Cinema perde Roberto Farias

Dois anos atrás, a Academia Brasileira de Cinema homenageou com o Troféu Grande Otelo seu presidente, o cineasta, produtor, distribuidor e gestor cultural Roberto Farias. Os que estranharam a homenagem não sabiam que os acadêmicos prestavam, em vida, um derradeiro tributo ao diretor do clássico “Assalto ao Trem Pagador” (1962) e ao mais conhecido dos presidentes da Embrafilme (e do Concine – Conselho Nacional de Cinema).

Roberto Farias (o único integrante de clã artístico com um “s” a mais no nome, por erro de cartório) estava padecendo de um câncer. Os médicos lhe davam poucos meses de vida. Sobreviveu até esta segunda-feira, 14 de maio. Tinha 86 anos e fora, recentemente, reeleito presidente da Academia, instituição que ajudou a criar. O distribuidor e produtor Jorge Peregrino, vice de Roberto nas últimas gestões, representou a entidade no encontro de Academias de Cinema Ibero-Americano, realizado na Riviera Maya, no México, durante a quinta edição da festa de entrega dos Prêmios Platino. E fez questão de lembrar que “Roberto Farias enfrentava, com garra, a doença e que fora reeleito por todos os seus pares”.

O cineasta-produtor-gestor Roberto Farias, irmão do produtor Riva Faria, do ator Reginaldo Faria, pai dos diretores Lui, Mauro e Maurício, nasceu em Nova Friburgo, na Serra Fluminense, em 1932. Foi para o Rio com o desejo de estudar Belas Artes, mas acabou entrando para o mundo do cinema. Trabalhou como assistente de diretores da linha de frente da chanchada (Watson Macedo, José Carlos Burle e J.B. Tanko). Trabalhou também com o argentino-brasileiro Carlos Hugo Christensen.

Era natural que, tendo a chanchada como escola, Farias realizasse sua estreia no gênero com os filmes “Rico Ri à Toa” (1957) e “No Mundo da Lua” (1958). Antes de dirigir sua terceira e última incursão na chanchada (“Um Candango na Belacap”, 1960), assinaria drama policial que o levou ao Festival de Cannes: “Cidade Ameaçada”, escrito pelo mestre Alinor Azevedo (e por Norberto Nath) e protagonizado por Reginaldo Faria e Eva Wilma.

Com o Cinema Novo vivendo sua erupção criativa na mais alta voltagem, Roberto Farias voltou ao drama com ingredientes sociais: “Assalto ao Trem Pagador”, seu filme mais importante e reconhecido. Contou, no roteiro baseado em assalto que marcou a crônica policial carioca, com a colaboração do repórter e fotógrafo Luiz Carlos Barreto (que neste mês faz 90 anos) e, mais uma vez, com o mestre Alinor Azevedo. O filme alcançou imenso sucesso de público.

Entusiasmado, Roberto resolveu apostar ainda mais no cinema de recorte social. A partir de romance de Hernani Donato, dirigiu “Selva Trágica” (1964), ambientado em plantações de erva-mate na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. O filme não seduziu o público. Roberto resolveu, então, voltar à comédia, pois sempre fora, antes de tudo, um produtor, um estrategista. Baseado em peça teatral de Gláucio Gil, dirigiu (tendo o mestre Ricardo Aronovich na direção de fotografia) a comédia de costumes “Toda Donzela Tem um Pai que é uma Fera”. E reencontrou o sucesso popular. Sucesso que se multiplicaria exponencialmente com a trilogia Roberto Carlos, realizada entre 1967 e 1971: “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”, “Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-Rosa” e “Roberto Carlos a 300 Km por Hora”.

Anos atrás, Roberto Farias enviou à Revista de CINEMA, que levantava as maiores bilheterias do cinema brasileiro, documentação que comprovava o êxito do filme que fechou a trilogia do astro da Jovem Guarda: “A 300 Km por Hora” vendeu 5.058.092 ingressos. Entusiasmado pelas corridas automobilísticas, que tinham em Emerson Fittipaldi um ídolo popular, Farias produziu e dirigiu (em parceria com Hector Babenco), seu único documentário: “O Fabuloso Fittipaldi” (1973).

O sucesso financeiro da Trilogia RC fez da Ipanema Filmes, produtora de Roberto (em parceria com os irmãos Riva e Reginaldo Faria), uma potência. E ele deixou de dirigir filmes para produzir ou coproduzir (e distribuir) sucessos (e fracassos comerciais) como “Os Paqueras”, “Prá Quem Fica, Tchau”, “Os Machões” , “Quem Tem Medo de Lobisomem?” e “Barra Pesada” (todos do mano Reginaldo), “Meu Nome é Lampião” (Mizael Silveira), “Toda Nudez Será Castigada” (Arnaldo Jabor), “Azyllo Muito Louco” (Nélson Pereira dos Santos), “Estranho Triângulo” (Pedro Camargo), “Em Família” (Paulo Porto), “Som, Amor e Curtição” (J.B. Tanko) e dois filmes infantis, “As Aventuras com Tio Maneco” e “Maneco, o Super Tio” (ambos de Flavaio Migliaccio, que os protagonizou ao lado de três crianças, os filhos de Roberto, Lui, Mauro e Maurício).

