Festival de Brasília consagra o cinema feminino

Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília

O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais antigo e tradicional do país, encerrou a mais politizada edição de sua história, a quinquagésima-segunda, com prêmios que consagraram o cinema feminino. São dirigidos por mulheres quatro dos cinco filmes premiados como os melhores. A começar pelo grande vencedor, o carioca de alma amazônica “A Febre”, de Maya Da-Rin, que levou quatro troféus Candango, dois deles os mais cobiçados: melhor longa e melhor direção.

Registre-se, porém, que Júri Popular e Crítica tomaram outra direção, mas, ambos, consagraram outro filme no feminino: o brasiliense (também de alma amazônica) “O Tempo que Resta”, de Thaís Borges. Maya centrou sua história em Justino, um indígena (interpretado por Régis Myrupu, troféu Candango de melhor ator), que trabalha como segurança no Porto de Cargas de Manaus. Sua filha, auxiliar de enfermagem, passa no vestibular de Medicina na UnB, e prepara-se para tomar o rumo da capital federal. Enquanto isso, uma febre misteriosa toma os sentidos e o corpo de Justino.

Já Thaís Borges escolheu duas protagonistas femininas para “O Tempo que Resta”: Ivete Bastos e Osvalinda Pereira. Elas são agricultoras marcadas para morrer por madeireiros e grileiros de terra, na região de Santarém, no Pará. Sem entrevistas ou narrativa em off, com sutileza e, à moda de Eduardo Coutinho, Thaís demonstra saber ouvir (e observar). Por isto, a estreante candanga fez um belo (e necessário) longa documental. O Público e a Crítica, em uníssono, elegeram “O Tempo que Resta” como o melhor longa da competição.

No terreno do curta-metragem, as mulheres arrasaram. São filmes no feminino (com mulheres na direção, no elenco e nas equipes técnicas) o vencedor, “Rã”, codirigido e protagonizado por Ana Flávia Cavalcanti (em parceria com Júlia Kazia), “Alfazema”, de Sabrina Fidalgo, “Carne”, originalíssima soma de animação e documentário de Camila Kater, e “Ângela”, de Marília Nogueira, criadora do Cabíria – Concurso de Roteiros e Festival (no Feminino).

Só um varão, o veterano (quase octogenário) Severino Dadá, se deu bem na onda feminina que varreu o festival. Montador consagrado de filmes de Nelson Pereira dos Santos e Rogério Sganzerla, Dadá conquistou três prêmios com sua “fuleiragem fiction” chamada “A Nave de Mané Socó”. Foi eleito o melhor ator (ele representara a si mesmo em “Tenda dos Milagres”, do amigo Nelson Pereira), viu seu filho André Sampaio escolhido pela melhor montagem e Frias e Gebara como responsáveis pelo melhor som.

A onda feminina atingiu, também, a Mostra Brasília BRB, que substituiu, às pressas, a tradicional Mostra Câmara Legislativa do DF (realizada por quase três décadas). Os novos deputados distritais não se interessaram pela maior vitrine do audiovisual candango. Os dois filmes laureados com os principais prêmios foram o documentário “Dulcina”, de Glória Teixeira, e “Mãe”, melhor direção para Adriana Vasconcelos.

As escolhas do júri (Núbia Santana, Pedro Jorge de Castro e Ronaldo Duque) parecem ter sido marcadas mais pelo afeto, que pela construção da linguagem cinematográfica. Do ponto de vista da criação fílmica, “Dulcina” é o mais frágil dos quatro longas concorrentes (nesta categoria). Soma excesso de cabeças falantes (transformando-se num típico ‘talking heads’) e depoimentos redundantes. Mesmo assim, emocionou a plateia que lotou o Cine Brasília (e elegeu o filme como o melhor). Há que se registrar que Núbia Santana, atriz formada pela FBT (Faculdade Brasileira de Teatro, conhecida como Escola Dulcina), deve ter defendido com paixão o retrato de sua mestra, a atriz, empresária e educadora Dulcina de Moraes (1908-1996), mesmo que ele fosse menos elaborado que “Ainda Temos a Imensidão da Noite”, “A Mensagem de Fernando Pessoa” e “Mãe”.

