Patrício Contreras, um ator de duas pátrias

Por Maria do Rosário Caetano

O ator chileno (e argentino) Patrício Contreras, que recebe, na noite desta quarta-feira, 31 de julho, homenagem do Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, foi calorosamente aplaudido pelo público do CineSesc ao apresentar “A Paixão de Michelângelo”, de Esteban Larraín, um dos sete filmes dos quais participou nos últimos cinco anos.

O desempenho do ator, nascido em Santiago, em 1947, é dos mais sólidos e digno mesmo de aplausos. Ele protagoniza “A Paixão de Michelângelo” ao lado do jovem Sebastián Ayala. Cabe-lhe o papel do sóbrio e discreto Padre Ruiz Tagle, jesuíta enviado pela cúpula da Igreja ao povoado de Peñablanca, interior da Chile, com a missão de entender o que se passa com um jovem “milagreiro”, de nome Michelângelo (Miguel Angel, em espanhol).

O adolescente, de 14 anos, é apoiado pelo velho pároco municipal. Sua imagem angelical e seus transes místicos ajudam a definir seu papel de “filho e porta-voz de Nossa Senhora”. Ou seja, uma espécie de Jesus redivivo. Verdadeiras multidões acorrem ao local e chegam a ver, no céu, nuvens que conformam a imagem da Virgem Santíssima. Comovidos, os fieis procuram, cada vez em maior número, o adolescente “santo” em busca de curas milagrosas.

O jovem Miguel Ângelo encanta-se com a obra escultórica do florentino Michelangelo, em especial com a “Pietá”, ao receber do pároco e protetor um livro-álbum com reproduções do artista. Mas, no mesmo livro, encontrará a fascinante imagem do “David” nu, outra obra máxima do mestre renascentista. O filme insinua, com imensa sutileza, desejo e amor homoafetivos.

A ação de “A Paixão de Michelângelo” se desenvolve ao longo da década de 1980 (de 83 a 88), portanto, na segunda metade do período ditatorial comandado pelo General Augusto Pinochet. As manifestações contra a ditadura começam a se fortalecer e parte da Igreja Católica já apoia os dissidentes. O filme inspira-se em fatos reais. Tanto no campo religioso, quanto político. No final, o público saberá o que aconteceu com o “adolescente santo” em sua vindoura existência civil e profana.

Para a população de Peñablanca e adjacências, só interessa o jovem “milagreiro”, que diz falar diretamente com Nossa Senhora, e o pequeno comércio que se estabelece em torno da fé. Já o interesse por acontecimentos políticos é secundário. O padre jesuíta, que prepara relatório para seus superiores em Santiago do Chile, observa tudo ao seu redor com olhos críticos, cético, embora haja momentos em que se comova com a pregação do jovem “santo”. Ciente de seu dever, ele questiona o pároco do Peñablanca: quem é aquele jovem que leva multidões fervorosas ao monte? Ele faz mesmo milagres ou está explorando a fé do povo, com a conivência da paroquia? Alguém dirá a ele que o pregador adolescente tirou Peñablanca do anonimato, da obscuridade, do esquecimento. Agora, as romarias são notícia em todos os meios de comunicação do país e dinamizam a economia estagnada do pequeno município.

O sacerdote comunitário deve ver estes mesmos aspectos advindos da presença do adolescente milagreiro. Mas responde ao colega Ruiz Tagle, que os romeiros estão felizes e que a ação de Miguel Angel ajuda a ampliar a fé e a devoção à Nossa Senhora. E é isto o que mais importa, pois amplia o alcance da fé católica.

O padre jesuíta segue em busca de informações para enviar seu relatório aos superiores. Num convento desativado, saberá que o adolescente foi abandonado, ainda bebê, pela mãe, e criado por freiras. Saberá, também, que ele sofre pressão de outros adolescentes, pequenos marginais, dedicados a pequenas contravenções. Estes desejam que o “santo” lhes arrume dinheiro, uma parte do muito que suas “visões da Virgem”, no monte, rendem à igreja de Peñablanca. Porém, o mais surpreendente – descobrirá o Padre Ruiz Tagle – é o interesse do governo ditatorial em tirar proveito da fé popular. Uma das falas que o jovem Miguel Ângel transmitirá aos fieis, em nome da Imaculada, ele assegura que “o governo é abençoado” por Nossa Senhora, a mãe de Cristo.

Patrício Contreras lembra que “A Paixão de Michelângelo” se passa no momento “em que o Chile tornou-se o laboratório internacional do neoliberalismo econômico, liderado por economistas da Escola do Chicago, os chamados Chicago Boys”. E que o filme recria fatos reais, com a liberdade que a arte permite. Em especial, destaca, a sequência final, fruto de “criação livre” de Esteban Larraín e seu corroteirista José Roman. Os dois optaram por “um desfecho poético, fundamentado nos mistérios da fé”. Ao subir ao monte de Peñablanca, já sem o hábito sacerdotal, Ruiz Tagle testemunhará algo inesperado.

O ator e intérprete do contido padre jesuíta continua trabalhando no Chile natal e na Argentina adotiva e residindo nos dois países. Ele lembra que, na juventude, viveu um momento de fé. “Sob influência de minha mãe, que era evangélica, comecei a ler a Bíblia”. Mas a vocação artística e o pai agnóstico o levaram a outros rumos. Em especial ao teatro, depois ao cinema e à TV.

Nos anos 1960, Contreras agregou-se ao grupo Ictus e passou a trabalhar intensamente. “Montávamos peças e, também, mantínhamos um programa na TV e no rádio, enquanto vivíamos a contagiante experiência democrática (1970-1973) comandada por Salvador Allende”. Uma experiência, enfatiza, que “ninguém esquece”.

