Festival de Brasília exibe filme de Francisco Bosco sobre junho de 2013

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

O 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro ensaiava uma noite tranquila, sem protestos. Sessão lotada de “Dulcina”, longa documental sobre a atriz fluminense Dulcina de Moraes (1908-1996), um dos concorrentes da Mostra Brasília BRB, terminara com aplausos calorosos e eufóricos. Mas o que se viu em seguida — o longa “O Mês que Não Terminou”, de Francisco Bosco e Raul Mourão — entornou o caldo.

O documentário de Bosco e Mourão, um dos sete concorrentes ao Troféu Candango, passou pela Mostra Internacional de São Paulo sem maiores polêmicas. Mas, no Cine Brasília, encontrou plateia inquieta, que dialogou com o que via, muitas vezes aos gritos, questionando as opções dos autores. E, no final, vaiou. Não foram vaias estridentes. E houve aplausos, embora protocolares.

A reação de parte da plateia pode ser lida como fruto de perplexidade gerada por quebra de expectativa. O artista Raul Mourão não veio ao festival. O filme foi representado por Francisco Bosco, professor da UFRJ, poeta, parceiro do pai, João Bosco, no belo disco “As Mil e uma Aldeias”, e ex-diretor da Funarte na gestão de Juca Ferreira (MinC). “O Mês que Não Terminou” marca a estreia dos dois realizadores no longa-metragem.

O projeto nasceu ambicioso. Resumir, em 104 minutos, “o processo institucional e social brasileiro, desde as manifestações de junho de 2013 até a eleição de Bolsonaro, investigando a crise do Lulismo, a Lava-Jato, o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão das direitas liberal e conservadora”. No caso do presidente Jair Bolsonaro, Bosco o definiu no palco: ”ele não é um conservador liberal, ele é um conservador reacionário”.

Para dar materialidade ao filme, feito de imagens e sons, Bosco convidou o artista visual e amigo Raul Mourão. Raul, por sua vez, solicitou trabalhos plásticos a artistas como Nuno Ramos, Cabelo, Daisy Xavier, Janaina Tschape, Wagner M. Tavares, Marconi Moreira, Cadu, Gabriel Giucci, Lenora de Barros, Cao Guimarães, Lucas Bambozzi e Pablo Lobato (estes três, também cineastas).
Bosco, por sua vez, partiu de ensaio publicado (por ele) na Folha de São Paulo, cinco anos depois dos acontecimentos de junho/2013, para refletir, com calma e argumentos, sobre o que se passara naquele momento de rebeliões civis, iniciado pelo MPL (Movimento Passe Livre), contra aumento da passagem de ônibus e, em seguida, apossado pela direita, que passou a defender o impeachment de Dilma e o fim do PT (Partido dos Trabalhadores).

Propósito tão desafiador levou Francisco Bosco a convocar, para que fizessem suas análises, economistas (como Marcos Lisboa, Samuel Pessoa, Laura Carvalho), cientistas políticos (Marcos Nobre), psicanalistas (Maria Rita Kehl, Thales Ab’Saber), políticos (a deputada Áurea Carolina), entre outros. No total, uma polifonia de 14 vozes.

Um pesquisador de imagens, o craque Antonio Venâncio, buscou em diversos arquivos trechos de filmes, fotografias, tudo que se referisse ao Brasil de 2013 até 2018, data da eleição de Bolsonaro. A Mídia Ninja cedeu, gratuitamente, seus registros daqueles conturbados dias.

Por que, com material tão rico, Bosco e Mourão fizeram um filme tão convencional? Por que recorreram a narração em off (voz de Fernanda Torres), tão pouco porosa, optando pelo que Jean-Claude Bernardet chama de “a voz do dono”?

No debate do filme, Bosco respondeu, com serenidade e longas explicações, a todos os questionamentos. Registre que “O Mês que Não Terminou” foi o único filme, até agora, submetido a dura sabatina dos espectadores que estiveram na sala de debates, no Mercure Hotel.