Só no terreno do curta, a Mostra Brasília BRB consagrou um diretor (Tiago Foresti) e um ator (Wellington Abreu, vindo de elencos e militâncias com Adirley Queiroz). Os dois, Tiago e Abreu, são a alma de “Escola sem Sentido”, libelo satírico, com camada de distanciamento brechtiano, sobre as nefastas consequências do projeto Escola sem Partido na educação brasileira. Se houvesse Prêmio da Crítica na Mostra Brasília BRB, tudo indica que o filme faria a tríplice coroa, sagrando-se o melhor pelo crivo do júri oficial, do público (o que aconteceu!) e da Crítica.

Por fim, vale registrar: jamais, em 55 anos de história (e 52 edições), o Festival de Brasília teve edição tão politizada. Claro que o desmonte dos mecanismos de fomento ao audiovisual, empreendido pelo Governo Bolsonaro, criou terreno fértil. Mas o secretário de Cultura do DF e presidente do festival, Adão Cândido, colocou combustível na fogueira (durante a noite inaugural, vitrine da produção ítalo-brasileira “O Traidor”, de Marco Bellocchio). Ao invés de conter-se, o titular da Cultura resolveu discursar mesmo sob vaias contínuas.

No momento em que um ator brasiliense, Marcelo Pelúcio, infiltrou-se na equipe de “O Traidor” e herdou o microfone para ler documento em que o segmento artístico-cultural do DF protestava contra ausência de edital cinematográfico e mudanças no uso de recursos de FAC (Fundo de Apoio à Cultura), o que se viu? Um segurança subir ao palco para retirar o manifestante. Bem que uma tatuada e compreensiva diretora de palco tentou negociar. Mas aí deu-se a atitude fatal: o microfone do ator foi cortado, silenciado. As vaias se fizeram ouvir, ainda mais fortes, no niemárico espaço do Cine Brasília.

O episódio transformou o festival inteiro, ao longo dos oito dias seguintes, em uma ágora de protestos. Eles aconteceram, especialmente, no palco do Cine Brasília, tendo como protagonistas muitas das equipes de longas e curtas-metragens das competições Nacional e Brasiliense. Chegaram, até, ao Museu da República, palco da Mostra Território Brasil (composta com 18 filmes de todos os Brasis). E, por fim, deram o tom do desfecho do documento chamado “Manifesta” (com “a” no final), assinado e lido por realizadoras e atrizes feministas. Nele, está escrito, com todas as letras: “um festival não deve assediar, interromper, silenciar ou censurar trabalhadoras e trabalhadores do audiovisual”.

O ator, diretor e professor (da USP e da UnB pioneira) Jean-Claude Bernardet, um dos integrantes da equipe que fundou o Festival de Brasília e primeiro pensador a receber a Medalha Paulo Emilio Salles Gomes (do próprio festival), ao tomar conhecimento do que acontecera na noite inaugural, indagou: “A plateia continuou na sala? Não deu as costas e abandonou o Cine Brasília? Os artistas e intelectuais brasileiros, todos de classe média, estão pactuando com esta terrível situação vivida pelo país”.

O autor do seminal livro “Cineastas e Imagens do Povo” arrematou: “estou trabalhando na periferia de São Paulo com jovens realizadores em oficinas de criação. Eles estão revoltados, inclusive com os artistas e intelectuais de classe média”.

Confira os premiados:

LONGA-METRAGEM (Competição Brasil)

. “A Febre”(RJ) – melhor filme, direção (Maya Da-Rin), ator (Regis Myrupu), fotografia (Bárbara Álvarez), som (Felippe Schultz, Breno Furtado e Emmanuel Croset)

. “O Tempo que Resta”, de Thaís Borges (DF) – Melhor filme do Juri Popular, Prêmio da Crítica (Abraccine), melhor roteiro (Thaís Borges)

. “Piedade”, de Cláudio Assis (PE-RJ) – Prêmio Especial do Júri, melhor ator coadjuvante (Cauã Reymond), direção de arte (Carla Sarmento)

