Como mudar os números?

O cinema brasileiro comemorou, em 2017, um número recorde de produção, mas esses números não acompanharam as bilheterias. Identificar e conquistar o público brasileiro com filmes nacionais continua sendo uma meta difícil de alcançar. Um estudo sobre o impacto econômico do setor audiovisual de cinema brasileiro, realizado pela Tendências Consultoria Integrada, em outubro de 2016, constatou que havia um enorme potencial de crescimento da área, mas que seriam necessárias mudanças de paradigmas. Verificou, através dos números, que as políticas públicas podiam contribuir, decisivamente, para a superação dos desafios e dos gargalos encontrados na indústria cinematográfica brasileira. Com a adoção dessas políticas, o setor poderia atingir a sua tão sonhada consolidação.

Mas, diante dos números divulgados pelo Informe Preliminar da Agência Nacional de Cinema (Ancine), relativos ao ano de 2017, esses desafios constatados pelo estudo da Tendências se tornaram ainda maiores. Não foi um ano fácil para o cinema brasileiro, como alguns números revelam. Houve uma queda acentuada na venda de ingressos, em comparação a 2016, de 43%, equivalente a 17,4 milhões de ingressos vendidos. Enquanto que, em 2016, vendemos por volta de 30,4 milhões de ingressos. Não se pode esquecer que 2016 foi um ano fora da curva, por causa da bilheteria “questionável” do filme “Os Dez Mandamentos”, que vendeu 11,3 milhões de ingressos. Mas, mesmo excetuando a bilheteria do filme da TV Record, houve uma queda na bilheteria dos filmes nacionais.

“Minha Mãe é uma Peça 2”, lançado no final de 2016, foi o único longa-metragem a obter uma boa bilheteria, no ano passado, com aproximadamente 7 milhões de espectadores

E o que é preocupante, quando se verifica que, em 2017, mais filmes brasileiros chegaram às salas de cinema; um número recorde de 158 filmes, entre longas ficcionais e documentários. E mais salas de cinema foram abertas, 3.220 salas, um aumento do parque exibidor que quase igualou a marca histórica do ano de 1976. Outro número preocupante no Informe Preliminar da Ancine foi a queda da participação do cinema brasileiro nas bilheterias de 2017, o mais baixo dos últimos dez anos, 9,6%.

Ausência de filmes mais competitivos

Para Bruno Wainer, diretor da distribuidora Downtown Filmes, esses números favoráveis de aumento de salas no mercado cinematográfico e de lançamentos de títulos brasileiros precisam ser relativizados. “Não adianta crescer [o parque exibidor] artificialmente. Nesse negócio, manter é mais desafiador que construir. Em relação ao número de lançamentos de 2017, ele é enganoso. Destes 158 títulos, só houveram 10 a 15 lançamentos com possibilidade de sucesso comercial. E por quê? A resposta é a mesma para várias perguntas; só aumentaremos a participação no market share, quando houver uma opção definitiva pela competência e pelo mérito”.

Bruno Wainer: “Apenas um número ínfimo de filmes é competitivo comercialmente, não mais que 10 a 12 filmes por ano, enquanto chegam à nossa telona 150 filmes mais bem produzidos e distribuídos pelas majors”

E de market share, a distribuidora de Bruno Wainer entende. Dos 10 filmes nacionais de maior bilheteria, em 2017, oito foram lançados pela parceria entre a Downtown e a Paris Filmes. Com 15 lançamentos, dos 158 títulos, eles venderam 80% dos ingressos, o que equivale a 75% da renda bruta, ou seja, ¾ da renda total. O problema, segundo Wainer, é que se produz mal no Brasil. “Apenas um número ínfimo de filmes é competitivo comercialmente, não mais que 10 a 12 filmes por ano, enquanto chegam à nossa telona 150 filmes mais bem produzidos e distribuídos pelas majors. É uma luta desigual. Quando essa safra mínima não é boa, a casa cai, não há peça de reposição”, explica.

Igor Kupstas, diretor da O2 Play, distribuidora de cinema, VOD, TV e vendas internacionais da O2 Filmes, afirma que essa oscilação da nossa participação nas bilheterias da indústria de cinema é natural, porque o setor vive de fenômenos para fazer um blockbuster, que não é uma tarefa simples e nem barata. “Ainda temos grandes desafios referentes ao tamanho do nosso circuito (poucas salas) e distribuição. Me preocupa também a falta de uma regulamentação para o VOD e uma plataforma brasileira de VOD focada para nossos filmes”. Ele lembra que a concorrência estrangeira tem muito dinheiro e know-how, o que torna difícil a disputa no mercado exibidor tradicional dos circuitos dos multiplexes dos shoppings. E destaca outros circuitos alternativos, como o reforço de salas em centros de cultura, salas públicas de exibição, projetos de exibição alternativos”, pontua.

