Maria Gladys encanta Ouro Preto com sua eterna rebeldia e participa do filme “Caixa Preta”

Por Maria do Rosário Caetano, de Ouro Preto (MG)

Só dá Maria Gladys. A atriz, que é a homenageada, este ano, pela décima-terceira edição da CineOP (Mostra de Cinema de Ouro Preto), caiu no gosto dos participantes do festival mineiro, dedicado à preservação e à memória das imagens. Por sua simplicidade, cara lavada, língua solta e jeito jovial, que oculta os 80 anos que completará em 2020, seu reinado se estabeleceu na histórica cidade colonial mineira. Para onde se olhe, lá estará a atriz de “Os Fuzis”, “O Anjo Nasceu”, “Sem essa Aranha” e de quatro filmes de Neville D’Almeida (“Mangue Bangue”, “Piranhas no Asfalto”, “Rio Babilônia” e o remake de “Matou a Família e Foi ao Cinema”).

Tudo começou na noite de quinta-feira, 14 de junho, no centenário Cine Vila Rica. A diretora do festival, Raquel Hallak, lembrou os 80 anos do tombamento de Ouro Preto como patrimônio nacional (mais tarde, a cidade seria tombada como patrimônio da Humanidade) e os 280 anos de nascimento de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, artífice de alguns dos mais belos monumentos sacros de Ouro Preto, a principal e mais preservada cidade histórica do país.

Raquel lembrou, ainda, o tema curatorial desta edição (“Vanguarda Tropical: Cinema e outras Artes”), que evoca e reflete sobre os 50 anos do Tropicalismo. Projeções das mais inventivas e coloridas enfeitavam a tela do velho cinema, acompanhadas de frases de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Torquato Neto, Capinam, Augusto de Campos e outros inventores do movimento. Aquele em que o poeta desfraldou a bandeira para que a amanhã tropical se iniciasse. E algumas das mais belas canções de Gil, Caetano e Cia imantavam o ambiente (com recurso fonográfico ou ao vivo, na voz de dois artistas, ao mesmo tempo, mestres-de cerimônia).

Foi sob acordes tropicalistas que Maria Gladys subiu ao palco, de blusa e calça negras e imaculado par de tênis branco. Sem nenhum vestígio de maquiagem. Além da filha Tereza, foram convidados a estar com ela os amigos, em especial, os cineastas Neville d’Almeida e Geraldo Veloso (este, o montador de vários filmes nos quais ela atuou). Coube a Veloso entregar a Gladys o Troféu Vila Rica.

A atriz recebeu o prêmio com discurso franco, inteligente, inesperado. “Estive (em minha trajetória) trabalhando sempre, mas não tanto quanto queria”. Deu a entender que já entrara nos anos (77, 78?), mas disse preferir não enunciar os algarismos que compõem sua idade, por sentir-se “jovem e disposta a realizar muitos e novos trabalhos”. Lembrou amigos que “não estão mais aqui” e falou da satisfação com os filmes de que participara: “fiz Nelson Rodrigues, trabalhei com Ruy Guerra, Bressane, Sganzerla, com meu amigo Neville, que está aqui”. E, olhando para ele, lembrou que “moça suburbana, foi na adolescência para a Zona Sul, pois queria ser atriz. Leu muito, estudou mais ainda e foi parar no teatro. Sonhava interpretar Tchecov, até, anos mais tarde, ouvir de Neville: ‘Você é uma atriz brasileira, tem cara, fome, medo, sonho para ser a verdadeira atriz brasileira’”. Ela encontraria, então, no grupo do dito “cinema marginal” (Sganzerla, Bressane, Neville, Ivan Cardoso) a sua turma espiritual.

