Cristiano Burlan narra trajetória de Paulo Freire em série

Por Maria do Rosário Caetano

A trajetória do educador Paulo Freire, um dos alvos preferenciais da radicalização política que tomou conta do país, chega nesta terça-feira, 17 de março, à TV brasileira. A ação do pedagogo pernambucano em defesa da educação (de adultos, em especial), iniciada no Recife e espalhada pelo mundo, será lembrada em série de cinco episódios, dirigida pelo cineasta Cristiano Burlan, e apresentada, on demand, pelo SescTV (os 5 episódios já estão disponíveis).

A estreia de “Paulo Freire, um Homem do Mundo” na programação linear da emissora, mantida pelo Serviço Social do Comércio, acontecerá no dia primeiro de abril, em horário nobre (oito da noite). Se não fosse a epidemia do coronavírus, a série de Burlan, diretor do premiado “Mataram meu Irmão”, teria acontecido com palestra e debate durante o III Seminário Internacional Arte, Palavra e Leitura: Por uma Educação Pública Transformadora. O evento, cuja abertura se daria no Teatro Paulo Autran, foi cancelado sem previsão de nova data.

Paulo Freire (1921-1997) é conhecido nos meios progressistas como o “Pedagogo da Libertação”, aquele que devotou seu projeto educacional ao diálogo e à emancipação das classes desfavorecidas. Daí o termo “Pedagogia do Oprimido”, que costuma acompanhar suas pesquisas no campo da alfabetização de adultos.

Nos últimos anos, porém, com a ascensão da direita ao Executivo brasileiro, ele passou a ser – segundo definição de seu biógrafo, Sérgio Haddad, professor da Universidade Federal de Caxias do Sul – “um mártir às avessas”. Isto porque, para seus detratores, “ele seria o responsável pelo viés esquerdizante do ensino no país”. O livro de Haddad, lançado no final do ano passado, pela Todavia, propõe-se a realizar “retrato ponderado do educador e de sua obra, no qual a pesquisa criteriosa fale mais alto que o ódio e a ideologia”.

A série que Cristiano Burlam realizou para o SescTV também não está atrás de polêmica. Mas, sim, ocupada em registrar o projeto freiriano de uma “Pedagogia Crítica”. Ou seja, aquela praticada “por escola que visa o desenvolvimento da educação por meio da consciência do indivíduo perante sua realidade”.

Paulo Freire, que em 2012 recebeu o título de “Patrono da Educação Brasileira”, tem sua trajetória revisitada em episódios de 52 minutos cada um: “A Formação do Pensamento”, “As 40 Horas de Angicos”, “O Exílio”, “Do Pátio do Colégio à Pedagogia do Oprimido” e “O Mundo Não É, Está Sendo” (veja detalhamento abaixo).

Uma cidade, a potiguar Angicos, e um país, a Suíça, têm espaço significativo na narrativa. Recife e São Paulo, também. Afinal, Paulo Reglus Neves Freire nasceu na capital pernambucana e lá iniciou as pesquisas que dariam origem ao “Método Paulo Freire de Alfabetização de Adultos”, atuou na Universidade e foi figura de proa no MCP (Movimento de Cultura Popular) durante os governos do prefeito e, depois governador, Miguel Arraes. Já São Paulo o teve como professor da PUC (Pontifícia Universidade Católica) e secretário municipal de Educação, na gestão da paraibana Luíza Erundina.

O exílio de Freire, após o triunfo do golpe militar de 1964, começou pela Bolívia, seguiu pelo Chile de Eduardo Frei (presidente democrata cristão, não no período socialista de Salvador Allende), por Genebra, na Suíça, e pela África (em especial pela Guiné Bissau liberada por Amílcar Cabral).

Aos que hoje, por desconhecimento, vêem o pedagogo como um “ateu marxista”, Sérgio Haddad lembrará, em “O Educador – Um Perfil de Paulo Freire”, que ele sempre foi um homem religioso (católico). Por isto, o pesquisador paulistano intitulou o último capítulo do “Perfil” freiriano com um de suas frases mais reveladoras: “Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo”.

Vale lembrar, ainda, que o Conselho Mundial das Igrejas, sediado em Genebra, foi fundamental na difusão do pensamento e obra de Freire pelo mundo. Este organismo, afinal, congrega 340 Igrejas e denominações religiosas entre seus membros associados.

Todos os episódios da série “Paulo Freire, um Homem do Mundo” mesclam depoimentos de familiares, colegas de profissão e amigos próximos do pensador. Um deles é o professor Abdeljalil Akkari, que tem presença importante no episódio sobre o exílio de Paulo Freire na Suíça.

Outra presença especial é a do cantor e compositor Chico César. Ele fala de “Beradêro”, música que fez em homenagem a Paulo Freire (aquela que diz “E a cigana analfabeta lendo a mão de Paulo Freire”). O artista paraibano conta que o educador “ficou muito feliz pela homenagem, porque de certa forma, seu destino sempre foi muito ligado às questões do “não saber, sabendo” (Freire morreria em 1997, dois anos depois do lançamentos de “Aos Vivos”, disco que traz “Beradêro”).

Cristiano Burlan, 44 anos, gaúcho radicado em São Paulo, tem se dividido entre o documentário, sua origem, e a ficção (ver filmografia abaixo). Seus filmes apostam, sempre, em temas candentes, em especial a violência urbana, e pesquisa de linguagem. Todos foram feitos com baixo orçamento.

O cineasta conta que, ao realizar “Paulo Freire, um Homem do Mundo”, preocupou-se mais “em construir uma narrativa que focasse o pensamento e obra de Freire”, que com “devaneios estéticos”. Por isto, dedicou-se “menos ao exercício de linguagem”, mesmo entendendo ser “impossível dissociar o conteúdo da forma”.

