Dilili em Paris

Por Maria do Rosário Caetano

Paris, cidade marcante no imaginário humano, costuma agir como força atrativo-motivadora em títulos de filmes. Será que “Dilili em Paris”, sétimo longa animado do francês Michel Ocelot, em cartaz nos cinemas brasileiros, ajudará a difundir o filme? Ou o fato de ser uma produção animada vinda da França (e não da hegemônica indústria dos EUA) escanteará, de saída, as aventuras de Dilili?

Em seu país natal, o filme de Michel Ocelot foi visto por 641 mil espectadores, dado significativo. E o que fascinou as plateias francesas? Claro que a evocação de um tempo – a Belle Époque – em que Paris era a capital do mundo ocidental e força imantadora dos maiores talentos de todas as artes. Além da prata da casa (Renoir, Monet, Degas, Debussy, Satie, Proust, Sarah Bernhardt, Rodin e Camile Claudel), a iluminada cidade europeia atraía cientistas (a polonesa Marie Curie, o brasileiro Santos Dumont) e pintores (como o espanhol Pablo Picasso). Todos estes nomes estão no filme. E muitos outros: Toulouse-Lautrec, Colette, o cômico e bailarino Chocolate, o engenheiro Eiffel, o cientista Louis Pasteur e, com imenso destaque, duas mulheres muito especiais, a cantora lírica Emma Calvé e a feminista-anarquista Louise Michel.

Paris entra na trama como personagem especial e onipresente. É vista por seus mais belos cartões postais (museus, Theatro da Ópera, Torre Eiffel, Moulin-Rouge, as escadarias de Montmartre, os jardins das Tuileries e, também, por suas esculturas monumentais, como a “Porta do Inferno”, de Rodin, e seus bares, em especial o Irlandês-Americano). Tudo recriado com rigor estético-documental. Ocelot e sua equipe partiram de registros fotográficos (o cineasta fotografou centenas de locações parisienses). Ah, não faltará um patrimônio francês: o jornal “L’Aurore”, no qual Zola publicou o manifesto “J’Accuse”, em defesa do capitão Dreyfus, tema do novo e instigante filme de Roman Polanski (estreia em 12 de março).

A trama de “Dilili em Paris” é singela e compreensível para crianças alfabetizadas (sem amofinar os adultos): a protagonista, uma menina kanak (povo originário da Nova Caledônia, possessão francesa no Pacífico), de pele escura, deixou sua longínqua terra natal, clandestina em um navio, e foi educada por Madame Michel (Louise Michel, na vida real). Em Paris, transformada em menina refinada, ela encontrará Orel, um jovem entregador de mercadorias, que usa como veículo um triciclo. Com ele, estabelecerá sólida amizade.

A dupla descobrirá que um bando de malfeitores, os Mestres do Mal, está sequestrando crianças do sexo feminino. Aliados a Emma Calvé (diva do bel canto, também de existência real), eles formarão trinca do Bem e, depois de enfrentar uma série de contratempos, conseguirão desbaratar a quadrilha.

O filme se reduziria a apenas mais uma luta maniqueísta entre o Bem e o Mal, se Ocelot, em roteiro engenhoso, não erguesse um canto de amor à potência da arte e da ciência. E à tolerância. Para evitar mais um louvor elegíaco à arte ocidental branca, “Dilili em Paris” conta, além de uma protagonista negra, com espaço significativo para o astro circense Chocolate (tema de recente filme francês, protagonizado por Omar Sy). E abre notável espaço de protagonismo às mulheres. Prova disso é que, ao visitar o ateliê de Rodin, Dilili irá se deparar com uma determinada escultura. Dirá ao mestre que aquela foi obra que mais a encantara e indagará por seu título. O artista esclarecerá que a obra não é dele. É de Camile Claudel, que entrará em cena, ganhando vulto por detrás de sua criação.

Há dois pontos polêmicos no filme. Primeiro, o fato da nativa kanak ter sido educada e transformada em uma francesinha de gestos nobres e polidos. Nada resta nela da cultura de seu povo originário. Dilili nunca recorrerá a um conhecimento que venha de seu território de nascimento (a Nova Caledônia). Segundo: os métodos e vestimentas usados pelos Mestres do Mal, para escravizar as crianças sequestradas, nos levam, mesmo que de forma quase abstrata, ao Islã. As meninas usam espécie de burcas. Registre-se (como atenuante) que a França é a nação que mais cultiva o Estado laico. Faz isto desde a Revolução Francesa de 1789. Lá, o uso de véu em escolas públicas é algo questionado com imenso e apaixonado vigor.

