Academia francesa divide principais prêmios entre “Os Miseráveis”, de Ladj Ly, e “O Oficial e o Espião”, de Polanski

Por Maria do Rosário Caetano

Os principais prêmios Cesar, atribuídos pela Academia Francesa de Artes e Técnicas do Cinema, foram entregues aos dois favoritos do ano, “Os Miseráveis”, do afro-francês Ladj Ly, e “J’Accuse” (no Brasil, “O Oficial e o Espião”), do francês, de origem polonesa, Roman Polanski. Cada um havia recebido doze indicações.

A noite de entrega dos troféus ficará na história do cinema francês, pois houve de tudo um pouco (ou muito). Bombas de gás lacrimogêneo na parte externa da Salle Pleyel para dispersar manifestantes, protestos irados de feministas contra “o violador Roman Polanski” e, ponto culminante, a saída indignada (“Vergonha!”) de Adèle Haenel, protagonista de “Retrato de uma Jovem em Chamas”. Este filme, dirigido por sua companheira Céline Sciamma, e coprotagonizado por Nóemi Merlant, estava na lista, junto com “Belle Époque”, das quatro produções que receberam maior número de indicações.

Adèle, Céline e Noèmi abandonaram a cerimônia quando o nome de Roman Polanski foi anunciado como ganhador do Cesar de melhor diretor. Ele já havia recebido o prêmio pelo melhor roteiro adaptado (em parceria com o escritor Robert Harris) de seu vigésimo-terceiro longa-metragem, narrativa de recorte clássico e grande complexidade, sobre o oficial Georges Picquart (Jean Dujardim), que ajudou a desmontar fraude judicial do Exército francês. Esta instituição condenara um inocente, o capitão (de origem judaica) Alfred Dreyfus (Louis Garrel), por espionagem e o condenara a degredo na Ilha do Diabo. O protagonista absoluto do filme é Pickart. Com lançamento brasileiro previsto para o próximo 12 de março, “O Oficial e o Espião” (nome do livro de Harris que deu origem ao filme) recebeu, ainda, o Cesar de melhor figurino para Pascaline Savanne.

“Os Miseráveis” recebeu quatro prêmios. Além do principal, venceu nas categorias montagem (Flora Volpelière), melhor “espoir” masculina ou revelação (o ator Alexis Manenti) e júri popular.

Manenti, que é também corroteirista do filme, interpreta Chris, um dos três policiais do Esquadrão Anti-Crime, responsáveis pela ronda diária em subúrbio pobre de Paris (Montfermeil, um dos cenários de “Os Miseráveis”, clássico de Victor Hugo). De temperamento esquentado, o policial atua ao lado do agente e motorista Gwada (Djibril Didier Zonga), de pele negra, e recebe, cheio de razão, o novato Stéphane (Damien Bonnard).

A vibrante trama de “Os Miseráveis” rendeu-lhe público espantoso para um filme sem astros ou apelos cômicos: quase 2 milhões de espectadores. Como foi uma das cinco maiores bilheterias francesas do ano, o longa de estreia de Ladj Ly cacifou-se como candidato ao Cesar do júri popular. Coube aos 4.300 integrantes da Academia eleger, entre os cinco blockbusters da temporada francesa, o melhor. Os acadêmicos puderam – fato raro – premiar um mesmo filme com o principal Cesar e como “o melhor” entre aqueles que tiveram o endosso da audiência.

O fato de “J’Accuse” ter sido o segundo filme mais premiado da 45ª edição do Cesar provocou surpresa e dividiu os discursos dos integrantes da Academia em três categorias: a dos indignados (liderados por Adèle Haenel), a dos que preferiram o silêncio (caso de Ladj Ly) e a dos defensores de Polanski, liderados pela atriz Fanny Ardant.

Os meios artísticos e intelectuais franceses entraram em polvorosa desde o dia em que vieram a público as 12 indicações de “J’Accuse” ao Cesar. Os protestos liderados por feministas francesas transformaram Polanski na “persona non grata” da temporada. Em atos de protestos, uma manifestante pediu a “morte” (“Crève Polanski”) para o cineasta. Na imprensa, artigos e reportagens se multiplicaram. A pressão foi tamanha, que o presidente da Academia, o produtor Alain Terzian, no cargo há 18 anos, avisou que ele e toda a diretoria renunciariam, em bloco, a seus cargos, tão logo terminasse a cerimônia. Além do caso Polanski, houve outro agravante: a instituição não aceitou como “madrinhas” de jovens “espoir” (cerimônia que antecede em muitas semanas a noite do Cesar) duas respeitadas profissionais do cinema francês (uma delas, a diretora Claire Denis). A orientação era que os “espoir” escolhessem nomes famosos (leia-se, midiáticos) para apadrinhá-los.

Frente ao cerco, Polanski, de 86 anos, confirmou que permaneceria em casa durante a noite da premiação. Mas os produtores, atores (incluindo Jean Dujardim e Louis Garrel, indicados a intérprete principal e coadjuvante) e técnicos iriam prestigiar a cerimônia. Estaria presente, também, a atriz Emmanuele Seigner, principal papel feminino de “J’Accuse” e mulher (e mãe dos filhos) do cineasta. Mas, na sexta-feira anterior à premiação, o ministro da Cultura da França, Franck Ristier, pronunciou-se frente a um hipotético prêmio para Polanski: tal láurea seria um “símbolo condenável em relação à luta contra as violências sexuais e sexistas”.