Ainda no palco, Gladys agradeceu aos que a homenageavam com o Troféu Vila Rica, lembrando que desde que recebera o convite, a vida dela mudara. “Não paro mais de dar entrevista, virou uma loucura”. Contou que vive num pequeno sítio na mineira Santa Rita de Jacutinga, na divisa do Estado com o Rio de Janeiro, e que gosta muito dos mineiros e de Ouro Preto. E dos baianos também. E se perguntou: “será que gosto mais dos mineiros ou dos baianos?” E respondeu: “dos dois”. Citou alguns dos amigos nascidos na Bahia: Caetano, Wally Salomão, Capinam. Lembrou que nunca ganhou muito dinheiro com seu ofício. Aliás, “ganhou bem pouco, vida dura”, assinando “raros contratos de trabalho”. Mas que viveu e vive sua verdadeira vocação: o ato de representar. E, antes de descer do palco, bradou: “Lula livre”.

Mal sentara-se junto ao público que lotava o cinema, Gladys foi chamada de novo ao palco para apresentar os dois filmes que a homenageariam: um curta-metragem de Norma Bengell (“Maria Gladys, uma Atriz Brasileira”), e o longa “Sem essa, Aranha”, de Rogério Sganzerla, no qual contracena com Jorge Loredo, o Zé Bonitinho, Helena Ignez e a escultural mulata Aparecida. Subiu ao palco, foi breve em sua fala e contou que trabalhar com Sganzerla era uma loucura: “o Rogério era meio glauberiano, empurrava os atores, jogava a gente na piscina, um gênio muito doido e maravilhoso”. Desceu do palco ao som de “Eu Quero é Botar meu Bloco na Rua”, do capixaba Sérgio Sampaio. E dançou animadamente com amigos e gente da plateia.

“Sem essa, Aranha” conta com participações especialíssimas de Luiz Gonzaga e Moreira da Silva em números musicais e é, talvez, o mais radical dos trabalhos do diretor do seminal “O Bandido da Luz Vermelha”. Um longa-metragem totalmente improvisado, desesperado, agressivo e captado em condições precaríssimas, de guerrilha. Muitas de suas sequências estão fora de foco. Parte significativa da plateia (dois terços do total) deixou a sala ao longo da projeção.

No dia seguinte, em “Conversa com a Homenageada” — encontro moderado pelo crítico Marcelo Miranda e dividido com o cineasta Neville D’Almeida —, Maria Gladys relembrou o louco ano de 1970, quando o filme de Sganzerla foi feito. Na ocasião, ela protagonizava, com Napoleão Muniz Freire, montagem teatral dirigida por Luiz Carlos Maciel, no sofisticado Teatro Maison de France. De dia, participava de “Sem essa, Aranha”. Nas madrugadas, caía na farra com os amigos e bebia todas.

“Um dia”— contou — “chegara em casa, depois de apresentar-me no teatro e de uma noitada daquelas. Pedi a meu pai que avisasse ao Rogério (Sganzerla) que eu estava cansadíssima e que não poderia participar da filmagem naquele momento”. Como tudo era improvisado nas mais inesperadas locações, Gladys não sabia o que estava perdendo. “Era justo o dia em que Luiz Gonzaga gravaria sua participação”, relembra. Afinal, quando acordou, curou a ressaca e soube o que a equipe havia feito naquele dia, quase morreu de arrependimento. “Imaginem, eu perdi a chance de atuar junto com Luiz Gonzaga!”.

Na “Conversa” com Maria Gladys, quem roubou a cena foi Neville D’Almeida. Municiado com uma câmera digital, ele filmou as participações da atriz e, principalmente, as dele próprio. Perfeito (e hábil) performer que é, falou muito. E o que quis. Relembrou longas histórias de seus filmes, nos quais Gladys atuou, chamou os cineastas que hoje fazem o cinema brasileiro de “ariscos ao risco”, “praticantes da caretice” etc., etc. Gladys citou Bruno Sáfadi, com quem ela atuou em “Meu Nome é Dindi” e no documentário BelAir”, como um herdeiro do cinema de Sganzerla e Bressane, principalmente deste último. No que Neville retrucou: “não passa de um genérico de Bressane. O que ele faz não tem nada do cinema de guerrilha que fazíamos”.

