Festival de Gramado vive noite em busca da redenção de Simonal

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado

“Simonal”, longa-metragem que marca a estreia do diretor Leonardo Domingues na ficção, reinou absoluto no tapete vermelho e na tela do Palácio dos Festivais, na gelada (os termômetros marcavam 4 graus) noite de apresentação do quarto programa da competição brasileira.

Primeiro, o filme chamou atenção por razões extra-cinematográficas. A principal delas, a badalada presença de Isis Valverde (muito bem-vestida e grávida de sete meses), coprotagonista deste drama musical, ao lado de Fabrício Boliveira. Ela dá vida a Tereza, a louríssima esposa do astro black Wilson Simonal, que Boliveira encarna com paixão e suíngue. Além dos dois, outro astro global desfilou pelo tapete vermelho, o ator (e cineasta) Caco Ciocler. Ao lado do trio, estavam os três filhos de Tereza e Simonal: Patrícia e os músicos Max Castro e Simoninha.

A segunda razão do auê causado pelo filme deve-se, claro, ao seu projeto estético. “Simonal” foi construído para promover, tendo grandes plateias como alvo, a redenção do cantor que conheceu a glória (a ponto de reger coro de 30 mil vozes no Maracanazinho com o hit “Meu Limão, Meu Limoeiro”) e caiu no ostracismo, depois de pedir a um agente do DOPS (a terrível polícia política da era Médici) para aplicar surra (então sinônimo de tortura) em seu contador. O artista supunha que seu funcionário o “estaria roubando”. O banco, afinal, acabara de avisar que ele, Simonal, estava totalmente sem fundos financeiros.

A ficção comandada por Leo Domingues, codiretor do documentário “A Pessoa é para o que Nasce” (sobre as Ceguinhas de Campina Grande) é, em certa medida, um prolongamento do longa documental “Simonal, Ninguém Sabe o Duro que Dei”, de Cláudio Manoel, Calvito Leal e Micael Langer, lançado em 2009. Foi este filme, concebido pelo casseta-e-planeta Manoel, que tirou o cantor e cidadão Wilson Simonal de Castro (1938-2000) das sombras, alguns anos depois de sua morte, ocorrida em São Paulo (aos 62 anos).

O documentário e a ficção foram feitos com apoio total da família Simonal, de Tereza e seus três filhos. Mas, no longa documental, Tereza permaneceu nas sombras. Agora, ela (que está viva e já viu trechos do filme) ganha espaço luminoso na convincente interpretação de Isis Valverde. E o Simonal de Fabricio Boliveira soma sua vigorosa interpretação a desejo explícito de resgatar o artista arremessado no olvido, “principalmente, como registrou Ronaldo Bôscoli, em suas memórias, por ser negro”.

“Simonal” não é uma hagiografia, pois, felizmente, o diretor e seu roteirista (Victor Atherino) oferecem ao público as contradições do ex-cabo do Exército que iniciou sua carreira artística no desconhecido conjunto vocal Dryboys, virou secretário do “pilantra” Carlos Imperial (Leandro Hassum) e estourou nas paradas de sucesso com sua voz privilegiada e suíngue, escorado empresarialmente pelo próprio Imperial, pela dupla Miéle e Bôscoli e por Abelardo Figueiredo.

E que contradições são essas? Além da surra encomenda ao aparelho repressivo da ditadura militar, que torturou um inocente (seu contador), Simonal teria ótimas relações nos meios policiais e atuaria como informante do DOPS, entregando colegas do meio artístico. Estes procedimentos, impressos como cicatriz em sua biografia e que o levariam à ruína, estão no filme. Principalmente a parte do contador, magistralmente interpretado por Bruce Gomlevsky. A parte referente ao estigma de “dedo duro” ganha tratamento mais superficial. Num restaurante, Simonal e Tereza não conseguem uma mesa para o jantar, por encontrar-se já na condição de párias sociais. E uma mulher, ao vê-los, denuncia, em alto e bom som: “Simonal, você dedurou Caetano e Gil”.

