Ocupação Vlado

Por Maria do Rosário Caetano

A trajetória do iugoslavo, de origem judaica, Wlado Herzog, naturalizado brasileiro com o nome de Vladimir Herzog, é tema de “Ocupação” que será aberta nesta quarta-feira, 14 de agosto, no Instituto Itaú Cultural, na Avenida Paulista, em São Paulo.

Jornalista e cineasta, Herzog entrou para a história brasileira por trágica razão. Aos 38 anos, o então editor do programa “Hora da Notícia”, exibido pela TV Cultura, foi levado, na manhã de um sábado, 25 de outubro de 1975, por agentes da repressão ao DOI-CODI, para prestar depoimento sobre suas atividades políticas.

No mesmo dia 25, à noite, ele estava morto. Comitiva liderada por Rui Nogueira Martins, diretor da TV Cultura, somou coragem para dar a terrível notícia a Clarice Herzog, enquanto os dois filhos pequenos do casal, Ivo e André, dormiam.

Uma foto, então, correria o mundo. O corpo magro de Herzog aparecia enforcado, preso por um cinto a uma janela de vidro. Para tanto, suas pernas estavam dobradas, já que a janela, de tipo vitrô, era muito baixa. Diante de parte do corpo morto (as pernas dobradas), via-se uma cadeira de plástico.

Atestado de óbito assinado pelo legista Harry Shibata fornecia a causa mortis: “suicídio por enforcamento”. A História o desmentiria. Vladimir Herzog fora torturado e morto por agentes do DOI-CODI, que depois encenariam seu “enforcamento”. O velório e enterro do jornalista e cineasta comoveria o Brasil e mobilizaria multidões. Missa ecumênica foi oficiada na Catedral da Sé por representantes de vários credos. Seu enterro não se deu no lugar reservado pelo judaísmo aos suicidas. Mas sim, junto aos demais, pois sabia-se que fora assassinado.

Toda esta história será lembrada na “Ocupação Vladimir Herzog”, a quadragésima-sexta realizada pelo Itaú Cultural (já foram lembrados Antonio Candido, Elomar, Paulo Mendes da Rocha e dezenas de outros grandes brasileiros). A exposição imersiva poderá ser visitada até 20 de outubro.

O visitante será convidado a mergulhar na trajetória do garoto de nove anos que chegou, com os pais, ao Brasil, vindo de sua Iugoslávia natal. Em 1946, com familiares, ele fez a longa travessia oceânica, que durou três meses, no navio Philippa. Os Herzog deixavam uma Europa arrasada pela Segunda Grande Guerra em busca de lugar tranquilo para viver. Quem imaginaria futuro marcado por fato tão trágico?

Vladimir Herzog tinha vinte e poucos anos quando frequentou, com Eduardo Escorel, Arnaldo Jabor, entre outros, curso ministrado por Arne Sucksdorff (1917-2001), realizador sueco premiado com o Oscar. Promoção do Itamaraty, em parceria com a Unesco. Seu entusiasmo pelo cinema era tamanho, que foi com o colega Maurice Capovilla conhecer a Escola Documental de Santa Fé, na Argentina, comandada por Fernando Birri (1925-2017), autor dos seminais “Tiré Dié” e “Los Inundados”. Em 1963, dirigiu seu primeiro (e único) curta-metragem, “Marimbás”, sobre colônia de pescadores no Posto 6, em Copacabana. Ocupou funções técnicas nos primeiros filmes da Caravana Farkas (foi assistente de som em “Viramundo”, de Geraldo Sarno) e esboçou, para o amigo João Batista de Andrade, o primeiro roteiro de “Doramundo”, recriação de romance homônimo de Geraldo Ferraz.

