Mostra SP: “Alma Clandestina”

Por Maria do Rosário Caetano

O que se viu na Mostra SP 2018, na noite da última segunda-feira, 29 de outubro, lembrou, em escala menor (800 espectadores no Cine Brasília e quase 200 no cinema paulistano), o que se passou, um mês atrás, na capital brasileira quando da exibição de “Torre das Donzelas”, documentário de Susanna Lira. Ou seja, aplausos calorosos e impressionante comunhão com o filme luso-brasileiro “Alma Clandestina”. Nome, aliás, revelador e de rara contundência.

O diretor do longa-metragem, o português José Barahona, de 49 anos, não pôde comparecer, mas se fez representar por seus atores, a paulistana Sara Antunes e o mineiro Paulo Azevedo, e pelo assistente de direção Henrique Landulfo.

Como está dedicado, em Lisboa, ao lançamento de “Alma Clandestina”, no circuito comercial, Barahona enviou carta para ser lida por sua equipe (ver íntegra do texto abaixo). Vale lembrar que o cineasta já comandara uma produção luso-brasileira, apresentada na mesma Mostra SP, três anos atrás: “Estive em Lisboa e Lembrei-me de Você”, adaptação de romance de Luiz Ruffato, protagonizada por Paulo Azevedo (ele interpreta um operário que deixa sua cidade, no interior de MG, para viver precariamente em Lisboa). O filme foi lançado em nosso circuito comercial.

Já “Alma Clandestina”, este título que diz tudo em duas palavras, vem de escrito de Maria Auxiliadora Lara Barcellos” (Minas Gerais, 1945, Berlim, 1976), estudante de Medicina e guerrilheira brasileira, presa e banida do país. Define-se ela – num dos muitos textos (maioria cartas) que deixou depois de sua curta existência (31 anos), abreviada pelo suicídio – como “uma alma na clandestinidade”.

O documentário, de recorte poético-sensorial de José Barahona, constrói-se com trechos de filmes em que Maria Auxiliadora (Dórinha, apelido pronunciado com “a” aberto pela família, e Dodora, com “ôs” fechados pelos companheiros de guerrilha urbana) teve presença marcante, e também com depoimentos de amigos e familiares (entre eles, o cineasta Helvécio Ratton) e com trechos de “peça teatral” – criada para o filme – encenada por Sara Antunes (como Dôdôra) e Paulo Antunes, o diretor.

A estudante de Medicina mineira, terceiro lugar em disputado vestibular, abraçou a luta armada e pagou com prisão, tortura, banimento (foi para o Chile de Allende, no grupo de 70 presos trocados pela libertação do embaixador suíço Büchner) e com andanças por muitos outros países. Em 1976, dilacerada emocional e mentalmente, jogou-se nos trilhos de um trem, em Berlim.

Dodora teve participação singular e apaixonante em “Brasil – Relatos da Tortura”, documentário que os norte-americanos Haskell Wexler e Saul Landau realizaram no Chile. Depois, um brasileiro, Luiz Alberto Sanz, realizou outro documentário (“Quando Chegar o Momento”) sobre o trágico desfecho da curta existência da militante mineira. E Emília Silveira abriu espaço significativo para a trajetória de Dodora no longa-metragem “70”.

Para garantir a permanência, graças ao poder de armazenar memórias do cinema, Maria Auxiliadora foi tema, ainda, de média-metragem de rara beleza, “Retratos de Identificação”, de Anita Leandro (estudado em texto obrigatório no Livro “Feminino e Plural – A Mulher no Cinema Brasileiro”). Agora, acaba de ganhar um longa-metragem inteiro, e também de ótima qualidade, para que sua memória nunca seja esquecida.

Durante o debate do filme, na Mostra SP, uma espectadora lembrou que existe na Cidade Tiradentes, bairro periférico paulistano, instituição de atendimento médico à mulher, que leva o nome de Maria Auxiliadora Lara Barcellos. Afinal, ela estudou Medicina no Brasil, no Chile e na Alemanha. Estava se especializando em Psiquiatria, quando interrompeu a própria vida. Outra debatedora levantou-se com buquê de flores artesanais para presentear a atriz Sara Antunes (além de grande atriz, Sara companheira e mãe de dois filhos do também ator Vinícius Oliveira, o menino Josué, de “Central do Brasil”, hoje com 33 anos). Os dois atuaram juntos no longa “Se Deus Vier, que Venha Armado”, de Luis Dantas.

Na carta abaixo, escrita no dia seguinte ao triunfo de Jair Bolsonaro, nas eleições brasileiras, José Barahona se manifestou:

Boa noite e obrigado por terem vindo, apesar de tudo… Tinha pensado em escrever estas palavras sem ter em conta a eleição do domingo (28 de outubro), porque afinal de contas estamos numa democracia e numa democracia qualquer que seja o poder vigente podemos sempre dizer o que pensamos. 

Eu não escolhi estrear o filme neste momento. Quando o fiz, estava aflito e preocupado com o processo de Dilma e mais tarde com o julgamento e prisão de Lula e achava que por isso o filme era muito urgente. Mas afinal foi outra coisa que o tornou decisivo: Dora decidiu voltar e nos inspirar na resistência que vamos precisar fazer nos próximos tempos.

Brincando com a minha querida Sara Antunes e com o meu amigo Paulo Azevedo, que fizeram o magnífico trabalho que vão assistir, Sara me dizia que tinha de certa forma “incorporado” Dora, o que sua mãe de santo já lhe havia confirmado. Eu não acredito nessas coisas, desculpem sou cético por natureza. Sara trabalhou muito, e bem, e não teve nada de divino nisso, mas sim todo o seu enorme talento. Acredito que o exemplo de coragem de Maria Auxiliadora nos pode ajudar. E vai-nos ajudar muito na nossa luta pela liberdade e pela preservação da nossa querida democracia. Dorinha quer ser ouvida. Ela procurou a câmara de filmar no Chile e a câmara não mais a largou, porque ela tinha algo para nos dizer. Esse algo está aqui, neste filme. Dora nos diz sobre a forma como decorreu a delação que conduziu à sua prisão: “Medo? Não tive medo. Eu fiquei triste por me sentir enganada”. 

Não estou aí convosco, porque o filme estreou há dois dias em Lisboa, numa sala com mais de duzentas pessoas onde, no início da sessão, descerramos uma faixa pedindo menos violência no Brasil e mais democracia. Foi uma sessão muito forte e emotiva, cheia de brasileiros e portugueses.

Este filme agora é vosso e deixa de ser meu. É o filme que eu devia ao Brasil, que tanto me deu e que tanto me dá. Poderia ter sido um filme da festa da vitória? Talvez não. Mas eu espero que a realidade do Brasil não chegue nunca mais ao extremo daquilo que vão ver e ouvir aqui hoje. Este pode ser sim um dos filmes da resistência. 

Nos dois casos, da vitória ou da derrota, que é o que hoje temos em cima das costas, eu sempre diria sobre o filme resumidamente isto: Nós fazemos estes filmes para que estas coisas nunca mais voltem a acontecer. Estas coisas não podem voltar a acontecer. Nunca mais.

Muito obrigado e boa sessão”.

(José Barahona, diretor de “Alma Clandestina”)

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