Minha Fama de Mau

Lui Farias, diretor da cinebiografia da juventude de Erasmo Carlos, “Minha Fama de Mau”, estreia desta quinta-feira, 14 de fevereiro, gosta de dizer que seu quarto longa-metragem nasceu “há 50 anos”, quando conheceu o Tremendão.

Tal conhecimento, relembra o cineasta, hoje com 60 anos, se deu em momento complicado para o compositor. As relações entre Erasmo e seu parceiro mais famoso, Roberto Carlos, estavam estremecidas. O programa que comandavam na TV, o “Jovem Guarda”, viveria seus momentos derradeiros. Afinal, Roberto se dedicaria, dali em diante, por inteiro, à carreira solo. O Tropicalismo chegava com força total e a MPB se consolidava como força hegemônica. Os shows de Erasmo rarearam e a grana tornou-se escassa. Havia o risco de perder o apartamento em frente ao mar, presente que o outrora menino, muito pobre, prometera à mãe trabalhadora. Queria dar conforto àquela mulher que o criara sozinha (no filme, a vemos em sensível interpretação de Isabela Garcia). O compositor só conheceria o pai aos 23 anos e não estabeleceria relação afetiva com ele.

O autor de tantos sucessos da Jovem Guarda começou, naquele momento difícil, a beber e passou por grave bloqueio criativo. Não conseguia compor. Lui Farias era, quando conheceu Erasmo, apenas um moleque curioso, que acompanhava o trabalho do pai, o cineasta Roberto Farias (1932-2018). Roberto iniciava sua trilogia cinematográfico-musical com outro Roberto, o Carlos (“Em Ritmo de Aventura”/1968, “O Diamante Cor-de-Rosa”/1969, e “A 300 Km por Hora”/1972), filmes que lotariam cinemas pelo país inteiro (o primeiro vendeu exatos 3.912.300 ingressos, o segundo, 2.785.232, e o terceiro, 2.639.174).

Pois foi o diretor de “Assalto ao Trem Pagador” (1962), que reaproximou Erasmo do parceiro Roberto. Farias pai sugeriu ao cantor que compusesse, em parceria com Erasmo, a música de abertura de “Em Ritmo de Aventura”. Do reencontro, nasceu “Eu Sou Terrível” e muitas parcerias que se seguiriam. No primeiro filme, a presença de Erasmo se resumiu à trilha sonora. Nos dois seguintes, ele virou ator.

Quem também passou para a frente das câmaras, ainda criança, foi Lui Farias. Ao lado dos irmãos Mauro e Maurício, ele estrelaria o filme infantil “As Aventuras de Tio Maneco” (Flávio Migliaccio, 1971) e veria Erasmo atuar em mais um filme da família, “Os Machões”, comédia de costumes dirigida por seu tio, Reginaldo Faria.

Voltando ao tempo de maturação de “Minha Fama de Mau”, Lui Farias adota tom mais rigoroso e diz que o filme nasceu, para valer, “há oito anos, quando leu a biografia, escrita pelo próprio Erasmo”. Sentiu, já nas primeiras páginas do livro (Editora Objetiva, 2008) que ali havia um filme. Ocupado com a TV, Lui dirigira, até então, apenas três longas-metragens: “Com Licença, Eu Vou à Luta” (1985), “Lili, a Estrela do Crime” (1988), e “Os Porralokinhas” (2006). A hora de voltar ao cinema chegara.

“Minha Fama de Mau”, que resume os anos de sucesso da Jovem Guarda pelo olhar de Erasmo, tem à frente do elenco um quarteto jovem e talentoso: Chay Suede é um Erasmo Esteves, depois Carlos, bem magrinho (fisicamente, o ator pouco lembra o rechonchudo Tremendão), Gabriel Leone é Roberto Carlos, e Malu Rodrigues, Wanderléia. Bianca Comparato interpreta algumas das muitas mulheres que passaram pela vida do compositor tijucano (Samara, Lara, Clara etc., etc.). Todas mulheres fictícias e de nomes que lembram Nara, o grande amor do artista e mãe de seus filhos. Ela suicidou-se em 1996. Mas “Minha Fama de Mau” não avança no tempo. Ou seja, não registra o marido (de Nara) e paizão de família Erasmo Carlos, que em 2021 fará 80 anos. Narinha aparece apenas nas cenas finais, na pele da camaleônica Bianca Comparato, e em cenas de arquivos domésticos, já nos letreiros.

