Mostras comemoram os 80 anos de Pelé, o atleta do século

Por Maria do Rosário Caetano

No auge da fama, Edson Arantes do Nascimento, o mineiro Pelé, parou uma guerra na África. Os contendores queriam ver o astro do futebol mundial jogar. Nessa sexta-feira, 23 de outubro, ele completa 80 anos, recolhido em casa e com problemas de locomoção.

Para festejar o octogenário ano do Rei do Futebol, o Canal Brasil e o Cine Roxy, de Santos, programaram seis filmes (três cada um). A emissora dedicada ao cinema brasileiro apresentará dois documentários – “Isto é Pelé”, de Luiz Carlos Barreto e Eduardo Escorel, e “Pelé Eterno”, de Aníbal Massaini. Completa a programação com obra ficcional, “Os Trombadinhas”, de Anselmo Duarte. Há que se lembrar que, além de compositor bissexto, Pelé sonhou ser ator. Fez filme até com John Huston (1906-1987) – “Fuga para a Vitória”. E ao lado de elenco estelar (os craques Max Von Sydow e Michael Caine, e o canastrão Sylvester Stallone).

O filme de Huston é a peça de resistência da programação do Cine Roxy, importante circuito exibidor da Baixada Santista, onde Pelé defendeu, durante os melhores anos de sua vida, um único clube brasileiro, o Santos Futebol Clube. Naquele tempo, atleta não trocava de time com a frequência voraz de nossos dias. Fora a camisa do Santos e a da Seleção Brasileira, pela qual foi tricampeão do mundo, Pelé só exibiria outro escudo, o do Cosmos, clube estadunidense. O fez até sua aposentadoria, em 1977.

O Cine Roxy programou outra ficção – “Pelé: O Nascimento de uma Lenda”, de Michael e Jeff Zimbalis. Esse filme, lançado há quatro anos, tentou reviver a glória do Atleta do Século. Completa a programação santista, o documentário “Pelé Eterno”, a obra mais ambiciosa e completa sobre a trajetória do Rei do Futebol. Um filme que fez boa carreira nos cinemas (200 mil espectadores) e vendeu milhares de cópias em DVD.

Fuga para a Vitória” é um filme de carregação, que Huston, diretor dos poderosos “O Tesouro de Sierra Madre”, “Cidade das Ilusões” e “Os Vivos e os Mortos”, fez para saciar interesses industriais de duas majors do cinema (Paramount e Warner). Pelé era, então, uma lenda mundial. Por que não tê-lo no elenco de um filme que somava futebol, nazismo e guerra? Pois, em 1981, Huston narrou ao longo de 114 minutos, estória esdrúxula (na verdade um remake de filme húngaro realizado por Zoltán Fabri, em 1961), ambientada em campo de prisioneiros de guerra. Nesse território, o Major Karl von Steiner (Max Von Sydow), que fora jogador da seleção germânica, tem a ideia de realizar um jogo entre a Alemanha nazista e uma seleção composta pelos prisioneiros de tropas Aliados. Estes são liderados pelo capitão John Colby (Michael Caine), um militar inglês, também um ex-craque dos gramados. Caberia a Colby a tarefa de montar e treinar o time dos prisioneiros. A partida aconteceria no Estádio Colombes, próximo a Paris (portanto, o campo de aprisionados pelos nazistas situa-se na França ocupada). Os seguidores de Hitler, com exceção de Steiner, tudo farão para vencer o jogo. Já os prisioneiros planejam arriscada fuga (anunciada no título, que é bem melhor que o filme). No elenco, veteranos admiradores do esporte mais popular do mundo reconhecerão outros craques do esporte bretão – o inglês Bobby Moore, o argentino Oswaldo Ardiles e o polonês Kazimierz Deyna.

