Suzana Amaral

Por Maria do Rosário Caetano

Suzana Amaral não acreditava em “sensibilidade feminina”, mas realizou um dos mais importantes e estimados filmes “no feminino” do cinema brasileiro, “A Hora da Estrela”.

O longa-metragem, protagonizado por Marcélia Cartaxo, foi premiado nos festivais de Berlim, Havana e Brasília e colocou a “veterana-estreante” na estrada do cinema. Ao estrear no comando de um filme de longa duração, depois de realizar dois curtas (“Semana de 22” e “Sua Majestade Piolim”) e um média-metragem (“Sua Vida, Nossas Vidas”), a cineasta tinha 53 anos e era mãe de nove (sim, nove!) filhos.

Suzana Amaral morreu na tarde da última quinta-feira, 25 de junho, em sua cidade natal, São Paulo. Tinha 88 anos. O sucesso de “A Hora da Estrela” foi imenso e muito afetivo. Quando a cineasta desembarcou no Festival de Havana do Novo Cinema Latino-Americano, em dezembro de 1986, chegava de excursão cinematográfica por diversas universidades norte-americanas.

Depois de formar-se na Escola de Comunicação e Artes (ECA-USP), na pioneira turma de 1968-1971, Suzana escolheu os EUA como território de seus estudos de aperfeiçoamento (Direção na New York University, Interpretação no Actor’s Studio, e estágio WCNY – Canal 31). Regressaria ao país para mostrar “A Hora da Estrela” a plateias universitárias e debatê-lo sem descanso e sob aplausos, em especial de estudantes-mulheres. Mesmo assim, não carregou a bandeira do “cinema no feminino”, como fazem hoje realizadoras como Tata Amaral, Anna Muylaert e Petra Costa.

Alguns dias depois de desembarcar em Cuba, para participar do Festival de Havana 1986, a diretora paulistana confessou a um pequeno grupo de jornalistas brasileiros que estava feliz por poder expressar-se em português. “Nos EUA, foram tantos debates, tantas conversas, tantos encontros em inglês”. Daí, “chego a Cuba e o espanhol tem sua hora e vez. Minhas cordas vocais se sentem, nesse momento, recompensadas em poder emitir os fonemas da minha língua materna”. E riu, satisfeita e acomodada em seu magro e miúdo corpo (menos de 1m50).

O júri do Festival de Havana, presidido pelo escritor Jorge Amado (1912-2001), foi unânime na escolha de “A Hora da Estrela” para o Grande Coral Negro. O autor de “Capitães da Areia” me confessou “ter certeza” que sua amiga Clarice Lispector (1920-1977) sentiria “profunda emoção se tivesse assistido ao belíssimo filme de Suzana Amaral”.

O triunfo em Havana significava a terceira fase de consagração de “A Hora da Estrela” em festivais. Tudo começara em Brasília, em 1985. Seis longas-metragens disputaram doze troféus Candango. “A Hora da Estrela” ganhou nove. Inclusive os cinco principais (melhor filme, direção, atriz, ator e roteiro).

No Festival de Berlim, um dos três maiores do mundo, o filme disputou o Urso de Ouro. Sua protagonista, Marcélia Cartaxo, ganharia o Urso de Prata de melhor intérprete, abrindo caminho para Ana Beatriz Nogueira (“Vera”, 1987) e Fernanda Montenegro (Central do Brasil, 1998).

Apesar de tamanho êxito, a carreira de Suzana Amaral não foi fácil. Ela só realizaria, ao longo dos 35 anos seguintes, mais dois longas: “Uma Vida em Segredo”, recriação (ou “transcriação” como ela preferia) de romance homônimo do mineiro Autran Dourado, e “Hotel Atlântico”, a partir de João Gilberto Noll, adaptado antes por Murilo Salles (“Nunca Fomos Tão Felizes”, a partir do conto “Alguma Coisa Urgentemente”) e Maurice Capovilla (“Harmada”).

Não se sabe se Autran Dourado (1926-2012) gostou do filme protagonizado por Sabrina Greve, mas Noll ficou entusiasmado com a “transcriação” de “Hotel Atlântico”. Em bilhete endereçado à cineasta, o escritor gaúcho confessou – depois de assistir à pré-estreia em um cinema carioca – estar “sob forte emoção. “O filme é maravilhoso, além das melhores expectativas! Está ali o Brasil profundo, tudo com uma agilidade não leviana, mas com certa solenidade. Dos filmes baseados em livros meus, este é o ponto alto! Júlio (Andrade) é o cara do cinema brasileiro atual. Todos estão bem, o enfermeiro (João Miguel), então! O momento em que você pega o rosto do Júlio no leito trágico, não é o rosto dele apenas, é o de toda a humanidade. Me comovi vendo minha amiga Helena Ignez ao final”.

