Margarita Hernández revela o que aconteceu a Che Guevara entre as frustradas experiências no Congo Belga e na Bolívia

Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza

A cineasta brasileira Margarita Hernández, cubana de origem, realizou “Che, Memórias de um Ano Secreto”, longa documental cearense exibido fora de concurso no XXVIII Cine Ceará (Festival do Cinema Ibero-Americano de Fortaleza), na noite da última quarta-feira, 8 de agosto. Esta foi a segunda sessão pública do filme, que estreou na competição do Festival É Tudo Verdade, em São Paulo.

Como era de se esperar, “Che, Memórias de um Ano Secreto”, atraiu significativa plateia ao Cineteatro São Luís e gerou o mais concorrido dos debates do festival cearense. Dezenas de jornalistas brasileiros e hispano-americanos (aos quais somou-se a crítica e pesquisadora francesa Sylvie Pierre) dirigiram à realizadora (e também uma das curadoras do Cine Ceará) uma infinidade de perguntas e questionamentos.

Primeiro, falou-se da presença de guerrilheiros cubanos negros, que, sob o comando de Ernesto Che Guevara (1928-1967), foram com ele lutar a frustradíssima guerrilha no Congo Belga, hoje Zaire. E, depois, estiveram com o Che em Praga, na Tchecoslovaquia. Este país do Leste Europeu é o principal cenário do filme de Margarita Hernández. Afinal, foi lá que Che viveu por seis meses, enquanto era “mascarado” (submetido a grandes mudanças físicas), para dirigir-se, clandestino, à selva boliviana.

Três guerrilheiros negros (Harry Villegas Tamayo, o Pombo, Victor Dreke e Ulises Estrada Lascaille) aparecem no filme de Margarita, com sólidos e polêmicos depoimentos. Militares preparados para as guerras de guerrilha, eles ficaram perplexos com o que viram no Congo: na hora de ir para o enfrentamento, os congoleses, poucos e desorganizados, praticavam rituais místicos com ervas e chegavam a molhar os fuzis. Enquanto os cubanos comiam todo animal que lhes chegasse, via caça, os africanos mantinham certos tabus: havia animais que não comiam de jeito nenhum. Para agravar, Laurent Kabila, o suposto líder guerrilheiro do país de Patrice Lumumba (1925-1961), apareceu no cenário rebelde, por apenas dois dias e, mesmo assim, acompanhado de duas mulheres e muitas garrafas de uísque.

Margarita Hernández afirmou no debate que “os cubanos, embora sejam conhecedores (ou praticantes) de santeria (ritual afro-caribenho)”, estranharam, com toda razão, as práticas dos congoleses. Afinal, “a hora de travar combate armado não combina com práticas de rituais, ainda mais com água capaz de danificar os fuzis”.

Num dos momentos mais dramáticos do filme, Fidel Castro lê carta que Che Guevara lhe endereçara, antes de partir para o Congo Belga, abrindo mão de sua cidadania cubana (ele era argentino), de seu cargo de ministro da Indústria e de um dos comandantes do Exército Cubano. No debate, houve quem afirmasse que Fidel traíra Che ao tornar pública carta de cunho privado.

A cineasta ponderou que a carta não era privada, mas sim um documento oficial, que deveria vir a público quando Fidel Castro entendesse ser chegada a hora. “Naquele momento”— diz Margarita — “Che estava há muitos meses desaparecido e todos cobravam notícias dele. Havia quem insinuasse que fora morto pelos próprios cubanos com quem fizera a Revolução”. Sob pressão, Fidel tornou público o documento.

“Além do mais” — lembra Margarita — “Che era um radical, um defensor ferrenho da luta armada. E Fidel, naquele momento, negociava com a URSS o Acordo do Açúcar (os soviéticos trocariam o produto cubano por petróleo e outros insumos necessários à Ilha, subvencionando o governo revolucionário. Assim o fariam até o início dos anos 1990)”. A ‘Realpolitik’ triunfava em Cuba e Fidel queria trégua com os soviéticos. Che, porém, fizera duras críticas às autoridades de Moscou, em Conferência em Argel (Argélia) e parecia se aproximar dos chineses (marxismo maoísta). O filme mostra duas magistrais sequências da viagem de Fidel à URSS, e da viagem de Che à China (dois jovens de olhos puxados admiram o guerrilheiro com fervor quase religioso).

No debate, foram elogiados os recursos narrativos empregados por Margarita Hernández e sua equipe, que aproximariam o documentário sobre o ano secreto de Che dos thrillers de espionagem. A começar pela lisérgica abertura, que evoca filmes de James Bond (criação do designer basco Unai Guerra, o mesmo de “Lúcio, o Anarquista”, documentário espanhol que fascinou Margarita). E pela potencialização da trilha sonora do mestre cubano, José Maria Vitier, premiado em Veneza por seu trabalho no longa “Um Senhor muito Velho com umas Asas Enormes”, de Fernando Birri, baseado em Gabriel García Márquez.

