.

Os outros concorrentes são os paulistas “Sem Título # 4: Apesar dos Pesares, na Chuva Há Cantares”, de Carlos Adriano, “A Casa de Catharina”, de Felipe Arrojo Poroger, “Sobre Imagens e Semelhanças”, de Felipe Tomazelli e Ricardo Martensen, e “Tetê”, de Clara Lazarin (sobre a cantora Tetê Espíndola e sua relação com a natureza), os pernambucanos “Mini Miss”, de Rachel Ellis, e “Nome de Batismo”, de Tila Chitunda, o carioca “Inconfissões”, de Ana Galizia, e o gaúcho “Catadora de Gente”, de Mirela Kruel.

A competição de curtas internacionais compõe-se também com nove títulos: “A Boa Educação” (China/França), “As Elegias do Kodachrome”(EUA), Las Nubes”(México), “O Intérprete” e “Poeira”(ambos da Holanda), “Por Fora: Paz, por Dentro: Guerra”(Alemanha), “Ressonâncias”(Líbano), “Sílica”(Austrália), e “Trainspotter”(Argentina/República Tcheca).

O Festival é Tudo Verdade tem entrada franca para todas as sessões. Este ano, em Sessão Especial, serão exibidos, além do aguardadíssimo “O Processo”, de Guta Ramos, os longas “68″, de Patrick Roitman (França), sobre o ano das rebeliões, de Paris ao Vietnã, da Tchecoeslovaquia à América Latina, e “Cinelândia Paulistana”, de Renato Brandão, sobre os cinemas das avenidas São João e Ipiranga, que em sua década áurea (a de 1940) chegaram a somar dezena e meia de majestosas salas.

A documentarista norte-americana Pamela Yates, apaixonada pela América Latina como seu mestre, o cineasta e diretor de fotografia Haskell Wexler (1922-2015), terá vários de seus filmes exibidos. Destaque para a Trilogia Guatemalteca, à qual dedicou 35 anos de sua vida. Pamela participará também de debate com o público.

Cinco cineastas brasileiras — Helena Solberg, Marília Rocha, Dainara Toffoli, Maria Ribeiro e Andrea Pasquini — terão seus filmes exibidos em mostra on-line exclusiva no site do Itaú Cultural. Dois novos espaços, o IMS (Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista) e o Sesc 24 de Maio passam a integrar o circuito paulistano do festival.

 

Por Maria do Rosário Caetano

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