Vlado (sem o W do nome civil registrado na Iugoslávia) gostava de discutir cinema com diferentes interlocutores. Trocava cartas com Alex Viany (1918-1992), contemporâneo de Paulo Emílio e defensor juramentado da existência de uma cinematografia brasileira forte e capaz de denunciar os grande problemas sociais do país. Ao morrer, deixava incompleto seu projeto cinematográfico mais ambicioso: Antônio Conselheiro e a Guerra de Canudos.

Na exposição, o visitante encontrará fotos, objetos pessoais, muitos documentos e, em especial, duas cartas (uma lida por Milton Hatoum, outra por Eva Wilma). Na primeira, o pai de Herzog, o Sr. Zigmund, narra a longa travessia marítima, do Porto de Gênova até o Rio de Janeiro. Na segunda, a atriz dá voz a missiva que Zora Herzog encaminhou, em 1978, ao juiz Márcio José de Moraes, que instara o Estado brasileiro (Governo Geisel) a apurar o crime cometido contra Vlado e a apontar seus autores.

O visitante encontrará, também, as cédulas (arte conceitual) de Cildo Meireles que indagavam “Quem matou Herzog?”, assim como o falso atestado de óbito assinado por Shibata e documentos de instituições nacionais e internacionais (como a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos) que elevam o assassinato do jornalista-cineasta a “crime contra a Humanidade” e responsabiliza o Estado brasileiro por sua execução, seguida de ausência de investigação.

A trajetória de Vladimir Herzog como jornalista é bem conhecida. Ele trabalhou no Estadão e, depois, foi um dos editores da revista Visão. Na TV Cultura, editou o “Hora da Notícia”. À emissora da Fundação Anchieta, ele não voltaria pois, vale lembrar, foi assassinado aos 38 anos.

Para rememorar a trajetória de Vlado no audiovisual, face menos conhecida de seu trabalho, a Revista de CINEMA conversou com o cineasta (e grande amigo do diretor de “Marimbás”) João Batista de Andrade, que fará 80 anos no primeiro dia de dezembro próximo (Herzog era dois anos mais velho). Além de terem trabalhado juntos no roteiro de “Doramundo”, João escreveu e pré-produziu o longa ficcional “Vlado”, que teve sua realização abortada pelo desmonte da Embrafilme durante os Anos Collor. Mas, para lembrar os 30 anos da tortura e assassinato do amigo, conseguiu pelo menos realizar um longa documental (“Vlado – Trinta Anos Depois”, 2005). João conta que, ainda hoje, é procurado por estudantes que pedem trechos do filme para trabalhos universitários ou colegiais.

Há que se registrar, também, o documentário “Eunice, Clarice e Tereza”, de Joatan Vilela Berbel (1979), que documenta a luta de três viúvas de brasileiros assassinados pelas forças repressivas do Estado: Eunice (companheira do deputado Rubens Paiva), Clarice, de Vlado, e Tereza, do operário Manuel Fiel Filho).

Com a palavra, João Batista de Andrade, uma das vozes que poderão ser ouvidas na Ocupação Vladimir Herzog, assim como a de Jean-Claude Bernardet.

João Batista de Andrade

Revista de CINEMA – Que espaço o cinema ocupava na vida de Herzog?  

João Batista de Andrade – O espaço do desejo de uma atividade artística que fosse também política, atendesse à sensibilidade dele com as questões sociais. Por isso, foi com Capovilla para Santa Fé, na Argentina, para conhecer a Escola de Cinema, logo no começo dos anos 1960. Vlado tinha notícias da trajetória de Fernando Birri e, justamente do caráter social (“encuesta social”) de suas propostas e filmes como “Tiré Dié”.

Quando ele fez o curso do Arne Sucksdorff, Vlado pensava profissionalizar-se no cinema?

Sim, o cinema seria seu caminho.

Por que ele só dirigiu um curta (Marimbás)? O jornalismo o absorveu?

