“Guerra e Paz” de graça, na internet

Por Maria do Rosário Caetano

Quem quiser assistir ao maior épico cinematográfico de todos os tempos – o soviético “Guerra e Paz”, baseado na obra monumental de Liev Tolstoi e vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro – poderá fazê-lo, sem nenhum gasto.

Para comemorar o centenário de nascimento de seu autor – o cineasta e ator Sergei Bondarchuk –, os Estúdios Mosfilm restauraram e disponibilizaram, gratuitamente, as quatro partes que compõem a mais longa (402 minutos), cara e exuberante recriação da história da jovem Natasha e seus amores (Andrei, Anatol e Pierre), em tempo de guerras napoleônicas. Nunca se viu tanto luxo, elenco tão afinado e figuração tão impressionante (milhares de soldados do Exército Vermelho em ação). Locações reais de tirar o fôlego, figurinos inimagináveis, objetos de cena de imensa beleza (colhidos em 40 museus), batalhas reconstituídas como se fossem reais (com o imperador-general Napoleão Bonaparte enfrentando tropas russas em sangrentos combates).

A primeira versão cinematográfica de “Guerra e Paz” foi realizada em 1915, portanto na era muda, por Iákov Protanázov e Vladímir Gárdin. Em 1956, os italianos Dino di Laurentis e Carlo Ponti produziram, em moldes hollywoodianos, sob direção do experiente King Vidor, um “Guerra e Paz” de pouco mais de três horas (metade das sete horas russas). E mobilizaram elenco estelar: Audrey Hepburn, como Natasha Rostova, Henry Fonda, como Pierre Bezukhov, Mel Ferrer, o príncipe Andrei Bolkonsky, Vittorio Gassman, na pele do farrista Anatol Kuragin, e a sueca Anitta Ekerg, como sua ambiciosa irmã, Elena Kuragin.

O filme de Vidor tem excelentes sequências bélicas (de batalhas e retiradas) e fez sucesso no mundo inteiro, incluindo a União Soviética, a Europa e o Brasil. Só não aconteceu nos EUA. O épico vidoriano disputou quatro estatuetas na festa do Oscar (inclusive a de melhor diretor), mas não ganhou nenhuma (e não teve bom desempenho nas bilheterias).

Ao condensar as mais de mil páginas do romance de Tolstoi, publicado em 1865, o filme ítalo-americano tomou algumas liberdades. A principal delas: descomplicou a trama, deixando de lado as digressões filosóficas e espirituais do grande prosador russo. E transformou o gorducho, bonachão e desajeitado Pierre Bezukhov em um magérrimo e elegante Henry Fonda.

Em 1959, o filme de King Vidor estourou nos milhares de cinemas soviéticos (com 35 milhões de espectadores). Artistas e autoridades da então poderosa URSS sentiram-se compelidos a provar que ninguém, a não ser eles, seria tão capaz de recriar o poderoso romance de Tolstoi. Cabia a eles, conterrâneos do grande escritor, realizar um épico que superasse a versão ítalo-americana. Convocou-se, então, para dirigir o filme, um de seus atores mais famosos, Sergei Bondarchuk (um jovem, se comparado com o outro postulante, o sexagenário Ivan Pyryév). Bondarchuk tinha 40 e poucos anos e protagonizara uma série de filmes, entre eles “Otelo, o Mouro de Veneza”, adaptação shakespeariana que rendera a Palma de Ouro de melhor diretor a Sergei Iutkiévitch (Cannes/1956).

Entusiasmados com a trajetória artística e política de Bondarchuk, os dirigentes culturais soviéticos empenharam todos os esforços possíveis e imagináveis em sua nova empreitada. Mesmo que o ator só tivesse dirigido um único longa-metragem (“O Destino de um Homem”, sólido, sintético e tocante drama de guerra, em preto-e-branco, 1959). Neste filme, Bondarchuk acumulava direção e protagonismo, na pele de um carpinteiro de província, que ia combater os nazistas e acabava prisioneiro em campos de trabalho forçado.

Para “Guerra e Paz”, seu segundo longa, Bondarchuk também não fez por menos: além de dirigir o caríssimo e longuíssimo épico, interpretou um de seus protagonistas. Saiu-se bem nos dois ofícios. Seu Pierre Bezukov é comovente: rechonchudo, tímido, indeciso, traído pela mulher Elena (a atriz Irina Skobtseva, esposa do ator na vida real). E sua direção é das mais competentes. Não faz feio nem se comparada a obras-primas notáveis como “O Leopardo” (Luchino Visconti, 1963) e “Ludwig, o Rei da Baviera” (do mesmo Visconti, 1973). E Bondarchuk conseguiu, sim, superar o épico de King Vidor. Tanto que a Academia de Hollywood, que negara estatuetas ao filme lá produzido, entregou o Oscar de melhor longa estrangeiro ao épico soviético.