. “Alice Jr”, de Gil Baroni (PR) – melhor atriz (Anne Celestino), coadjuvante feminina (Thais Schier), montagem (Pedro Giongo), trilha sonora (Vinicius Nisi)

CURTA-METRAGEM (Competição Brasil)

“Rã” (SP), de Júlia Zakia e Ana Flávia Cavalcanti – melhor curta

“Alfazema” (RJ) – melhor direção (Sabrina Fidalgo) – melhor trilha sonora (Vivian Caccuri)

. “Carne” (SP), de Camila Kater – Prêmio do Juri Popular, Prêmio da Crítica (Abraccine), melhor roteiro (Camila Kater e Ana Júlia Carneiro)

. “A Nave de Mané Socó”, de Severino Dadá (PE) – melhor ator (Severino Dadá), montagem (André Sampaio), som (Guma Farias e Bernardo Gebara)

. “Parabéns a Você”, de Andreia Kaláboa (PR) – melhor fotografia (João Castelo Branco), direção de arte (Isabelle Bittencourt)

. “Ângela”, de Marília Nogueira (MG) – melhor atriz (Teuda Bara)

. “Sangro”, de Minamisawa, Bruno H e Guto BR (SP) – Prêmio Canal Brasil

. “Chico Mendes, Um Legado a Defender”, de João Inácio (DF) – Prêmio Marco Antônio Guimarães (melhor utilização de materiais de arquivo)

. “Ari y Yo”, de Adriana de Faria (PA) – Menção honrosa

MOSTRA BRASILIA BRB

LONGA-METRAGEM

. “Dulcina”, de Glória Teixeira – melhor filme brasiliense pelo Júri Oficial, melhor filme pelo Júri Popular, melhor atriz (Bidô Galvão, Carmen Moretzshon, Iara Pietricovsky, Thereza Amayo, Glória Teixeira e François Fourton), melhor direção de arte (Úrsula Ramos e Demétrio Pina)

. “Mãe”- melhor direção (Adriana Vasconcelos)

. “Mito e Música – A Mensagem de Fernando Pessoa”, de Rama Oliveira e André Luiz Oliveira – melhor roteiro (Rama Oliveira), melhor trilha sonora (André Luiz Oliveira), melhor edição som (Laurent Mis)

. “Ainda Temos a Imensidão da Noite”, de Gustavo Galvão – melhor fotografia (André Carvalheira), melhor montagem (Marcius Barbieri)

CURTA-METRAGEM

“Escola sem Sentido”, de Tiago Foresti – melhor filme pelo júri oficial, melhor filme pelo júri popular, melhor ator (Wellington Abreu)

 

“MANIFESTA” (CINEMA FEMININO E FEMINISTA)

Documento lido por realizadoras e atrizes que participaram do 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro:

“Reconhecemos as/os trabalhadoras e trabalhadores que construíram e realizaram este festival. Há aqui obras que nos contemplam e abrem caminhos para o futuro do cinema e da sociedade na qual acreditamos.

No entanto, há ressalvas:

  1. À Curadoria: A curadoria de um festival deve pensar a multiplicidade de gênero, raça, sexualidade e territorialidade. Não deve validar discursos feminicidas, racistas, LGBTQI fóbicos e gordofóbicos.
  2. Ao mercado audiovisual: Produções audiovisuais devem interromper a exploração irresponsável de nossos corpos nas telas. Não precisamos mais de imagens de mulheres violentadas. É injustificável a nossa ausência na liderança dos departamentos criativos de roteiro, direção, direção de fotografia e montagem. (O Mercado Audiovisual) Deve assumir a responsabilidade pela construção do olhar coletivo sobre nós em suas obras audiovisuais. Atores e atrizes cisgênero não devem representar pessoas trans e travestis.
  3. À Comissão Organizadora: A comissão organizadora de um festival deve compor uma curadoria e um júri diversos em gênero, raça, sexualidade e território. Não deve assediar, interromper, silenciar ou censurar trabalhadoras e trabalhadores do audiovisual. Foram muitas as que construíram o caminho para que estivéssemos aqui e agora. Nada será feito sobre nós, sem nós”.

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