“Hotel Atlântico” foi lançado em 2010. Dali em diante, Suzana retomaria projeto que amava e que daria sequência ao seu diálogo com a literatura brasileira: “O Caso Morel”, de Rubem Fonseca (1925- 2020). A cineasta-roteirista, que trabalhara em parceria com a escritora Patrícia Melo, reelaborou o roteiro, aprimorou-o, durante longos vinte anos. Apesar de todos os seus esforços, não conseguiu realizá-lo. Amigos ouviram dela o desejo de “transcriar” o romance “Perto do Coração Selvagem”, de Clarice Lispector, mas o projeto também ficou na condição de “cinema de papel”.

Abaixo, transcrevemos alguns trechos de entrevista que a Suzana Amaral concedeu a Revista de CINEMA, no final de 2009, semanas depois de ter integrado, ao lado do crítico francês Jean-Michel Frodon, o júri da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo:

Sensibilidade feminina – “Não acredito em sensibilidade feminina. Acredito mais no que tenho a dizer e busco transmitir o melhor possível. Me atraem os finais insólitos, intrigantes, metafóricos, abertos, nos quais o espectador tem espaço para se colocar e completar a estória. No final, levar o filme para casa e pensar. Cada um no seu jeito”.

Personagens de exceção – “Você observa que meus personagens parecem seres deslocados, sem lugar neste mundo. Concordo. Talvez por curtir o ‘torto’, por ser revoltada, ‘espírito de porco’. Ou talvez por alguma identificação misteriosa, sem explicação. Seria eu também um ser deslocado, sem muito lugar neste mundo? Talvez…”

Textos literários – “Meu processo de valorização do trabalho do ator explica bastante como e porque baseio meus filmes em textos literários. Como sistemática de trabalho, não dou o roteiro para os atores lerem e a base de minha direção está centrada na construção dos personagens. Sendo assim, é imprescindível termos um texto literário na base de nossas conversas e de nosso trabalho para estabelecermos o diálogo sobre o filme. O roteiro propriamente dito é econômico, asceta, quase uma planta no sentido arquitetônico, a serviço da produção fílmica. É uma peça fria, sem palavras bonitas ou construções literárias. Não é feito para emocionar. Acho que uma das razões dos meus roteiros não impressionarem nem convencerem os jurados dos editais de cinema, talvez advenha da expectativa de quem julga, de querer encontrar uma peça literária no que deve ser uma ferramenta para a realização do futuro filme”.

Filmes televisivos – “Vejo-os como um déjà-vu, como uma opção de dar ao público o que ele já sabe, já conhece e pode decodificar. É o sucesso garantido. As pessoas gostam do que conhecem, não é verdade? Qualquer mudança estética causa estranhamento, problemas. As pessoas, no geral, não querem o novo. O velho, o anterior, é mais fácil e confortável. Não foi assim quando a turma da Semana de 22 chegou com suas novas propostas?”

Hotel Atlântico – “Nesse filme optei por encarar outra visão de mundo: o universo masculino. Optei por uma narrativa estranha. E foi esse estranhamento o que mais me atraiu no livro do Noll – sem psicologismos, nem explicações expositivas. E, para ser fiel ao espírito da obra, quis também passar um recado novo, diferente, intrigante e insólito. Muitos compreenderão? Poucos? Pelo que já pude observar, alguns (muitos!) entenderam”.

Influências – “David Lynch? Antonioni? A comparação é elogiosa, mas penso que no mundo das artes não existe nada de novo. As influências circulam, se recriam. São como fantasmas vagando sobre todos nós, são atmosféricas, estão no ar, é o Espírito do Tempo. E muitas vezes são inconscientes. Na década de 70, o cinema alemão e europeu, de maneira geral, me atraíram bastante”.

 

FILMOGRAFIA

Longa-metragem

1985- “A Hora da Estrela”
2006 – “Uma Vida em Segredo”
2020 – “Hotel Atlântico”

Curta e média-metragem

1970 – “Semana de 22”
1971 – “Sua Majestade Piolim”
1979 – “Minha Vida, Nossa Luta”

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