“Pelé: O Nascimento de uma Lenda”, dos irmãos Zimbalis, tentou, em 2016, cativar jovens espectadores com versão fabular da trajetória de Edson Arantes do Nascimento (já narrada no desaparecido “O Rei Pelé”, versão melodramática dirigida por Carlos Hugo Christensen, em 1962). Mas o intento de Michael e Jeff não resultou em sucesso de bilheteria. Com filmagens realizadas no Rio de Janeiro e em Los Angeles, os diretores bolaram um descolado produto de alcance internacional, e para tanto, falado em inglês. Tornou-se, porém, estranho ver o jovem Kevin de Paula (Pelé), Seu Jorge (Dondinho, pai do aleta), Mariana Nunes (Dona Celeste, a mãe) e Milton Gonçalves falando o idioma de Hollywood em locações mineiras e santistas. Mas o filme tem bons momentos e acertou em seu recorte ao focar a infância pobre, mas impregnada de valores construtivos, e a juventude do futuro atleta do século. A trama de “O Nascimento de uma Lenda” chega a seu ápice quando, aos 17 anos, Pelé estoura na Copa do Mundo de 1958. Dali em diante, e até 1970, quando os brasileiros sagraram-se tricampeões do mundo, o Brazil se orgulharia de ser a pátria de dois dos maiores astros da história do futebol: Pelé e Garrincha.

“Pelé Eterno”, que Anibal Massaini lançou em 2004, é o único filme programado pelas duas mostras, a televisiva e a presencial. Escolha mais que justa. Afinal, trata-se de sólido documentário construido para narrar, ao longo de 124 minutos, os feitos do jogador, eleito pelo Comitê Olímpico Internacional, “o atleta do século”, e pela Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol e pela FIFA (Federação Internacional de Futebol), o “melhor jogador do Século XX”. O mineiro, nascido na pequena Três Corações, foi, pelo Santos, bicampeão mundial de clubes e bicampeão da Libertadores da América. E desfruta da glória de ser “o único futebolista tricampeão do mundo de seleções” (craques como Maradona, Messi e Cristiano Ronaldo não atingiram tal meta – o primeiro teve sua carreira encurtada pelo uso de drogas, o segundo e o terceiro nunca triunfaram numa Copa do Mundo).

“Pelé Eterno”, nome de raro poder de síntese e grande beleza, não é um filme inovador. Ao contrário, é bem tradicional. Mas seu diretor conseguiu reunir farta documentação audiovisual para evocar as glórias de seu personagem. E o que foi importante na construção da narrativa: o palmeirense Massaini contou com a cumplicidade do atleta. Se, por um lado, tal cumplicidade pode resultar em um filme “chapa branca”, por outro, há o registro essencial do depoimento do biografado, que aborda temas familiares e, até, a questão do racismo. “Pelé Eterno” – registre-se – é um filme celebratório. Portanto, não está em busca de polêmicas. O que, nesse caso, não é demérito, já que os feitos do jogador são realmente paroxísticos, inigualáveis até nossos dias. Tolice apegar-se ao acessório, quando o essencial é de natureza épica.

Massaini conseguiu apresentar, visualmente, mais de 400 gols (o atleta marcou 1281, sendo 1091 pelo Santos e 95 pela Seleção Brasileira). Aqui vale um registro: Pelé protagonizou carreira apolínea, pois foi sempre um “bom moço”. Nunca se envolveu com álcool, drogas, farras desmedidas (ou estupros). Teve, sim, uma filha fora do casamento e custou a reconhecê-la. Deu uma ou outra declaração política inoportuna (“brasileiro não sabe votar”), mas sua trajetória, que vai de 1957 a 1977, não carrega elementos trágicos como a dos dionisíacos Garrincha e Maradona. O jogador só não entrava em campo quando sofria lesões físicas.

O melhor momento de “Pelé Eterno” mostra o jogador no auge da carreira e fama, fazendo cessar guerra que antagonizava grupos rivais na populosa Nigéria. A trégua teria sido obtida quando ele participou de amistoso em Benin City (1969). Há quem diga que a história não foi bem assim. Mas Massaini preferiu imprimir a lenda.

O pior momento do documentário é aquele que tenta reconstituir, com recursos precários de animação, um dos gols de antologia do craque: aquele marcado contra o Juventus, na Rua Javari (em agosto de 1959). Não há registro em celulóide desse feito, nem do “gol de placa” que ele marcaria no Maracanã, sobre o Fluminense (em março 1961). Se o cinema no Brasil fosse uma indústria digna do nome, Massaini recorreria a técnicas, hoje avançadíssimas, de computação gráfica, para reconstruir o gol antijuventino, que Coutinho (1943-2019), jogador piracicabano e colega de Pelé, considerava “o mais bonito da carreira do atleta”.