O diretor de “A Dama do Lotação” deu um longo depoimento sobre a louca produção/criação de “Mangue Bangue”, primeiro dos trabalhos dele em que Maria Gladys atuou e garantiu que o filme, depois de três décadas desaparecido, foi encontrado num depósito do MoMA, em Nova York. E que gostaria que este filme, o mais transgressor de sua fase inicial, fosse (seja) exibido por sábados seguidos, em sessões à meia-noite.

Em sua derradeira fala na Conversa CineOP, Maria Gladys relembrou sua cena de amor rascante com Nelson Xavier, em “Os Fuzis”: “Fiz teste para o papel. Sonhava em interpretá-lo, mas todos diziam, inclusive o produtor Jarbas Barbosa, que a escolhida seria Nara Leão, então namorada de Ruy. Falei com ela (Nara), que queria muito o papel e ela me tranquilizou, disse que ela não tinha a menor intenção de interpretar a personagem. Fui a escolhida, passei três meses em Milagres, no sertão da Bahia. Só tinha homens no elenco. Além de mim, só a maquiadora Maria Adélia, que era namorada de Nelson Xavier. Fora ele, eu namorei alguns colegas de equipe. E naquela época eu não bebia. Quem bebia muito eram Pereio (Paulo César) e Carvana (Hugo). Só bebi uma cachaça no dia de fazer a cena de amor com o Nelson Xavier. Não improvisamos. Estava tudo pré-estabelecido pelo Ruy (Guerra) e pelo Ricardo Aronovich, o fotógrafo. Ensaiamos bastante e ficou aquela maravilha. Quando vi o filme pronto e o sucesso que ele fez em Berlim (Urso de Prata de melhor direção), pensei que minha carreira ia estourar no cinema brasileiro. Mas não! Passei quatro anos sem participar de novo filme. Até me enturmar com Bressane, Sganzerla, Neville, estes loucos maravilhosos”.

Tudo que Maria Gladys disse foi gravado pela equipe do filme “Caixa Preta”, produção de Wellington Darwin, direção de Sérgio Gag e fotografia de Toni Nogueira. A trinca registrou, também, depoimentos de Geraldo Veloso, Neville d’Almeida, Helena Ignez, Silvio Lana e José Sette de Barros. Vai gravar, ainda, depoimentos de Sérgio Ricardo, Maurice Capovilla, Adélia Sampaio, Júlio Calasso, Orlando Senna, Jorge Bodanzky, entre outros veteranos. “Nossa intenção”— explicou o produtor Well Darwin — é colher trinta depoimentos de artistas e diretores que fizeram o cinema brasileiro dos anos 1960 e 1970. A eles, temos encaminhado três questões: Como sua geração enfrentou os tempos de ditadura militar? Como se processou seu diálogo com o cinema europeu? E seu processo de criação nos filmes que realizou naquelas duas décadas?

O material colhido, segundo o produtor, é “tão rico”, que poderá gerar, além do filme “Caixa Preta”, uma série de telefilmes. E arremata: “será um material vivo, em sintonia com nosso tempo. Nada terá de memorialístico ou saudosista”. Enquanto isto, Maria Gladys, que participa do filme, é arrastada por grupo de estudantes, que vai gravar depoimento dela, enquanto outros a disputam para sessão de fotos. Com sua verve costumeira, ela provoca: “gente, e minha cerveja? Velho tem que beber de dia, para não ter que acordar a noite inteira para fazer xixi”. E senta-se, conformada, num banco, com o casario colonial de Ouro Preto ao fundo, para contar, mais uma vez, a história da menina suburbana, que sonhava ser bailarina, mas sofreu paralisia infantil. A doença deixou (mesmo que leve) sequela na perna esquerda. Não foi bailarina (embora tenha sido, na adolescência, animada dançarina de rock mobilizada por Carlos Imperial), mas tornou-se atriz de teatro, cinema e TV. Sagrado ofício ao qual esta atriz tão brasileira se dedica há mais de seis décadas.

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