“Talvez tenha faltado um diretor ao filme”, admitiu o realizador. E prosseguiu: “não estava na sala de projeção, pois vi o filme tantas vezes, que me dei o direito de ir tomar uma cervejinha com amigos, no espaço de convivência do festival. Mas amigos que estavam na sessão me contaram que fui xingado de ‘liberal’ e até de ‘facista’. Liberal, no verdadeiro sentido da palavra, não é ofensa, pois sou um liberal de esquerda. Entendo que estes dois conceitos não são incompatíveis. John Stuart Mill foi um filósofo liberal preocupado com a justiça social. Já ‘facista’, me parece um despropósito”. Tais excessos — acredita Bosco — “acontecem porque as esquerdas, não liberais em especial, estão muito machucadas. A situação vivida pelo país, partido ao meio, vem gerando muitas incompreensões”.

Bosco se defende do uso da voz off (seu próprio discurso é enunciado pela narradora) lembrando que “todo filme traz a voz do dono”, ou seja, “de seu realizador”. Citou como exemplo o “filme proibidão” de Eduardo Coutinho (“Um Dia na Vida”), soma de imagens colhidas de TVs abertas brasileiras, sem narração ou entrevistas. “Quem vai dizer que aquele filme não traz a voz do dono, ou seja, a interpretação de Coutinho? ‘Um Dia na Vida’ é uma aula magna do social”.

Sobre a participação de Fernanda Torres, ele fez questão de registrar que ela se ligou profundamente ao filme, debateu seu roteiro, deu rica contribuição ao projeto. Sobre a falta de porosidade no pesado texto que costura o filme, Bosco ponderou: “há, sim ambiguidades no filme. Em momento algum, apostamos num discurso antidemocrático, cerrado ou autosuficiente. Há um conjunto de atritos internos na narrativa, há um arejamento de ideias em nosso filme, bem maior do que em muitos documentários feitos recentemente sobre junho de 2013 ou o impeachment de Dilma. Os outros (todos) são menos porosos que o nosso”.

O filme sedimenta-se em depoimentos de intelectuais, em maioria homens, de pele branca e vindos de extratos médios e altos da escala social. Nota-se a ausência da voz de movimentos sociais organizados. A massa verde-amarela (com seus slogans anti-PT, em defesa da Lava-Jato, contra o comunismo etc.) e a massa de vermelho, também com suas palavras de ordem, são vistas de longe. Só “falam” por slogans de cartazes e faixas.

Bosco destacou as presenças da deputada Áurea Carolina, vinda de movimentos sociais, e de Capilé, que atuou na Mídia Ninja. Lembrou que fez um filme “ponderado, rigorosamente argumentativo”. E que, infelizmente, as pessoas vão ver o filme que elas querem ver, e não o que é proposto a elas.

Quando Djalma Galindo, que se definiu como “um realizador de pequenos filmes”, perguntou por que Bosco dera tanto espaço a pensadores liberais como Samuel Pessoa e Marcos Lisboa, a ponto de ser o ponto de vista deles o que se impõe ao término do filme, o realizador rebateu: “não posso concordar. O filme conta com 14 vozes, a maioria delas associada ao campo das esquerdas”. Além do mais, “o filme é perpassado, em seus 104 minutos, pela questão da promoção da igualdade”.

Por que as obras dos artistas visuais mobilizados foram tão subutilizadas pelo filme? Por que acabaram soterradas por depoimentos enquadrados em formato televisivo, professoral?

Bosco admitiu que realizou “um filme muito falado”, no qual as inserções visuais não são disruptivas. Admitiu que ele e Raul Mourão desejavam “passar por dentro da imagem”, mas que não conseguiram, talvez por não serem “diretores de cinema”. E ele mesmo citou dois potentes inventos visuais de Nuno Ramos, que acabam perdidos no oceano de palavras que inunda o filme. Num deles, vemos pessoas (Sem-Teto, claro!) levando seus móveis (sofás e camas) para um pântano. Noutro, homens, em brutal esforço coletivo, atuam em terreno hostil. Fincam imensas toras que, erguidas com muito suor, ganham a forma de uma casa, logo iluminada. Porém, ao adotar estrutura convencional, o filme impediu que tais imagens e performances falassem por si mesmas.