A fama do oscarizado ator-diretor cresceu tanto, que Bondarchuk foi convidado por Dino de Laurentis para dirigir “Waterloo”, outro épico ambientado em tempo de guerras napoleônicas. Para interpretar o imperador francês, foi escalado Rod Steiger. E para dar vida a seu maior antagonista, o General Wellington, Christopher Plummer. Com direito a Orson Welles em ponta de luxo (como Luiz XVIII). O Exército Soviético entrou para valer (e com sua perícia em guerras) na recriação de exaustivas batalhas. Os franceses não quiseram saber deste filme. Deixaram a tarefa com italianos e soviéticos. Estes, com o prazer de filmar a maior das derrocadas de Napoleão.

Voltemos a “Guerra e Paz”: assistir, primeiro, ao épico soviético e, só depois, ao ítalo-americano resulta em experiência apaixonante. Experiência que deixa o filme hollywoodiano (falado em inglês, claro!) em evidente desvantagem. Principalmente, no que diz respeito aos cenários. A Moscou de King Vidor é uma cidade artificial, construída em estúdio. Já a russa é verdadeira, quase documental. A magnífica Catedral de São Basílio, os palacetes e dachas da época dos czares estão lá, inteiros e belos, em suas imponentes arquiteturas.

Por realizar seu filme com quase o dobro da duração do de King Vidor, Bondarchuk pôde abrir espaço para algumas das reflexões filosóficas de Tolstoi, suas digressões sobre a “alma russa” e seus mergulhos na força e mistérios da natureza. Pôde – o que para muitos é o maior defeito do filme – recorrer, às vezes, a narração em off, reproduzindo trechos inteiros do romance.

Em termos de elenco, tanto o hollywoodiano quanto o soviético são muito bons. As duas Natashas (a britânica Audrey Hepburn e a bailarina Ludmila Savelyeva) são lindas, ingênuas, apaixonadas e donas de olhos imensos e cativantes. As duas têm o mesmo tipo físico. Henry Fonda, se tem pouco do bastardo, depois Conde, Bezukhov, nos envolve com seu notável carisma. As volumosos Elenas de Anita Ekberg e Irina Skobtseva são igualmente belas e convincentes.

Os valores de produção do épico soviético são inigualáveis. Não há como não se encantar com os pisos dos palácios que ambientam os bailes da nobreza russa. O mesmo se dá com objetos de cena (ícones da igreja ortodoxa, espelhos, estátuas, móveis, pratarias, charretes), com os vestidos das princesas e condessas, com as fardas dos oficiais.

A direção de Bondarchuk soma ao seu recorte clássico algumas inovações (como instigante uso de tela dupla/duas ações diferentes impressas na ampla superfície do 70 milímetros). E é valorizada pela qualidade dos atores e pela fotografia arrebatadora, que mobilizou três grandes nomes da poderosa Mosfilm (lembremos, sempre, que são soviéticos dois dos maiores diretores de fotografia do mundo: Eduard Tissé, colaborador de Eisenstein, e Sergei Urushev, de Mikhail “Soy Cuba” Kalatozov).

Serguei Bondarchuk, em cena de "Guerra e Paz"

O mais notável do filme, todos são de convir, é a encenação da guerra. Ninguém, no mundo, encena sequências bélicas melhor que os russos. Nem os norte-americanos, considerados (com parte de razão) os mais competentes do mundo. Se King Vidor brilhou com as batalhas napoleônicas de “Guerra e Paz”, Bondarchuk chegou para provar que o cinema soviético podia fazer melhor. Afinal, seus figurantes (naquela década de 1960, não se multiplicava digitalmente a soldadesca) eram quadros preparados do famoso Exército Vermelho, organizado por Leon Trotski. Todos sabiam usar armas, marchar em pelotões, lutar e, se preciso fosse, desmobilizar-se. Talvez por ter vivido, séculos afora, história das mais sangrentas, a Rússia (e, por mais de 70 anos, a URSS) sabe o que é uma guerra.