“Marimbás”, para mim, deve ser visto como um exercício. Mas Vlado era muito inquieto e extremamente exigente. Abraçou ideias de democratização da sociedade e do socialismo, achava absurdos a miséria e o abandono da imensa maioria do povo brasileiro. Então, domou sua primeira vocação para se apegar ao jornalismo, considerando ser uma área com mais possibilidades de um trabalho político.

O telejornalismo que vocês realizaram na TV Cultura era um tipo de exercício cinematográfico?

Não. Era uma tentativa de se opôr ao comportamento da imprensa perante às questões sociais no Brasil. E mesmo de questionar “verdades” veiculadas através dos famosos “releases” emitidos pela ditadura. Tanto o Vlado, quanto o Fernando Jordão (diretor do programa) e eu tentávamos, de um lado dar respostas e notícias mais próximas dos fatos, sem escamoteá-los ou nos submetermos aos “releases”.

Para todos nós, o povo deveria ser o protagonista do programa. Daí, o entusiasmo do Vlado, do Jordão e de todos, com o meu trabalho, que trazia questões populares para o interior do programa em pequenos filmes que podiam ir de dois, três ou até sete minutos, num programa de quinze minutos. Eu, sim, exercitei o cinema ali, com essas ideias. E fiz isso com um desejo imenso de encontrar uma forma de contestar a ditadura sem que isso fosse imediatamente notado. Desenvolvi o que fiz no meu filme “Liberdade de Imprensa” (1967), apreendido pelos militares no Congresso da UNE, em Ibiúna. Jean-Claude (Bernardet) escreveu bastante sobre esse trabalho e como eu desenvolvi a ideia que ele chamou de Cinema de Intervenção. Eu criava situações, certo de que elas mereceriam depoimentos e declarações populares críticas, mesmo fugindo do ataque direto à ditadura. Assim é “Migrantes” (1973), premiado como melhor filme na Jornada de Cinema da Bahia.

Que papel Vladimir Herzog desempenhou em “Doramundo”?

Vlado foi quem começou o roteiro. Estava desempregado e se dedicou bastante ao projeto, até ser convidado a refazer nosso programa na Cultura. Em 1974, houve uma intervenção no programa e Fernando (Pacheco Jordão), Vlado e eu fomos demitidos. O programa seguiu com o interventor. Defino este período como “fake”. Não era mais retrato de nossas ideias. Quando Vlado foi convidado para refazer o programa, ele foi até minha casa com sua mulher, Clarice, para conversar comigo e contar com minha compreensão para sair do projeto. Claro, eu disse sim, todos achávamos muito importante a reedição do programa. Não podíamos saber da tragédia dessa decisão.

Você abandonou em definitivo seu projeto de longa ficcional sobre Vlado? Seu longa documental aplacou sua dor de não ter feito a cinebiografia dele?

Abandonei. Em 1990, o plano Collor inviabilizou meu filme “Vlado, o Caso Herzog”, com quatro coproduções acertadas e contrato já assinado com a TV Espanhola. E, estando em conversa com o ator Klaus Maria Brandauer, para interpretar o personagem de Vlado. Sofri absurdamente, me refugiei no interior do Brasil. Fiz, anos depois, o documentário, sei e ouço que é um belo filme e que cumpriu um importante papel, inclusive a criação do Instituto Vladimir Herzog.

 

Ocupação Vladimir Herzog
46ª realização do Projeto “Ocupações” do Itaú Cultural
Concebida pela equipe do Instituto, em parceria com o Instituto Vladimir Herzog
Curadoria compartilhada com Luís Ludmer
Destaques relacionados ao cinema: exibição de “Marimbás” e de entrevistas com Jean-Claude Bernardet e João Batista (em vídeo), estudos para roteiros que Vlado não pôde realizar (fotos de viagem à região de Canudos, na Bahia, para documentário sobre Antonio Conselheiro)
Visitação até de outubro, de terça a sexta, das 9 às 21h. Sábados, domingos e feriados, das 11 às 20h
Entrada gratuita

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