Jean-Claude Bernardet, professor da USP, gosta de lembrar que as cinebiografias brasileiras, sejam ficcionais ou documentais, costumam esconder as zonas de sombra de seus personagens. Em geral, transforma todos os biografados em santos. Estejam vivos ou mortos.

Como Lui Faria contornou este desafio? Afinal, é impossível falar da juventude de Erasmo sem uni-lo a Roberto Carlos. E, como todos sabem, o autor de “Esse Cara Sou Eu” é o mais zeloso dos mortais quando o assunto é sua própria vida.

Em coletiva à imprensa, em São Paulo, Lui contou que teve total liberdade para realizar o filme que quisesse. Isto, da parte de Erasmo. “Ele me disse que fizesse ‘Minha Fama de Mau’ do jeito que eu quisesse, que só iria assisti-lo quando estivesse pronto, junto com o público. Não participou do roteiro, nem da escolha de atores”.

E Roberto Carlos? Lui, por iniciativa própria, contou que “Roberto leu o roteiro antes das filmagens”. Quando o filme ficou pronto, ele mandou uma cópia para o velho amigo da família Farias. “Não nego”, confessou, “que fiquei muito preocupado”. Ele aguardou a resposta do cantor, que assistiu ao filme e, pela voz de um assessor, avisou que “gostara do que vira, se emocionara, dava os parabéns e liberava tudo”. Alívio geral.

O diretor de “Minha Fama de Mau” foi muito equilibrado em suas respostas aos jornalistas. Muitos insistiram em saber por que um filme rodado em 2015 só chegava agora, quase três anos depois, aos cinemas de todo país (em mais de 300 salas). Seria por causa da minuciosa (e lenta) análise de Roberto Carlos?

Lui não se referiu, em nenhum momento, a possíveis problemas com Roberto Carlos. Para o artista, só guardou elogios. O produtor Marco Altberg, que planejava realizar longa documental sobre Erasmo, resolveu somar forças com o filho de Roberto Farias num só filme. “O tempo que gastamos para realizar ‘Minha fama de Mau’” – garantiu – “foi o necessário para conseguir nossas fontes de financiamento, realizar uma produção de época e montar, com a Downtown, de Bruno Wainer, uma cuidadosa campanha de lançamento”.

Lui só deu algumas pistas de que não foram poucos os cuidados com o filme: “na ilha de edição, sempre que eu trocava ideias com Nathara Ney, a montadora, sentíamos se esta ou aquela cena estava funcionando ou não. Se não estava, refazíamos”. E mais: “Nathara e eu queríamos que cada uma das vinte músicas do filme tivesse função dramática. Queríamos que as canções fossem mostradas inteiras. Mas, num determinado momento, cortamos a segunda parte de “Devolva”, pois temíamos que o filme ficasse muito longo (tem 115 minutos). Só que estava tão envolvente que pedi a ela: recoloque”.

E o cineasta confessou que, depois de ver o filme “umas cinquenta vezes”, ainda chora em três momentos: quando Erasmo mostra o mar para a mãe, suburbana, da janela do belo apartamento recém-adquirido, quando Roberto canta para o parceiro a canção “Amigo” (Você, meu amigo de fé/irmão, camarada”) e quando o tijucano volta à pensão onde morava e reencontra o caderninho no qual escrevia versões de sucessos made in USA.

O filme de Lui Farias soma bons atores, um roteiro destinado a todos os públicos (ninguém verá Erasmo na sarjeta, nem consumindo drogas), um simpático diálogo com as histórias em quadrinho e contextualização de época (com imagens de arquivo, fruto de pesquisa do craque Antônio Venâncio). Mas a narrativa tem progressão dramática e o Tremendão, ou “gigante gentil”, viverá momentos difíceis. Seus maiores sucessos (incluindo “Sentado à Beira do Caminho”) darão ritmo ao filme. Lui só não conseguiu espaço para o grande sucesso “Coqueiro Verde”, pois “não encontrei forma de encaixar esta composição de forma orgânica na narrativa”.

“Quem sabe” – brincou – “fazemos uma Trilogia Erasmo. Como ele tem 600 composições e só usamos 20, temos material para outros filmes”.

