Albatroz

O que levou Bráulio Mantovani, um dos mais festejados roteiristas do país, autor de tramas blockbuster como “Tropa de Elite” (mais de 11 milhões de ingressos) e “Cidade de Deus” (3,2 milhões), a escrever um filme – “Albatroz”, estreia desta quinta-feira, 7 de março – definido por seu próprio diretor, Daniel Augusto, como um “quebra-cabeça”?

O desejo de experimentar, a vontade de correr riscos. E de ser fiel às raízes. Afinal, Bráulio Mantovani, de 55 anos, estudou Literatura na PUC-SP, pós-graduou-se em Roteiro Cinematográfico em Madri, fez carreira como dramaturgo, escreveu o ousado “Carlota/Amorosidade” e, até, desempenhou a função de assistente de Zbigniew Rybczynski. Sim, do atrevido multiartista polonês, que realizou, em 1987, o cult experimental “Step”, instigante intervenção na famosa sequência eisensteiniana da Escadaria de Odessa (“Encouraçado Potenkin”, 1925). Que, nunca é demais lembrar, o britânico Eric Hobsbaun definiu como “os oito minutos mais influentes da história do cinema”.

Bráulio Mantovani, há que registrar-se, trabalhou com Rybczynski nos projetos “The Orchestra” (1990), “Manhattan” e “Washington” (ambos de 1991), em Nova York, onde o polonês passou a brilhar, depois que “Step” virou “cult” planetário.

Voltemos, pois, a “Albatroz”, o mix de “thriller, suspense, mistério e quebra-cabeças” brasileiro, que Bráulio Montavani aproxima de matriz confessa – “Estrada Perdida”, de David Lynch.

O filme, o segundo longa-metragem ficcional de Daniel Augusto, 46 anos, aproximou dois apaixonados por literatura. O cineasta, depois de estudos cinematográficos, fez mestrado em Literatura, na USP, tendo José Miguel Wisnik como orientador. Sua dissertação resultou de mergulho na obra de João Guimarães Rosa. Agora, ele faz doutorado em Filosofia, na mesma USP, tendo Olgária Mattos como orientadora (e a obra de Eric Rohmer como tema de estudo). Com tais trajetórias, parece natural que, juntos, engendrassem projeto pouco convencional. De risco.

A parceria entre Daniel Augusto e Bráulio Mantovani nasceu de prosaicas razões domésticas. Casado com a roteirista Carolina Kotscho, coautora de um roteiro blockbuster (“2 Filhos de Francisco”: 5,6 milhões de ingressos), Bráulio tornou-se amigo do cineasta. Daniel Augusto, colega de velha data de Carolina Kotscho, realizara, com roteiro e produção dela, a cinebiografia ficcional de Paulo Coelho (“Não Pare na Pista: A Melhor História de Paulo Coelho”, 2014). Nascido como candidato a blockbuster, o filme deixou a desejar nas bilheterias (apenas 100 mil espectadores). Da convivência, que se intensificou, nasceu o desejo de realizar “Albatroz”, no qual Carolina Kotscho assina a produção. O trio trabalhou unido.

“Albatroz” enfrentará, com sua trama intrincada, impressa nos planos da realidade, dos sonhos, pesadelos e delírios, um mercado avesso ao filme-cabeça. Afinal, o país vive momento difícil, dominado por brutal anti-intelectualismo e pouco receptivo a aventuras no plano da linguagem.

Os trunfos do longa são suas qualidades técnicas (destaque para a fotografia de Jacob Solitrenick, a direção de arte de Juliana Lobo e a trilha sonora do Instituto) e seu elenco estelar, liderado por Alexandre Nero e Andrea Beltrão. A eles, somam-se Camila Morgado, Maria Flor, Andréia Horta, Gustavo Machado, Marcelo Serrado, Roney Facchini, Bel Kowarick, Paula Picarelli e Martha Nowill. Na distribuição, a Paris Filmes, mais poderosa grife de lançamento (em parceria com a Downtown) de filmes brasileiros.

Na pré-estreia paulistana de “Albatroz”, realizada na maior sala do Cinearte, registrou-se lotação esgotadíssima. Diretor, roteirista, produtores (Loma Filmes) e atores tentaram preparar o espírito da plateia para o que viria a seguir. Com seu humor característico, Bráulio Mantovani preparou jogral especialíssimo.

A primeira a “declamar” foi Andréa Beltrão: “Sejam bem-vindos à pré-estreia do nosso ‘Albatroz’ nesta noite. Antes de iniciarmos a sessão, por favor estejam atentos aos seguintes avisos”:

Alexandre Nero, com a palavra, enuncia o aviso número um: “Nosso ‘Albatroz’ participou, fora de competição, do Festival de Cinema de Havana, no ano passado. Diante desse fato, nosso ilustre chanceler deverá tomar as providências necessárias para que o filme não seja vendido a outros países sem o selo de advertência: ‘Obra suspeita de filiação ao Marxismo Cultural globalista’”.