Com o triunfo do golpe militar comandado por Pinochet, o Ictus pôde prosseguir com seu trabalho, mas só no teatro. A situação tornou-se difícil e, por decisão pessoal, Contreras resolveu autoexilar-se na Argentina. “Fomos fazer temporada com uma de nossas montagens, de imenso sucesso, em Buenos Aires e eu, o mais jovem do grupo, entendi que teria mais futuro ali”, relembra. Só que, pouco depois, em março de 1976, triunfaria o golpe militar comandado pelo General Videla. Primeiro o Brasil, depois o Chile e o Uruguai, seguidos pela Argentina. “Naquele momento difícil” – rememora – “fiquei sem saber o que fazer. Deveria regressar ao Chile? Amigos queriam que eu me transferisse para outro país. Como vivia relação amorosa com uma atriz argentina, e teríamos uma filha, decidi que tinha que ficar. E não tive grandes problemas. Só uma detenção para interrogatório, em 1981, que durou 36 horas”.

Com a redemocratização da Argentina (1983) e, depois, do Chile (1990), Patrício Contreras encontrou as condições ideais de trabalho, entre os dois países. Na Argentina, interpretou o professor Benítezem “A História Oficial” (Luiz Puenzo), primeiro filme a render um Oscar ao país platino. Voltou a trabalhar com Puenzo, em “Gringo Viejo” (no elenco, Gregory Peck e Jane Fonda). Ainda em Buenos Aires, Contreras atuou em “Made in Argentina”, de Juan José Jusid (1986). Seu papel neste filme, de apelido El Negro, agregou a ele tal aposto, embora o ator seja branco. “É que” – explica, bem-humorado – “como a origem europeia dos argentinos é muito visível, quem tem os cabelos escuros e a pele morena, acaba sendo chamado de El Negro”.

Contreras já atuou em 150 peças teatrais e fez sucesso na TV argentina com a série “Buscavidas”, na qual interpretou divertido vendedor ambulante de origem chilena. Nos dois países, atuou em 50 filmes. Com a norte-americana Betty Kaplan, fez “De Amor e de Sombras” (a partir de best seller de Isabel Allende) e, com Héctor Olivera, o drama político “No Habrá Más Pena Ni Olvido”, baseado em romance homônimo de Oswaldo Soriano. O conterrâneo Sílvio Caiozzi dirigiu-o em “Cachimba”. Depois de “A Paixão de Michelangelo” (2014), atuou em mais seis filmes: “Calzones Rotos” (exibido na mostra que o Festival Latino SP lhe dedicou), “Dry Martina”, “El Tucho”, “Resurrección”, “Mecânica Popular” e “Niñas Aranha”. Em qual destes filmes Patrício Contreras interpretou seu papel mais complexo e elaborado? Ele responde: “Em ‘La Frontera’, de Ricardo Larraín (nenhum parentesco com Pablo Larraín, de “Tony Manero”, nem com Estebán, da “Paixão de Michelangelo”). Em “La Frontera” – justifica – “interpretei um personagem complexo, que está em 90% das sequências. A verdade dele vem da mirada, já que raramente faz uso da fala, seu registro é o silêncio”. Por isto, acrescenta, “creio que neste filme desempenhei meu papel mais cinematográfico, mais visual, mais físico. Puro cinema”.

“La Frontera” representou o Chile no Festival de Gramado, nos primeiros anos da década de 1990, quando o evento gaúcho tornou-se latino, já que a produção nacional caíra para cinco ou seis longas-metragens por ano. Não havia como encontrar filmes inéditos capazes de alimentar dois festivais com conteúdo brasileiro, como o de Brasília e o de Gramado.

Patrício Contreras, que protagoniza o filme de Ricardo Larraín (1957-2016), dá vida a Ramiro Orellana, professor de matemática, que vê seu ofício profissional ameaçado. O Chile vive os últimos anos da ditadura militar. A Fronteira, que dá nome ao filme, é uma terra desolada, isolada e assolada por catástrofes naturais. É neste lugar que o professor Orellana viverá as feridas do exílio forçado, a separação do filho e amor intenso e contraditório por uma jovem daquele fim de mundo.

O ator, que vem se apresentando em teatros hispano-americanos com o recital “Patrício Contreras Diz Nicanor Parra”, ministrou oficina de Interpretação Cinematográfica a dezenas de paulistanos durante o Festival Latino, torce pelo estreitamento das relações audiovisuais e artísticas entre os países latino-americanos e pelo lançamento de seus novos filmes no mercado brasileiro, seja em cinemas ou no streaming.

ALGUNS FILMES DE CONTRERAS

1983 – “No Habrá Más Penas Ni Olvido”, de Hector Oliveira (Argentina)
1985 – “A História Oficial”, Luiz Puenzo (Argentina)
1987 – “Made in Argentina”, de Juan José Jusid (Argentina)
1989 – “Gringo Viejo”, Luiz Puenzo (Argentina-EUA)
1991 – “La Frontera”, de Ricardo Larraín (Chile)
1995 – “De Amor e de Sombras”, de Betty Kaplan (EUA)
1995 – “El Censor”, de Eduardo Castagno (Argentina)
2003 – “Sexo com Amor”, de Boris Quercia (Chile)
2004- “Cachimba”, de Sílvio Caiozzi (Chile)
2005 – “La Película de Francisco”, de Francisco Campos-López (Argentina)
2005 – “Che, La Eterna Mirada”, de Edgardo Cabeza (Argentina)

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