Obrigado a regressar ao Rio, por compromissos profissionais, Francisco Bosco mostrou-se aberto ao diálogo (prometeu continuar trocando ideias com a jovem e questionadora cineasta Sabrina Fidalgo, de “Alfazema”, um dos concorrentes da Mostra de Curtas, em oportunidade próxima). Prometeu, também, que, se voltar a fazer um filme, se empenhará para que as imagens falem por si mesmas.

Tudo se acalmou no debate dos curtas: o baiano “Pelano!”, de Christina Mariani e Calebe Lopes, e o paranaense “Parabéns a Você!”, de Andreia Kalábora, produzido por Guto Pasko. A discussão estética dos filmes, sem a força polarizadora da política, se fez presente.

Christina é a protagonista única (além de codiretora) de “Pelano!”, que Calebe definiu como “uma ficção científica brega”. Ou seja, “um curta feito como os Filme B dos anos 50, com um mínimo de recursos, buscando tirar deles sua potência máxima”. O jovem cineasta até citou outro filme que dialoga com o gênero (“A Nave de Mané Socó”) e que foi definido por seu diretor (o veterano Severino Dadá) como “uma fuleiragem fiction”.

“Pelano!” abre-se com letreiro que evoca o Brasil de nossos dias, mas em tom futurista. Um presidente recém-eleito provoca desarranjos ambientais de tal magnitude, que transformam o Nordeste numa fornalha. Problemas gravíssimos na camada de ozônio elevam a temperatura de tal forma que as pessoas são proibidas de sair à rua. Sozinha, em seu quarto, Raquel tenta amenizar o calor molhando-se com pedras de gelo e toalhas ensopadas de água. E tentando se refrescar num ventilador.

“Parabéns a Você” se passa numa comunidade de origem ucraniana, no Paraná. A diretora Andreia e o produtor Pasko têm ascendência eslava. O curta, uma sensível soma de memória de infância e filme de horror, conta a história de Yiúlia, uma menina que sonha em receber os coleguinhas para sua primeira festa de aniversário (com bolo e suco de caixinha). A família vive num pequeno sítio, é pobre e acha que há coisas mais urgentes para serem realizadas. Para agravar, no dia do aniversário dela, morre um primo da família.

Em trecho de diálogo com o cinema de horror, vemos Yiúlia sozinha na casa de madeira da família, sem luz elétrica, guiando-se por uma vela. Depois, no velório do primo morto, a cor roxa potencializará o medo que ela sente. A cidade de Prudentópolis (52 mil habitantes, em maioria descendentes de ucranianos), no centro-sul do Paraná, serviu de base para as filmagens. O curta será exibido em cinema municipal recém-inaugurado, em 17 de dezembro próximo.

No elenco, brilha a expressiva Mônica Christo (Yiúlia) e seus pais fictícios, a atriz Juliana Tosin (na verdade de origem italiana, mas que se passa bem por eslava) e Rodrigo Ferrarini (o pai). Destaque também para Zeca Cenovicz, que interpreta o dono de uma típica bodega ucraniana (ele é de origem polonesa).