Há opção enriquecedora em “Minha Fama de Mau”, principalmente sob o ponto de vista dos atores. Chay Suede, Malu Rodrigues (presença constante em musicais) e Gabriel Leone são, também, cantores. Eles sugeriram – e Lui, depois de consultar os biografados, topou – não dublar Erasmo, Wanderléia e Roberto. Cantariam todos os sucessos interpretados por eles com suas próprias vozes (em “Elis”, Andrea Horta dubla a voz de Elis Regina, e o mesmo acontece com Marion Cotillard em “Piaf”). Erasmo não se incomodou, reafirmando a liberdade que Lui tinha para realizar o filme como quisesse. Roberto e Wanderléia também aceitaram.

“Para nós” – contou Malu Rodrigues – “foi maravilhoso, pois não usar dublagem, mas nossas próprias vozes, enriqueceu nosso trabalho”. A cantriz acredita que “a dublagem distancia, diminui o envolvimento emocional”. E completou: “assistimos a centenas de trabalhos para nos inspirarmos, não para imitar as pessoas reais que estávamos representando”.

Chay Suede, lindo e magrinho, foi pela mesma trilha. Ficou muito feliz em criar o seu Erasmo e cantar as músicas dele, sem tentar imitá-lo. Fisicamente, os dois – ator e compositor – são muito diferentes. Já Gabriel Leone apresenta significativa semelhança física com Roberto e, caracterizado, evoca o artista. Foi assim em “Chacrinha, o Velho Guerreiro” (no qual fez participação especial) e, se tudo der certo, será na biografia de Roberto Carlos, que poderá ser dirigida – se for mesmo transformada em filme – por Breno Silveira. Leone está na torcida e muito feliz com “Minha Fama de Mau”. Afina, pondera, “pudemos, representando e cantando com nossa própria voz, compor a nossa verdade e isto foi libertador. Fugimos da caricatura”.

O produtor Marco Altberg fez questão de lembrar que “os músicos que acompanham os atores no filme integram a banda atual de Erasmo Carlos”. Ou seja, gente muito familiarizada com a música do artista.

Além da trinca que protagoniza o filme, “Minha Fama de Mau” tem três personagens secundários que merecem destaque: o primeiro é Tim Maia, amigo de Erasmo na adolescência tijucana. Juntos, eles roubavam fio de cobre para arrumar grana para os bailinhos do bairro. O ator escalado para o papel – Vinícius Alexandre – é rechonchudo como o desbocado Tião (“não sou Tim, sou Tião”) e talento promissor (formou-se no grupo Nós do Morro, no Vidigal). Destaca-se nas cenas em que aparece (são poucas, pois Tião Maia vai tentar a sorte nos EUA). Para o papel de Candinha, a fofoqueira da era Jovem Guarda, Lui escalou a própria mulher, a cantora Paula Toller (estão casados há 30 anos). E, para o papel de Carlos Imperial, o empresário, compositor e comprador de músicas alheias (além de apropriador de canções do folclore brasileiro), Lui escalou Bruno de Luca. Por sorte, não encheu a bola do rei da pilantragem.

Minha Fama de Mau
Brasil, 115 min., 2019
Direção: Lui Farias
Elenco: Chay Suede, Malu Rodrigues, Gabriel Leone, Bianca Comparato, Isabela Garcia, Paula Toller, Vinícius Alexandre, Bruno de Luca, Luca De Castro, João Vitor Silva.

 

Filmografia de Lui Farias (Nova Friburgo-RJ, 1958)

1971 – “As Aventuras de Tio Maneco” (como ator)
1980 – Maneco, o Super-Tio (ator)
1985 – “Com Licença, Eu Vou à Luta” (diretor)
1988 – “Lili, a Estrela do Crime” (diretor)
2006 – “Os Porralokinhas” (diretor)
2019 – “Minha Fama de Mau” (diretor)

Erasmo Carlos (Rio de Janeiro-RJ, 1941), como ator:

1969 – “O Diamante Cor-de-Rosa” (Roberto Farias)
1972 – “A 300 Km Por Hora” (Roberto Farias)
1972 – “Os Machões” (Reginaldo Faria)
1984 – “O Cavalinho Azul” (Eduardo Escorel)
2018 – “Paraíso Perdido” (Monique Gardenberg)

 

Por Maria do Rosário Caetano

One thought on “Minha Fama de Mau

  • 11 de fevereiro de 2019 em 19:04
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    Texto completo, bem escrito e esclarecedor. Parabéns!!

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