No épico inspirado em Tolstói, há dois terríveis enfrentamentos com Napoleão. No primeiro (1805) o Czar russo aliou-se à Áustria para enfrentar o Corso. Russos e austríacos foram fragorosamente derrotados em Austerlitz. Num segundo cenário de guerra, as tropas russas, comandadas mais uma vez pelo vesgo, mas engenhoso, General Kutuzov (Boris Zhakava), são derrotadas e batem em retirada. Napoleão adentra, glorioso, no coração do império, a bela Moscou.

O filme, porém, mostrará que o triunfo de 1812 foi uma vitória de Pirro. O general vesgo obrigará soldados e população civil a deixarem suas casas e colocará fogo (sim fogo!) em metade de Moscou. Quando Napoleão der por si, perceberá que não há generais para assinar os termos da derrota, nem população para plantar e colher víveres capazes de alimentar o imenso exército francês plantado em solo russo (mais de 50 mil soldados). Quando as tropas napoleônicas decidirem regressar ao solo pátrio (situado a mais de 3 mil km), a lama, a fome e o General Inverno seriam aliados estratégicos de Kutuzov. Os russos, afinal, haviam promovido a mais espetacular (e enigmática) retirada da história moderna.

A narração em off presente em trechos do “Guerra e Paz” soviético é um elemento perturbador de sua plena fruição. E, para agravar, há uma breve “patriotada” no fecho de uma das quatro partes do filme (justo a que termina com a “retirada estratégica” que antecede o incêndio de Moscou). Antes, pois, de destacar as mais notáveis sequências do épico soviético, registremos a “patriotada”: texto grandiloquente enaltece o Exército Russo quando ele se bateu em retirada para não ser aplastrado por Napoleão. O imperador, em pessoa comandava suas tropas. Para não dar o braço a torcer, o filme soviético tenta nos convencer que aquela batalha renhida não constituía mais uma derrota. A longo prazo, não constituiria mesmo. Mas naquele instante, o que víamos eram as tropas do General Kutuzov batendo em retirada.

É, então, mais que chegada a hora de destacar os momentos mais arrebatadores do “Guerra e Paz” de Sergei Bondarchuk.

Na primeira parte, jovens da nobreza russa (que dali a pouco partirão para a Guerra) bebem doses etílicas cavalares, fazem planos de visitar as “atrizes” (para eles, sinônimo de prostitutas) e dão bebida farta a um imenso urso, que “farreia” com eles. A maior aprontação de um dos beberrões consistirá em enxugar enorme garrafa de rum, no gargalo. No chão? Não! Pendurado no parapeito de imensa janela (uma queda seria suicídio certo). Bondarchuk filma tudo em clima vertiginoso. (Aliás, quem viu “O Destino de um Homem” conhece o papel essencial desempenhado por grandes beberrões nos dois primeiros filmes do ator-diretor). Dali, os jovens partirão para farrear com as “atrizes” e amarrarão um incômodo policial, que os perturbara, no dorso do urso bêbado, jogando-os, a ambos, no rio. Rio que o urso (carregando sua inusitada “carga”) singraria a nado.

Nas majestosas sequências bélicas, nos encantamos com momento que beira o sublime, por sua raridade (só senti algo semelhante, num épico, ao ver os urinóis de cerâmica no baile do “Leopardo” viscontiano): os soldados da imensa tropa russa se desnudam para tomar banho no rio. Milhares de corpos nus, com aquele branco tão eslavo, compõem imagem inesquecível, de tão bela.

Os russos se orgulham de suas habilidades para a dança clássica. Vide o prestígio mundial dos balés do Teatro Bolshoi. Natasha dança muito bem (tanto que Bondarchuk escolheu para sua protagonista uma jovem bailarina, de imensos olhos azuis, dois faróis). E fala-se muito na “alma russa”. Num passeio ao campo, a mocinha, de família aristocrática, ouve uma canção camponesa, uma balalaica, e dança como se camponesa fosse. Livro e filme definem aquele gesto como fruto da essência mesma do ser nascido naquele imenso país eurasiano. A “alma russa” seria patrimônio comum a nobres e plebeus.