Burlan pretende, se tiver condições financeiras, transformar as quase cinco horas de narrativa em um longa-metragem capaz de condensar suas intensas pesquisas audiovisuais sobre o educador pernambucano.

“Como cada episódio dura 52, totalizando 4h40” – pondera –, “esta série resulta no maior material que já filmei e montei. Tenho, portanto, muito material não utilizado e creio que uma versão de longa-metragem seria fundamental nesse momento em que pensamento e obra de Freire são tão atacados pelo Governo”. Mas, “a pergunta que me faço é onde encontrar recurso para realizar este filme?”

A crônica carência de documentação em som e imagem do país foi contornada pelo cineasta: “acessei o que foi possível. Do curta De Pé no Chão Também se Aprende’ (Heinz Forthman/1963) ao trabalho do Luiz Lobo sobre ‘As 40 Horas de Angicos’. Realizei extensa pesquisa em diversos arquivos brasileiros (canais de televisão como a TV Cultura, arquivos do Museu da Pessoa, TV PUC, entre outros) e na Suíça (RTS – Radio Televisão Suíça)”.

 

Paulo Freire, um Homem do Mundo
Brasil, 2020
Série documental em cinco episódios (52 minutos cada)
Direção: Cristiano Burlan
Produtor: Bela Filmes
Realização: SescTV / Correalização: Consulado Geral da Suíça em São Paulo
Classificação indicativa: livre
On demand: sesctv.org.br
Na programação linear da emissora: estreia dia primeiro de abril, às oito da noite

A SÉRIE – EPISÓDIO POR EPISÓDIO:

. Primeiro episódio: “A Formação do Pensamento” é, em grande parte, narrado pelo próprio Paulo Freire, que fala sobre sua família, seu primeiro espaço de aprendizagem. A família foi o núcleo no qual ele entendeu a importância do diálogo, aprendeu a viver e a superar dificuldades. O educador lembra de sua origem na cidade de Recife e a mudança para Jaboatão dos Guararapes (PE), onde passou parte de sua infância. “Lá a experiência da fome cresceu, não tínhamos dinheiro para comprar os produtos do mercado. Mas não havia fome rigorosa porque tínhamos frutas em abundância”. Os primeiros passos de Freire na escola são relembrados por Ana Maria Freire, educadora e viúva do pedagogo.

. Segundo episódio: “As 40 Horas de Angicos” revisita a cidade potiguar de Angicos (13 mil habitantes na época), à beira de antiga estrada de ferro. Os moradores se dedicavam ao trabalho no campo e mais de 75% dos adultos viviam e morriam na pobreza e no analfabetismo. Foi esse o local escolhido para se realizar a experiência de alfabetização de jovens e adultos de baixa renda em 40 horas, liderada por Freire. Antes do projeto ser vetado, o educador conseguiu concretizar seu método de ensino sem cartilhas ao alfabetizar 300 pessoas, tendo como base suas vivências fora da sala de aula e estimulando os alunos a associarem o aprendizado com o dia a dia.

. Terceiro episódio: “O Exílio” retrata a experiência de Freire no exterior, em especial o período de 1970 a 1980, vivido em Genebra, na Suíça, e o quanto essa vivência repercutiu em seu trabalho. Com depoimentos do pedagogo e de colegas com quem conviveu. A psicopedagoga Dina Borel conta que conheceu o educador em um de seus seminários: “foi um encontro de vida, uma revelação, era incrível um pedagogo, em Genebra, falar do povo com aquela sabedoria, não apenas sobre a teoria dos oprimidos, mas para o povo em geral, para a inteligência coletiva e para a construção do saber como ato coletivo e não individual”.

. Quarto episódio – “Do Pátio do Colégio à Pedagogia do Oprimido” registra o retorno de Paulo Freire, após 15 anos de exílio, e sua atuação, mais uma vez, em território brasileiro. “Todo esse tempo fora do País exige de mim um processo de reaprendizagem do Brasil”, admitiu ele, com alegria, em sua chegada. Profissionais como Fernando Bárcena, professor da Universidade Complutense de Madrid, Madalena Freire, filha do educador, Ausonia Favorido Donato, diretora pedagógica do colégio Equipe, e Moacir Gadotti, presidente de honra do Instituto Paulo Freire, comentam sobre a importância do trabalho do educador e seu legado. Luiza Erundina, deputada federal e ex-prefeita de São Paulo, relembra o momento em que conheceu Paulo Freire pessoalmente, no final da década de 1970.

. Quinto episódio: “O Mundo Não É, Está Sendo” conta com depoimentos de Paulo Freire e artistas como o diretor da Cia do Tijolo, Dinho Lima Flor, e o cantor e compositor Chico César. Os dois traçam relações entre arte e educação, tendo a palavra como ferramenta. “Freire é um educador nordestino que propôs um ensino que permite reconhecermos o saber onde ele já existe”, diz Chico César.

FILMOGRAFIA
Cristiano Burlan (Porto Alegre-RS, 1975)

2007 – “Construção”
2009 – “Olhe, Pare, Escute”
2009 – “O Homem da Cabine”
2010 – “Ler se Aprende com Cultura”
2012 – “Sinfonia de um Homem Só”
2013 – Mataram meu Irmão”
2014 – “Amador”
2014 – “Hamlet” (ficção)
2015 – “Sermão dos Peixes”
2015 – “Fome” (ficção)
2016 – “Em Busca de Borges”
2016 – “No Vazio da Noite”
2017 – “Antes do Fim” (ficção)
2016 – “Estopô Balaio” (doc)
2018 – “Elegia de um Crime” (doc)
2018 – “Nelson Felix – Método Poético para Descontrole de Localidade”
2020 – “A Mãe” (ficção, em finalização)

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