O documentário “Isto é Pelé”, que Barretão dirigiu em parceria com Eduardo Escorel, narra a trajetória do jogador no calor da hora. Em 1974, ano de lançamento do filme, ele estava na ativa e desfrutava de fama planetária. As glórias do tricampeonato mundial faziam dele um ídolo até do britânico Ken Loach. O diretor de “Kes”, “Terra e Liberdade” e “Meu Nome é Joe” nunca negou que a Seleção Canarinho de 1970 foi a maior (e melhor) de todos os tempos. Será superada? Eis a questão.

O filme de Barretão e Escorel parte da despedida brasileira do atleta, que deixava nossos gramados rumo a outro desafio. Joga luz sobre a carreira de Pelé com ênfase em seus feitos na Seleção Brasileira, lembrando sua participação em quatro Copas (ele conheceria o fracasso em 1966, quando o Brasil foi desclassificado pela Seleção Portuguesa, do astro Eusébio, e a Inglaterra conquistou seu único título mundial).

O quinto título da mostra (e o terceiro da programação do Canal Brasil) é a ficção “Os Trombadinhas” (1979), de Anselmo Duarte, único cineasta brasileiro a conquistar a Palma de Ouro em Cannes. Pelé, que, em sua vida civil, andava empenhado em ajudar as criancinhas, forneceu ao diretor de “O Pagador de Promessas” argumento escrito de próprio punho. O roteiro e os diálogos ficaram com a assinatura carimbada do jornalista e escritor Carlos Heitor Cony. No elenco, nomes respeitados como Paulo Goulart, Raul Cortez, Paulo Villaça, Neusa Amaral e Ana Maria Nascimento e Silva. Mas o astro era Edson Arantes do Nascimento, tentando, esforçadamente, mostrar valor como intérprete. Ou seja, ir além da persona Pelé.

A trama de “Os Trombadinhas” é comandada pelos bons sentimentos. “Pelé” ensina seu ofício a garotos das divisões de base do Santos e acaba se interessando por meninos de rua que praticam pequenos furtos. Aliado a um empresário do “bem” (Paulo Goulart), o professor de futebol tenta desvendar rede de exploração de menores e, se possível, descobrir quem está por trás da contravenção. O “professor” transforma-se, então, em policial e em dupla com Bira (Paulo Villaça, intérprete do bandido da luz vermelha sganzerliano), sai em busca dos responsáveis pelos roubos.

O resultado desse projeto de “policial social-urbano” não passa de mediano. Os roubos, perseguições, lutas, explosões e tiroteios mostram que – naquela década – o cinema de ação brasileiro ainda tinha muito que aprender (“Cidade de Deus” viria, em 2002, mostrar, com excelência, que um dia seríamos capazes de somar delinquência juvenil e cinema de ação). Mas resta a curiosidade de ver elenco tão significativo e o esforço de Pelé em tentar ser um “intérprete”. Ah, o samba que encerra o filme – “Moleque Danado” – é uma composição de Edson Arante do Nascimento, o Rei Pelé.

 

Mostra Pelé 80 Anos
Canal Brasil
De 19 de outubro a 2 de novembro
Serão apresentados três filmes sobre a trajetória de Edson Arantes do Nascimento – “Pelé Eterno” (dia 19), “Os Trombadinhas” (dia 26) e “Isto É Pelé“ (2 de novembro)
Sessões às segundas-feiras, às 18h

Mostra 80 Anos do Rei Pelé
Cine Roxy 5, em Santos
Serão exibidos “Fuga para a Vitória” (quinta-feira, às 18h), “Pelé Eterno” (quinta-feira, às 20h30, e sexta-feira, às 18h) e “Pelé: O Nascimento de uma Lenda” (sexta-feira, às 20h30)
Sessões gratuitas. A entrada se dará por ordem de chegada à sala, respeitando os protocolos de distanciamento social e higienização.

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