Desmontar o erro do cantor em relação a seu contador é impossível. Houve processo na justiça civil, as provas se mostraram abundantes e ele foi condenado a cinco anos de prisão (passou nove dias encarcerado e, favorecido por habeas corpus, pôde cumprir a pena em liberdade). Já a questão da deduragem é controversa e de difícil aferição. Mas foi esta pecha que o marcou pelo resto de seus dias.

No filme, fora a ligeira sequência da denúncia feita no restaurante, o tema só volta à tona durante conversa entre Simonal e Elis Regina (uma criação ficcional do filme?). Elis lembra que ela também foi perseguida por ter cantando num evento militar. No que o filme nos induz à seguinte comparação: ela foi perdoada por ser branca. Simonal, crucificado, por ser preto. A comparação, convenhamos, é desproporcional. Uma coisa é cantar no palco de uma Olimpíada do Exército. Outra, mandar espancar (torturar) um contador. Ou delatar colegas por suas ideias (ou opções) políticas num país mergulhado num regime de exceção.

E por que, mesmo assim, vale a pena ver “Simonal”, a ficção que chegará aos cinemas no primeiro semestre de 2019? Por tratar-se de obra vigorosa, feita com paixão, repertório musical dançante e muito suíngue. Um filme comercial, mas jamais indigente. Sua abertura é arrebatadora. Um carrão de época (meados dos anos 1970) chega a um grande teatro com belas passageiras (mulheres muito bem vestidas, maquiadas e ostentando vistosos penteados). Ali, se assistirá a um espetáculo, mas não sabemos quem estará no palco. Tudo é registrado com maestria por Pablo Baião, o diretor de fotografia, em plano-sequência que cita abertamente filmes como “Os Bons Companheiros”, de Martin Scorsese, e “Boogie Nights”, de Paul Thomas Anderson. O diretor Leo Domingues, ao contrário de tantos colegas, assumiu abertamente estas duas fontes de inspiração. Elas inseminaram, sim, o imaginário fílmico dele e de Baião.

Em outro momento de grande impacto, Simonal deixa seus músicos tocando no palco e 30 mil pessoas, que abarrotam as arquibancadas do Maracanãzinho, cantando, em uníssomo, “Meu Limão, Meu Limoeiro”. Ele sai do teatro e vai tomar um trago num boteco. É acompanhado por vertiginoso plano-sequência. “Gosto mais deste (plano-sequência)”— contou o diretor, com 20 anos de carreira como montador/editor, durante o debate em Gramado —, “pois conseguimos imprimir clima de tensão: será que ele conseguirá voltar em tempo para retomar seu número musical?”

O  filme é uma feliz união de potentes qualidades técnicas e artísticas. O elenco rende bem e por inteiro (Caco Ciocler está ótimo como o agente do DOPS e amigo de Simonal, mesmo caso de Sílvio Guindane, intérprete de colega do cantor dos tempos do DryBoys, e de Mariana Lima, como a vistosa Laura, mulher de Abelardo Barbosa e patronesse do show que abre o filme). A direção de arte de Yurika Yamazaki é um espetáculo à parte, assim como os figurinos, registrados com a exuberância das cores tropicalistas daqueles tempos. A montagem de Vicente Kubrusly e Pedro Bronz, dois craques, atinge ritmo perfeito.

O filme se desenvolve em dois atos: o primeiro, luminoso e musical, sobre a ascensão do artista ao estrelato, o segundo, tenebroso, em todos os sentidos, sobre sua brutal queda, da qual não se reergueu jamais.

A trilha sonora compõe-se, claro, com os maiores sucessos de Simonal, incluindo a emblemática “Não Vem que Não Tem”. Registre-se que coube a Fernando Meirelles resgatar este hit na sacudida trilha de “Cidade de Deus”, fermento do processo de resgate do astro tombado. A trilha incidental é assinada por Simoninha e Max Castro, músicos profissionais.