Igor Kupstas: “Impossível seguir um planejamento grande de produção ou lançamento, sem a segurança de ter o dinheiro na conta para pagar os fornecedores”

Há saídas para fugir do gargalo das salas de cinema

Concentração de salas em shoppings, os multiplexes, e a dominação das majors na distribuição dos filmes no Brasil são a tônica dominante do mercado nas últimas duas décadas, esclarece Marcelo Ikeda, realizador, professor do Curso de Cinema e Audiovisual da UFCE e autor do livro “Cinema Brasileiro a Partir da Retomada – Aspectos Econômicos e Políticos”, da editora Sumos. Ele também entende que as políticas públicas implementadas pela Ancine foram determinantes para que chegássemos a essa participação entre 10% a 20% do market share. “Eu confesso que acho difícil sair desse patamar, porque hoje existe outra configuração do mercado exibidor; estruturas de multiplex, que é concentrado em três ou quatro players que dominam o mercado exibidor, sendo que a maioria é multinacional. É um modelo que estimula as majors, porque elas têm escala de produção. Quando você tem um multiplex, com 12, 18 salas, fica mais fácil o exibidor marcá-las com uma distribuidora que tem uma carteira grande de filmes”.

Marcelo Ikeda considera que o market share não é necessariamente um único indicador para medir o sucesso de uma política do audiovisual, nem o principal. Para ele, os filmes brasileiros podem ser consumidos de outras formas, para além do pagamento de um ingresso, por outras janelas, outros lugares de exibição, além do multiplex. “É fundamental o governo pensar em outros segmentos de mercado, como produtos para televisão e para vídeo sob demanda (VOD), e não concentrar todas as atenções e esforços para ocupação de salas de cinema de multiplex”. Ele diz que, hoje, mesmo com o sucesso do DOCTV, realizado pela Ancine há alguns anos, não se tem uma programação pensada para as TVs públicas. “Ela é uma possibilidade de consumo de parte da produção do audiovisual brasileiro. Essa produção é complementar a esse modelo de consumo nas salas de cinema”.

Mudança de paradigma?

Os últimos editais divulgados pela Ancine, em particular, os que anunciaram o montante de R$ 471 milhões para seis linhas de financiamento, lançados em 12 de março, segundo Christian de Castro, diretor-presidente do órgão, foi elaborado para agilizar e dar transparência aos processos. Entre as mudanças significativas nesses editais, está a divisão somente entre duas linhas de financiamento, com edital seletivo e suporte automático. Esse modelo deverá seguir tanto no PRODECINE quanto no PRODAV, sendo que o financiamento via seletiva atenderá o setor mais cultural, e os projetos financiados pelo suporte automático serão avaliados de acordo com a experiência e resultados dos diretores, produtoras e distribuidores envolvidos, sendo que os valores para um único filme podem chegar, no caso de um filme de grande porte, até R$ 50 milhões. No final do mês de abril, mais uma leva de editais deverá ser lançada, para o cinema e para a TV.

“Mais importante que o valor é a nova mentalidade embutida em algumas dessas linhas de financiamentos. Para os filmes ‘autorais’, foi anunciado R$ 100 milhões, logo não faltará recursos para essa turma. Mas a novidade está no fluxo contínuo automático, em que o acesso aos recursos se fará mediante prova de mérito e competência de diretores, produtoras associadas e distribuidores. Há aí uma quebra clara de paradigma, apontando na direção que considero correta”, analisa Wainer.

O filme “Os Parças” foi um dos poucos que conseguiram, em 2017, passar a marca de 1 milhão de espectadores

Orçamentos maiores nos editais da Ancine, segundo ele, são também bem-vindos, para que se possa produzir mais filmes de ação, fantásticos e de época. Mas é preciso atualizar os valores das rubricas dos orçamentos, que são as mesmas há muitos anos. Porém, ele faz uma ressalva: “Espero que a produção tenha responsabilidade e esteja à altura da confiança que a Ancine está depositando no setor. Os prazos importam menos que a previsibilidade da operação. Só com previsibilidade há planejamento, e planejamento é uma das chaves do sucesso nesse negócio”.

“Uma grande mudança”, avalia Igor Kupstas, crucial, segundo ele, para planejar e executar os projetos aprovados pelo órgão. “Impossível seguir um planejamento grande de produção ou lançamento, sem a segurança de ter o dinheiro na conta para pagar os fornecedores. Somente essa medida será um passo muito importante na nossa indústria”.

A análise que Marcelo Ikeda faz sobre as políticas públicas da Ancine, por meio do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), é mais cautelosa. Ele entende que o perfil de investimento do FSA, basicamente, se concentrou em projetos. As linhas de investimentos estão ligadas à produção de obras audiovisuais tanto para o cinema quanto para a TV, para a distribuição e desenvolvimento.

“Como nossos Pais”, longa de Laís Bodanzky, apesar de ter sido premiado em festivais, também não alavancou nas bilheterias, fazendo menos de 300 mil espectadores © Priscila Prade

“Quando você pensa no Fundo Setorial do Audiovisual, que vise o desenvolvimento do setor como um todo, é preciso ter outros tipos de investimento que perpasse essa ideia de investimento em projeto. É importante investir, por exemplo, em formação e capacitação de produtores, cursos sobre a gestão de negócios audiovisuais, investimento em infraestrutura, em arranjos produtivos locais etc. Ou seja, pensar essa musculatura de um fundo de investimento para não ficar só investindo em projetos audiovisuais. É preciso fazer um estudo da cadeia produtiva do setor, identificar quais são os gargalos, os riscos e as oportunidades. Investir de fato num modelo de desenvolvimento da política audiovisual brasileira. E não simplesmente investir em projetos”, conclui.

 

Por Amilton Pinheiro

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