O sucesso de Farias como produtor e distribuidor o cacifou para assumir, com apoio da classe cinematográfica e apadrinhamento do então poderoso titular do MEC, ministro Ney Braga, o cargo de presidente da Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes). A gestão de Roberto foi marcada por grandes êxitos. O maior deles: a produção nacional chegou a conquistar 33% de seu mercado interno, fato que não mais se repetiria nas décadas seguintes (ano passado, a taxa de ocupação de nosso mercado foi de míseros 9,6%). Filmes como “Dona Flor e seus Dois Maridos”, “A Dama do Lotação” e os protagonizados pelos Trapalhões disputavam posições na lista dos mais vistos com poderosos blockbusters norte-americanos).

Em 1977, Roberto Farias promoveu, no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, concorrido Encontro de Cinematografias de Expressão Lusitano-Espanhola e trouxe ao Brasil, com apoio do Ministério das Relações Exteriores, importantes autoridades do Cinema Ibero-Americano e da África Portuguesa. Para difundir nossa memória cinematográfica, a Embrafilme organizou, também, eclética e sedutora mostra dos “Oitenta Anos do Cinema Brasileiro”. Qual um mascate, o cineasta-gestor (escoltado pelo superintende de comercialização da Embrafilme, Marco Aurélio Marcondes) percorreu dezenas de cidades, país a fora, para divulgar a seleção de filmes que ia de “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, a clássicos do Cinema Novo, de “Bonequinha de Seda” a comédias (levemente) eróticas como “Os Paqueras”, de “O Homem do Sputinik” ao “Pagador de Promessas”. Para Farias, “o cinema brasileiro tinha (tem) que ser visto em sua pluralidade, em suas diferentes propostas”.

Neste momento em que documentos da CIA comprovam o envolvimento do presidente Ernesto Geisel (ao qual Roberto Farias serviu) com o extermínio de dissidentes, há que se evocar frase que ele, Farias, repetiu, muitas vezes: “quando estou com o Governo (despachando com o ministro Ney Braga), defendo os cineastas; quando estou com os cineastas, defendo o Governo”. O realizador e produtor fluminense era um pragmático e jogou papel central no “pacto dos cinemanovistas” com o Governo Militar, em especial com o Governo Geisel.

Ironia do destino: o cineasta que mais serviços prestou ao governo militar, acabou sendo vítima da ala mais dura do regime. Em 1981, ele dirigiu “Prá Frente, Brasil”, um drama quase didático (e televisivo, com elenco de ponta das novelas) sobre os arbítrios do governo Médici, quando a tortura e a eliminação de dissidentes atingiu seu ponto máximo. Como pano de fundo da história de um inocente (Reginaldo Faria) confundido com um guerrilheiro urbano e, por isto, preso e torturado, estava a Copa do Mundo de 1970, quando o Brasil sagrou-se tricampeão com o escrete canarinho. A ala de extrema-direita das Forças Armadas exigiu a interdição do filme e a imediata demissão do presidente da Embrafilme (no caso, o embaixador Celso Amorim, substituto de Farias no cargo). O filme foi proibido e Amorim defenestrado. Depois de delicadas negociações, o “Prá Frente, Brasil” foi liberado e obteve significativo sucesso de público.

Roberto Farias seria, mais tarde, presidente do Concine e só realizaria, como diretor, um filme: “Os Trapalhões no Auto da Compadecida” (1987), que vendeu mais de 2 milhões de ingressos. Passou, então, a integrar os quadros da Rede Globo de Televisão. Na poderosa emissora, dirigiu uma série de programas e, pelo menos, duas minisséries dignas de nota: “Memorial de Maria Moura”, protagonizada por Glória Pires, e “As Noivas de Copacabana”, na qual Miguel Fallabela interpretava um serial killer.

O realizador fluminense deixou, na categoria “cinema de papel”, projeto que abraçou com imensa paixão: o registro de viagem que o presidente Roosevelt realizou na Amazônia brasileira, no começo do século XX, ao lado do indigenista Cândido Rondon. Esta viagem acaba de transformar-se em filme (um doc-fic) de Joel Pizzini e deve ser transformada em série internacional pelo cineasta Bruno Barreto.

Detalhe digno de nota: embora próximo dos cinemanovistas, Roberto Farias nunca foi integrante do “núcleo duro” do movimento. Quem leu o livro-manifesto “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” (Civilização Brasileira, 1964), sabe o que seu autor, Glauber Rocha, pensava de “Assalto ao Trem Pagador”. Para o criador da Trilogia da Terra, o mais famoso dos filmes de Roberto Farias não desconstruía e reinventava a linguagem cinematográfica. Pelo contrário, dialogava com o cinema de gênero, força-motriz da produção norte-americana.

 

Por Maria do Rosário Caetano

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