O “adultério” de Natasha. Quem conhece, mesmo que pouco, a literatura russa sabe que trair o marido foi a tragédia de “Ana Karenina” (Liev Tolstoi, 1877). Ela pagou com a própria vida por seu ato. Em “Guerra e Paz”, Tolstoi criou um outro tipo de “adultério”, capaz de causar funda emoção em leitoras-espectadoras contemporâneas. Natasha, jovenzinha, se apaixonará pelo Príncipe Andrei Bolkonsky, oficial do Exército russo, viúvo que perdeu a esposa durante o parto. Depois de recolhimento e luto, ele conhecerá Natasha. A paixão será arrebatadora e mútua. Mas o pai autoritário do príncipe exigirá que ele, mais velho que a mocinha, se dê um ano de prazo, para ver se o matrimônio deverá realmente acontecer. O viúvo se ausenta e fogosa e sonhadora mocinha espera, indócil, a volta do amado. Só que, um dia, num baile na Corte, ela dança com o sedutor Anatol Kuragin e apaixona-se por ele. O rapaz, que é casado e folgazão, propõe que os dois fujam para viver sua história de amor. Quando a jovem, de malinha na mão, espera o amado, a fuga é abortada. Bondarchuk e seus roteiristas constroem narrativa das mais perturbadoras para as sensibilidades femininas. Nos deparamos com a vergonha de Natasha pela “traição” a Andrei. O peso das convenções sobre a vida da mulher, naqueles começos do século XIX, era tão brutal que Natasha passa a carregar a culpa de uma “adúltera”.

Arrebatadoras, também, são as sequências em que as chamas devoram Moscou (a atriz Fernanda Torres, ao usar a quarentena para ler “Guerra e Paz”, enfatizou, na Folha de S. Paulo, seu espanto – que é de muitos de nós – ao ver que quem botou fogo na cidade foram os russos, não as tropas napoleônicas). Causa funda impressão ver as labaredas vermelhas devorando casas e se aproximando (pelo menos no filme) das torres bizantinas da colorida Catedral de São Basílio. E, nas ruas, loucos, enfermos e prisioneiros retirados das cadeias para alucinar os ocupantes franceses.

Assistir a esta cópia restaurada de “Guerra e Paz” nestes dias de quarentena é um programa muito enriquecedor e prazeroso. Arrisquem-se, pois, fartando-se com os quatro filmes, todos obrigatórios.

 

Guerra e Paz (“Voyna i Mir”)
Produção soviética de 1966/1967, dividida em quatro partes: “Andrei Bolkonsky” (Parte 1), “Natasha Rostov” (Parte 2), “O Ano de 1812” (Parte 3) e “Pierre Bezukhov” (Parte 4)
Oscar de melhor filme estrangeiro em 1968
Falado em russo (e também em francês e alemão)
Roteiro: Vassily Solovyov e Sergei Bondarchuk
Elenco: Ludmila Savelyeva (Natasha), Sergei Bondarchuk (Pierre), Vyacheslav Tikhnov (Andrei), Vassily Lanovoy (Anatol), Irina Skobtseva (Elena), Boris Zhakava (General Mikahil Kutuzov), Vladislav Strzhelchik (Napoleão Bonaparte)
Duração: 402 minutos
Disponível, gratuitamente, no streaming da Mosfilm, com legendas em português

 

FILMOGRAFIA
Serguei Bondarchuk (1920-1994)
Ator, roteirista e cineasta

Como diretor:

. 1959 – O Destino de um Homem
. 1966/67 – Guerra e Paz
. 1970 – Waterloo
. 1975 – “Eles Combateram pela Pátria”
. 1976 – “Zelengore” (“Cordilheira de Zelengore”)
. 1977 – “Step” (Estepe, baseado em Tchekov)
. 1982- “Krasnye Kolokola 1” (“Sinos Vermelhos – México em Chamas”) – cinebiografia de John Reed
. 1983 – “Krasnye Kolokola 2” (“Sinos Vermelhos – Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo”) – cinebiografia de John Reed
. 1987 – Boris Godounov

Como ator:

. 1948 – “A Jovem Guarda”
.1950 – “Cavaleiro da Estrela Dourada”
.1951 – “Taras Shevchenko”
.1953 – “Almirante Ushakov”
.1955 – “Samson Samsonov” (baseado em Tchecov)
. 1956 – “Otelo, o Mouro de Veneza”
. 1959 – “O Destino de um Homem”
. 1960 – “Um Verão para Lembrar”
. 1966 – “Guerra e Paz”
. 1971 – “Tio Vania”, de Andrei Konchalovski
. 1975 – “Eles Combateram pela Pátria”
. 1976 – “A Escolha de uma Meta”
. 1978 – “Padre Sérgio” (Tolstoi)
. 1980 – “Ovod” (para TV)
. 1987 – “Boris Godounov”

Coproduções internacionais:

. 1990 – “A Batalha dos Três Imperadores”
. 1992 – “Trovão sobre a Rússia” (último trabalho)

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