O filme não alcançou unanimidade em Gramado. Parte da crítica o tachou de superficial por trabalhar com “personagens planos”. O tachou, também, de previsível. Sim, parte da história do filme é muito conhecida, pois ocupou manchetes de jornais e foi rememorada no longa concebido por Claudio Manoel. Mas a ficção livre de Leo Domingues, além de abrir espaço generoso para as mulheres, consegue nos surpreender, sim. Especialmente, em seu maravilhoso e metafórico final (que não nos cabe adiantar, para não cortar o barato de quem poderá ver o filme na Mostra Internacional de São Paulo, em outubro, e no Festival do Rio, em novembro). Ou no circuito comercial, em 2019, quando será lançado pela poderosa dobradinha Downtown-Paris Filmes.

A quarta noite do Festival de Gramado foi, até agora, a que mobilizou maior público (o Palácio dos Festivais estava lotado). Além do filme sobre Simonal, com seu elenco estelar, seria entregue o Troféu Oscarito ao ator paulista Edson Celulari. Antes de receber o belo prêmio, Celulari foi visto na tela trocando dribles com Garrincha (no filme “Asa Branca, um Sonho Brasileiro”, de Djalma Limongi), na pele de um jovem médico, no lírico e pastoral “Inocência” (Walter Lima Jr.), como o safo Max Overseas, na “Ópera do Malandro”, de Chico e Ruy Guerra, e em filmes do gaúcho Paulo Nascimento (“Diário de um Novo Mundo” e “Meu Mundo Não Cabe nos teus Olhos”). E, direto de Buenos Aires, chegaria charmoso e consistente depoimento da cantriz Soledad Villamil, saudando o amigo e parceiro brasileiro.

No palco, já de posse do Oscarito, Celulari avisou: “agora, de mãos dadas com Oscarito, ninguém me segura”. Simpático e sintético, ele avisou que somará aos 40 anos de carreira acumulada, mais 40” (lembremos que ele venceu um câncer). E arrematou: “além de atuar, me aguardem como diretor”.

Um longa argentino, “Recreo”, da dupla Jazmín Stuart e Hermán Guerschuny, trouxe grandes expectativas ao público do Festival de Gramado. Afinal, Hermán estivera, poucos anos atrás, na competição latino-americana, com o longa “O Crítico” e causara ótima impressão. Este filme ganhou alguns Kikitos e foi lançado comercialmente em nosso circuito de arte, com bom desempenho, pela Esfera Filmes. Já “Recreo” promete mais do que cumpre. Ou seja, ao invés de nos deparamos com prometida “comédia ácida”, somos apresentados a uma comédia burguesa e sofisticada, com bons atores, mas incapaz de ir fundo nos temas aos quais se dedica (sexo, amor/desamor conjugal, fraldas de recém-nascidos e filhos adolescentes com seus problemas). Jazmín, a codiretora e co-roteirista, é também uma das protagonistas do filme. “Recreo”, que em inglês ganhou o nome de “Break”, ainda não foi comprado por nenhum distribuidor brasileiro. Lançado na Argentina, ficou entre as dez maiores bilheterias do ano.

Dois curtas brasileiros — o maranhense “Aquarela”, de Thiago Kistenmacker e Al Danuzio, e o paulista “Minha Mãe, minha Filha”, de Alexandre Estevanato, foram exibidos e tiveram boa aceitação. Em especial, por suas temáticas fortes. “Aquarela” nasceu dos trágicos distúrbios que, em 2013, sacudiram o Presídio de Pedrinhas, no Maranhão. Seus protagonistas são um jovem presidário (Al Danuzio) e sua esposa (Luna Gandra), obrigada a submeter-se a um chefe de facção para salvar sua família. Já “Minha Mãe, minha Filha”, protagonizado por Eva Wilma e Helena Ranaldi, tem o Mal de Alzheimer como tema central.

Eva Wilma interpreta mulher idosa que perdeu parte de sua memória (em especial, a recente). Vive sonhando com um baile de sua juventude e cometendo os mais diversos desatinos domésticos. A filha (Ranaldi) desdobra-se entre a perda da paciência, o cansaço e a ternura pela mãe, que exige dela, agora, cuidados “de filha” incapacitada pela doença. Autora do roteiro, Cíntia Sumitani inspirou-se na mãe e na sogra, que se viram arremessadas na função de “cuidadoras amadoras” de parentes idosos e doentes.

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