Feitos estes dois pequenos reparos, voltemos à engenhosidade do roteiro e ao fascinante uso dos espaços geográfico-arquitetônicos de Paris. Há que se lembrar que a cidade é vista não só por sua celebrada superfície. Parte da trama se desenvolve em suas entranhas, ou seja, em seus canais de esgoto sanitário. Somos introduzidos nestes “infernos” por sequência azulada que evoca um dos mais belos momentos de “Ludwig” (Visconti, 1973). Um ‘cisne-barco’ no qual desliza a cantora lírica Emma Calvé, servirá de veículo para Dilili chegar ao cativeiro das crianças sequestradas. A beleza plástica dos desenhos de Ocelot (reparem na engenhosa iluminação do barco-cisne) deixariam Luchino Visconti, o mais refinado dos estetas marxistas, em êxtase. A sequência evoca também o mundo sci-fic de Júlio Verne, o mais visionários dos prosadores franceses.

Para os brasileiros, o filme traz sequência especialmente cativante. Dilili e Orel necessitam de um dirigível para resgatar as crianças escravizadas. A quem irão recorrer? A Alberto Santos Dumont, que pesquisa, em Paris, os protótipos que darão origem ao avião. O mineiro, ajudado por Gustave Eiffel e até pelo Conde Graff von Zepellin, conseguirá fabricar o dirigível. Quem assistir ao filme legendado, ouvirá duas simpáticas frases em língua portuguesa. Uma delas falará em “docinho do céu” e outra em “docinho de côco”.

Cinéfilos brasileiros conhecem outros longas animados de Ocelot, pois eles foram lançados por Patrícia Durães e Adhemar Oliveira (do Espaço Itaú de Cinema) e o realizador francês já ganhou até retrospectiva no CCBB. Mas suas bilheterias, entre nós, são modestas. Resta torcer para que, dessa vez, tudo seja diferente com esse premiado e novo longa-metragem do artista. Afinal, em tempos de trevas e defensores de “terra plana” e “design inteligente”, é estimulante ver um filme que evoca, além da atmosfera cult de Paris, seus maiores artistas e cientistas (vide a sequência no laboratório de Louis Pasteur e sua vacina de combate à raiva e o belo depoimento de Madame Curie).

Ocelot, nascido na França há 76 anos, passou a infância na Guiné africana. Daí seu interesse por outros povos. Ele já criou protagonistas africanos, antilhanos, orientais e tibetanos. Desta vez, buscou na distante Oceania, a sua protagonista. Pena que a cultura da menina não tenha atravessado o oceano.

“Dilili em Paris” conquistou, ano passado, o prêmio Cesar de melhor filme de animação. No final deste mês de fevereiro, dia 28, acontecerá em Paris, a quadragésima-quinta edição dos “Cesares”. O favorito é “Perdi meu Corpo”, de Jéremy Clapin.

 

Dilili em Paris
França, Bélgica e Alemanha, 95 minutos, 2019
Direção: Michel Ocelot
Trilha sonora: Gabriel Jared
Distribuição: Imovision

 

FILMOGRAFIA
Michel Ocelot (Villefranche-sur-Mer, França, 27-10-1943)
Diretor de quatro curtas-metragens, sete longas e quatro séries para TV

Longas-metragens

. 1998 – “Kiriku e a Feiticeira”
. 2000 – “Príncipes e Princesas”
. 2005 – “Kiriku e os Animais Selvagens”
. 2006 – “Azur e Azmar”
. 2011 – “Os Contos da Noite”
. 2012 – “Kiriku e os Homens e as Mulheres”
. 2019 – “Dilili em Paris”

Séries de TV

. 1983 – “La Princesse Insensible” (uma temporada)
. 1989 – “Ciné Si” (três temporadas)
. 1992 – “Les Contes de la Nuit”
. 2010 – “Dragões e Princesas” (série de TV em 10 episódios)

Curtas-metragens

. 1980 – “Les 3 Inventeurs”
. 1981 – “Les Filles de l’Egalité”
. 1982 – “La Légende du Pauvre Bossu”
. 1987 – “Le Quatre Voeux du Vilain et de sa Femme”

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