O documentário brasiliense “Dulcina”, de Glória Teixeira, é forte candidato ao prêmio de melhor filme segundo o júri popular (na Mostra Brasília BRB, que substituiu a Mostra Câmara Legislativa do DF). Do ponto de vista da construção narrativa, o longa (de 94 minutos), deixa muito a desejar. Afinal, trata-se de um “cabeças falantes” que soma uma infinidade de depoimentos. Alguns bons (de Fernanda Montenegro, Nicete Bruno, Emiliano Queiroz, Luiz Carlos de Moraes, sobrinho da atriz, e Theresa Amayo) e outros regulares. Um se pauta pela originalidade, o de Graça Veloso (e de André Amaro), que relembra os tapas que a velha educadora dava na cara de seus alunos e futuros atores. Alguns, de tão laudatórios ou genéricos, pouco acrescentam ao filme.
O uso de imagens de um dos dois únicos filmes dos quais a atriz participou (“24 Horas de Sonho”, 1941) é de precariedade, mais que amadorística, angustiante. Dulcina, atriz, empresária e educadora, é mostrada como uma heroína. Não tem zona de sombras. Até sua relação com os governos militares, que a ajudaram a transferir sua FBT (Faculdade Brasileira de Teatro) do Rio para Brasília, é atenuada, higienizada.

Fernanda Montenegro (presente em três filmes exibidos pelo festival – “Piedade”, “José Aparecido, o Maior Mineiro do Mundo” e “Dulcina”) culpa Brasília pelo esquecimento da trajetória da atriz. E Brasília, leia-se, é tomada como redutor sinônimo de classe política. A grande atriz carioca se esquece que a comunidade cultural e educacional brasiliense recebeu Dulcina de braços abertos, que seus alunos e amigos a festejam até hoje e lutam para manter, no Setor de Diversões Sul, sua faculdade, teatro e acervo (em especial de figurinos que ela usou em montagens teatrais realizadas há mais de 50, 60 anos).

O filme, em sua louvação, deixa de registrar a causa principal do “esquecimento” nacional que cerca a atriz-empresária-educadora: ela fez apenas dois filmes inexpressivos e não atuou na televisão (telenovelas, teleteatro, minisséries ou séries). Ao contrário de suas contemporâneas Theresa Amayo, Nicete Bruno, Marília Pera (sua afilhada) e Fernanda Montenegro, que estão no filme. Estas quatro atrizes (Theresa Amayo menos) tiveram carreiras apoteóticas na TV (e no cinema: vide Marília Pera em “Pixote”, premiada até nos EUA, e Fernanda Montenegro, a trajetória mais avassaladora e bem-sucedida da história do teatro e do audiovisual brasileiro – indicada até ao Oscar, por “Central do Brasil”).

Para completar sua parte documental, constitutiva de 80% do filme, Glória Teixeira se uniu a mais cinco atrizes (Bidô Galvão, Carmem Moretshon, Françoise Forton, Iara Pietricovsky e Theresa Amayo) para encenar passagens da vida de Dulcina. O resultado é bom e diverte. Mas incapaz de transformar “Dulcina” num grande filme. Por que, então, o longa documental causou tamanho impacto, emocionou tanto o público que lotou o Cine Brasília e foi aplaudido (muitos na plateia o fizeram de pé) por cinco minutos?

Porque o cinema tem esta capacidade de fazer reviver memórias afetivas aparentemente esquecidas e, didaticamente, nos informar sobre a trajetória de pessoas que vimos em um ou outro espetáculo, em uma entrevista passageira na TV ou em uma aula magna. E depois ficou “adormecida” nas nossas lembranças. Brasília, a cidade-comunidade de mais de dois milhões de habitantes, nutre por Dulcina de Moraes um imenso afeto. Ela aqui viveu desde 1980, aqui morreu (aos 86 anos, em 1996), aqui construiu uma escola de Artes Cênicas e um teatro que foi (e continua sendo) palco de grandes, e belos, espetáculos.

Antes do longa “Dulcina”, o público assistiu e aplaudiu “Encanto Feminino”, curta de Fabíola Andrade (codirigido por Leonardo Monteiro). Um canto de amor à beleza da mulher negra, vista em sua relação com a ancestralidade. Uma jovem lamenta (com a avó) o quanto é difícil ser mulher numa sociedade patriarcal e machista. A velha senhora narra, então, à neta mitos sobre as iabás do candomblé.

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