Andréa Horta prosseguiu com o aviso número dois: “Há pelo menos uma cena no filme que obrigará nossa douta ministra da Mulher, da Família etc., a denunciar ‘Albatroz’ como instrumento de destruição dos mais ‘verdadeiros valores’ da família brasileira”.

Maria Flor e o aviso três: “A douta ministra deverá ainda, em parceria com nuestro ministro de la Educación, esclarecer a população de que o uso de pesquisas de neurociência em ‘Albatroz’ é parte de um complô darwinista para afastar nossas crianças do verdadeiro conhecimento científico propalado pelo Criacionismo”.

Stephanie Degreas, aviso 4: “Nosso bilíngue ministro de la Educación adverte: ‘Albatroz’ contém cena que é uma descarada tática esquerdista para inculcar nas crianças, nos adolescentes e nos jovens a desobediência e o desrespeito pelo dever patriótico de bater continência no ambiente escolar”.

Gustavo Machado, aviso número 5: “O grande guru deverá ensinar ao zero-2 do capitão-presidente que ‘Albatroz’ chafurda nos experimentalismos vanguardistas e nos formalismos estéticos. Desde o advento da arte moderna, tais experimentalismos vêm erodindo o ideal do Belo, tão caro à nossa civilização ocidental. Em outras palavras, porra de arte degenerada”.

Após os avisos, Andréa Beltrão retomou a palavra: “Finalmente, para entender direito essas piadas, vocês terão que ver o filme até o fim. Aproveitem”.

O público assistiu ao filme inteiro. Não houve defecções. Mas as palmas foram apenas protocolares. Os espectadores estavam perplexos. Começou o debate.

Andréa Beltrão e Alexandre Nero, os mais falantes, confessaram-se felizes com os desafios a eles impostos pelo filme. E, bem humorados, contaram que pouco tinham entendido do roteiro, realmente, muito intrincado. Outros atores deram testemunhos semelhantes. Alguns garantiram que, ao ver o filme pela segunda vez, a narrativa parecera mais clara.

O público dará ao filme uma segunda chance? Este é o desafio imposto à dupla Bráulio Mantovani-Daniel Augusto.

E afinal, o que é o quebra-cabeças “Albatroz”?

Seus criadores definem o filme como uma narrativa que apresenta descobertas recentes da neurociência para tecer trama de suspense e ultrapassar as fronteiras entre realidade, sonho e delírio.

O protagonista, o fotógrafo Simão Alcóbar (Alexandre Nero) é casado com a jovem Catarina (Maria Flor), compositora de jingles publicitários. Ele se apaixona pela bela atriz judia Renée (Camila Morgado) com quem viaja a Jerusalém. Na cidade disputada por israelenses e palestinos, ele registra imagens de atentado terrorista frustrado (e mal explicado). As fotos o projetam mundialmente. Só que sua atitude e postura ética passam a ser duramente criticadas: por que, em vez de tentar evitar a tragédia, preferiu fotografá-la?

O famoso (mas questionado) Simão sucumbe à depressão e abandona a fotografia, declarando-se interessado, dali em diante, em fotografar seus sonhos. Ao tentar salvar seu casamento com Catarina e recuperar sua pulsão criativa agora como artista plástico, ele é procurado pela ex-namorada de adolescência e primeiro amor de sua vida, Alícia (Andrea Beltrão), que o convida a realizar seu desejo de fotografar sonhos. Poderá fazê-lo no laboratório da neurocientista Dra. Weber (Andréia Horta).

O filme transforma-se, então, em uma “aventura artístico-científica que se revelará como terrível armadilha”. Afinal, “incapaz de saber se está sonhando ou acordado, Simão enfrentará fantasmas aterradores de seu passado. E se questionará”.

“Albatroz” nos deixará com intrigante pergunta: “estará Simão envolvido em sinistra conspiração política de consequências potencialmente catastróficas?”

Só vendo “Albatroz” com muita atenção (ou duas vezes!) para saber. Vale, também, participar de jogo extra-filme, proposto por sua equipe: acessar vídeos recém-divulgados, nos quais é possível conferir trechos do longa-metragem: https://youtu.be/bntFttgcTokhttps://youtu.be/zBJIdYn-apY e https://youtu.be/ipeMhLk1S6Q.

Albatroz
Brasil, 105 minutos, 2019
Direção: Daniel Augusto
Roteiro: Bráulio Mantovani
Elenco: Alexandre Nero, Andrea Beltrão, Maria Flor e Camila Morgado

 

FILMOGRAFIA DE DANIEL AUGUSTO

2011 – “Fordlândia” (documentário)
2012 – “Mapas Urbanos” e “Lutas Doc” (séries de TV)
2013 – “Amazônia Desconhecida” (longa documental)
2014 – “Não Pare na Pista: A Melhor História de Paulo Coelho” (longa de ficção)
2015 – “O Sinaleiro” (curta-metragem)
2017 – “Incertezas Críticas” (série de TV)
2019 – “Albatroz” (longa ficcional)

 

Por Maria do Rosário Caetano

2 thoughts on “Albatroz

Deixe um comentário para Ivan Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.