No dia de véspera da cerimônia, os produtores de Polanski, prenunciando uma verdadeira catástrofe para o filme, frente a pressões até de uma autoridade do Estado, anunciaram que ninguém (dos créditos artísticos e técnicos do filme) registraria presença na Salle Pleyel. E ninguém compareceu. Nem Emmanuelle Seigneur, nem Dujardim, nem Louis Garrel. E Polanski, de sua parte, divulgou comunicado no qual lamentava a decisão que tomava (e que contava com a solidariedade de sua equipe). Ou seja, “a decisão de não enfrentar um tribunal de opinião autoproclamado disposto a pisotear os princípios do Estado de direito para que o irracional triunfe novamente”.

Em balanço irado da noite de premiação, quatro articulistas do jornal Libération assistiram a tudo com vaticínios inclementes. Não havia, na opinião deles, “botox” capaz de solucionar aquele “quadro pútrido”. Para, ao final, pregar: “uma refundação profunda do funcionamento da Academia e de seus estatutos”. Para eles, não basta a demissão coletiva do comando da instituição.

Dois longas-metragens – um documental e outro de animação – foram consagrados na noite do Cesar: o frisson da temporada (concorreu até ao Oscar) “Eu Perdi meu Corpo”, disponível na Netflix, sagrou-se como a melhor animação e melhor música (Dan Lévy). O documentário “M”, de Yolande Zauberman, derrotou o vencedor do “Olho de Ouro”, em Cannes, “A Cordilheira dos Sonhos”, de Patricio Guzmán. O filme laureado pela Academia francesa registra o regresso de um jovem à sua cidade de origem (Bnei brak, em Israel) para confrontar os ultra-ortodoxos que, durante sua infância, o haviam submetido a abusos.

Na categoria melhor atriz (na qual “Os Miseráveis” e “J’Accuse” não receberam indicações, pois se passam em ambientes essencialmente masculinos: a Polícia e o Exército), a vencedora foi Anaïs Demoustier, de “Alice e o Prefeito”, de Nicolas Pariser), que derrotou Adèle Haenel e Noémie Merlant (ambas de “Retrato de uma Jovem em Chamas”), Eva Green (“Proxima”), Chiara Mastroianni (“Chambre 12”), Karin Viard (“Chanson Douce”) e Doria Tillier (“La Belle Époque”).

O melhor ator foi Roschdy Zem, francês de origem argelina, por seu trabalho em “Roubaix, une Lumière”, de Arnaud Deplechin. Ele foi revelado em “Indigène” (“Dias de Glória”, 2006), filme que mostrou a participação de jovens (em especial árabes oriundos das colônias magrebinas) na Segunda Guerra Mundial, sem que por isto recebessem algum reconhecimento. Um fato liga Roschdy ao Brasil. Ele apaixonou-se pelo filme “O Invasor”, de Beto Brant (roteiro de Marçal Aquino) e resolveu realizar (como diretor e protagonista) um remake dele ambientado na França. O resultado é o longa “Persona non Grata”, exibido (e debatido), ano passado, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

O melhor filme de diretor estreante (no caso, uma diretora) foi “Papicha”, de Mounia Meddour, já lançado no Brasil. Uma história de adolescentes argelinas que, realmente, encantou a Academia. Tanto que o filme recebeu também o Cesar de melhor “espoir” feminina (para Lyna Khoudri). Ao drama histórico e feminista “Retrato de uma Jovem em Chamas”, de Céline Sciamma, só coube um Cesar, o de melhor fotografia (para Claire Mathon).

Na categoria melhor longa estrangeiro, mais um triunfo do sul-coreano “Parasita”, de Bong Joon-ho, que derrotou “Dor e Glória”, do espanhol Pedro Almodóvar, “O Traidor”, de Marco Bellocchio, coprodução entre a Itália e o Brasil, “O Jovem Ahmed”, dos Irmãos Dardenne, e “Lola Vers la Mer”, de Laurent Micheli (ambos da Bélgica) e os norte-americanos “Coringa”, de Todd Philips, e “Era Uma Vez… em Hollywood”, de Quentin Tarantino.

Confira os premiados:

. “Os Miseráveis” – melhor filme, melhor montagem (Flora Volpelière), melhor “espoir” masculina (ao ator Alexis Manenti) e júri popular

. “J’Accuse – O Oficial e o Espião” – melhor direção (Roman Polanski), melhor roteiro adaptado (Polanski e Robert Harris), melhor figurino (Pascaline Chavanne)

. “La Belle Époque” – melhor atriz coadjuvante (Fanny Ardant), roteiro original (Nicolas Bedos), direção de arte (Stéphane Rozenbaum)

. “Eu Perdi meu Corpo” – melhor longa de animação e melhor música (Dan Lévy)

. “Alice et le Maire” (Alice o Prefeito) – melhor atriz (Anaïs Demoustier)

. “Roubaix, une Lumière”, de Arnaud Deplechin – melhor ator (Roschdy Zem)

. “Papicha” – melhor filme de estreante (Mounia Meddour) e “espoir” feminina (Lyna Khoudri)

. “M”, de Yolande Zauberman – melhor documentário

. “Retrato de uma Jovem em Chamas”, de Céline Sciamma – melhor fotografia (Claire Mathon)

. “Parasita”, de Bong Joon-ho (Coréia do Sul) – melhor filme estrangeiro

. “Graças a Deus”, de François Ozon – melhor ator coadjuvante (Swann Arlaud)

. “Le Chant du Loup” – melhor som (Nicolas Cantin, Thomas Desjonquères, Raphaël Mouterde, Olivier Goinard et Randy Thom)

. “Pile Poil” – melhor curta-metragem

. “La Nuit des Sacs Plastiques” – melhor curta de animação

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