A diretora concordou. Mantivera, sim, diálogo com o cinema de gênero, pois não queria fazer um filme cansativo. “Meus personagens eram jovens quando foram lutar no Congo, viviam, adrenalinados, aquela aventura guerrilheira. Se eu fizesse um filme desanimado, estaria traindo o que um dos biógrafos de Che, o norte-americano Jon Lee Anderson, chamou de ‘era apocalíptica e utópica’”.

Margarita não quis acumular momentos jocosos no filme, mas preservou o bom humor de um dos guerrilheiros negros, que apresentou ao chefe, Che Guevara, em Praga, dois discos: um de Miriam Makeba, a grande cantora sul-africana, e outro dos Beatles. Che gostou do que ouviu com a intérprete de “Pata Pata” cantar, mas não gostou dos Beatles. “São uns gritões. E afirmou não saber quem eram os astros do rock britânico. Só mudou de ideia quando o companheiro garantiu que “eram rebeldes” e não defendiam a Grã-Bretanha colonialista.

Noutro momento divertido do filme, um guerrilheiro negro, muito alto, bonito e cheio de amor prá dar, começou a conquistar tantas mulheres tchecas, que Guevara o ameaçou, mesmo que em tom de brincadeira. Se continuasse tão sedutor e mulherengo, o devolveria a Cuba e pediria que mandassem um substituto branco. Afinal, estava colocando a segurança do grupo em risco.

Para roteirizar “Che, Memórias de um Ano Secreto”, Margarita Hernández leu todas as biografias de Guevara (em especial, a de Jon Lee Anderson, um de seus principais entrevistados no filme), viu dezenas e dezenas de documentários e algumas ficções (de todos os quadrantes do planeta) e mergulhou em arquivos cubanos, tchecos e franceses, auxiliada pelo pesquisador Enrique Hernández. O material, oriundo de arquivos da antiga Tchecoeslovaquia (hoje República Tcheca), é impressionante e constitui a grande novidade do filme. Afinal, são por demais conhecidas as experiências de Che na Revolução Cubana, no Congo Belga e na Bolívia. Mas sua estada em Praga e seu processo de mascaramento pelo dentista e Coronel Luis García Gutiérrez, o Fisín, constituem a essência e a originalidade do filme.

Nem Jon Lee Anderson, nem Paco Taibo II, nem outros biógrafos de Che se referem a Fisín como o homem que transformou o belo Che Guevara no feioso Ramón Benítez, pacato comerciante uruguaio, calvo, de dentes salientes, levemente corcunda e com quase dois centímetros a mais que Ernesto Guevara de la Serna, o guerrilheiro heróico.

Margarita explica por que: “até 2004, o trabalho do dentista Fisín, um agente secreto e coronel do Exército cubano, estava sob confidencialidade”. A partir desta data, “os documentos vieram a público”. Ao informar-se sobre eles, a cineasta procurou o dentista, profissional renomado no mascaramento e na confecção de documentos falsos (passaportes, em especial), seu conterrâneo, e sugeriu que ele fosse tema de um filme. Um documentário de longa-metragem que ela realizaria. Fisín topou a parada, mas avisou: “Você acabará fazendo um filme sobre Che Guevara, no qual eu aparecerei apenas com um depoimento. É, afinal, a trajetória heróica dele que interessa, não a minha”.

Dito e feito. Fisín ocupa espaço importante no filme, mas quem o protagoniza é o mais famoso guerrilheiro do mundo. Para preencher lacunas do período vivido por Che na bela capital tcheca, Margarita se valeu também de dois textos ficcionais: um de Abel Posse (“Cadernos de Praga“), escritor argentino, e outro de Juan Braun, um extravagante portenho radicado em Praga e autor de novela rocambolesca, intitulada “Che e a Soprano de Praga”.

Braun, vestido como um dandi oriental, garante no documentário, que “Che Guevara viveu uma história de amor com uma cantora lírica tchecoeslovaca”. Como não há provas materiais de tal relacionamento, Margarita preserva o depoimento em sua narrativa, mas não o leva muito a sério. Mesmo assim, Braun já registrou na mídia do país de Milos Forman, que “uma cineasta brasileira realizou um filme baseado em minha novela”.

Em outubro próximo, Margarita Hernández levará “Che, Memórias de um Ano Secreto” ao Festival de Cinema de Morávia. Em abril do ano que vem, irá mostrá-lo no Festival de Cinema de Praga. O filme fará carreira em festivais até ser lançado no circuito comercial brasileiro, em 2019, com distribuição da Arthouse, de Marcelo Maia. Se tudo der certo, em dezembro, Margarita apresentará seu primeiro longa-metragem na quadragésima edição do Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana, sediado em sua cidade natal, onde ela viveu até os 32 anos. “Como Cuba foi essencial na feitura do filme e há grandes profissionais cubanos em nossos créditos técnicos, torcemos para sermos selecionados”.

O imenso material colhido por Margarita Hernández, ao longo dos últimos nove anos — editados em enxutos 79 minutos pelos montadores Leyda Nápoles (historiadora cubana) e pelo brasileiro Mair Tavares — deve dar origem a série de TV em cinco capítulos de 52 minutos cada um.

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