Mostra SP apresenta poderosa safra iraniana

Por Maria do Rosário Caetano

Não estará errado quem colocar “Não Há Mal Algum”, do iraniano Mohammad Rasoulof, vencedor do Urso de Ouro em Berlim, no começo do ano, como um dos cinco momentos mais luminosos da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Trata-se, realmente, de um filme notável.

O Irã, pátria de Abbas Kiarostami, Jafar Panahi e Agshar Fahradi, continua fazendo um dos melhores cinemas do mundo. Só este ano, a Mostra SP, que prossegue até quarta-feira, 4 de novembro, programou dez longas-metragens que trazem o país persa em seu DNA (e um curta – “Escondida” – de grande valor, assinado por Jafar Panahi).

Por que o cinema iraniano tornou-se tão poderoso? O que permitiu que um país de apenas 82 milhões de habitantes e história tão acidentada se consolidasse de forma tão notável na produção audiovisual? Por que conseguimos citar os nomes de pelo menos cinco realizadores, que lá desenvolveram trajetória tão significativa, reconhecida, premiada?

O Brasil é um país de 210 milhões de habitantes, quase três vezes mais que o Irã. Temos, sim, uma cinematografia importante, mas que ainda não atingiu reconhecimento tão superlativo quanto o iraniano.

Citemos os mais importantes: Palma de Ouro, em Cannes, para “Gosto de Cereja”, de Abbas Kiarostami, Leão de Ouro, em Veneza, para “O Círculo”, de Jafar Panahi, Urso de Ouro, para “A Separação”, de Ashgar Farhadi, “Taxi Teerã”, também de Panahi, e o recente “Não Há Mal Algum”, dois Oscar (ambos para Farhadi, com “O Apartamento” e com “A Separação”).

Os iranianos sabem, como poucas cinematografias do mundo, realizar filmes infanto-juvenis. Foi graças ao departamento cinematográfico do Instituto de Desenvolvimento Intelectual das Crianças e Adolescentes, que conhecemos filmes como “O Balão Branco”, de Panahi, e obras tocantes (nunca piegas) de Majid Majidi. Quem não se lembra de “Filhos do Paraíso”, saga mirim de dois irmãos pobres (Ali e Zahra) que comiam o pão que o diabo amassou em busca de par de sapatos desaparecido?

Pois, entre os dez longas (e um curta) iranianos reunidos pela Mostra SP, há outro Majid Majidi inesquecível: “Crianças do Sol”. Quando o filme começa, nos deparamos com meninos que vivem de pequenos furtos na rua. Até que um contraventor propõe a um deles, que ganhe dinheiro buscando tesouro escondido sob um cemitério. E que o acesso a tal tesouro será possível se túnel for cavado a partir de velho casarão, transformado em escola, rumo às sepulturas.

Ali, o carismático protagonista do filme (o pré-adolescente Rouhollah Zamani, prêmio ator revelação em Veneza) vai comandar a apaixonante caça ao tesouro. Drama social e filme de aventura se somarão em roteiro trabalhado com a mais refinada ourivesaria. Ao final, concluiremos que o filme é mais, muito mais, que um “caça-tesouros”. É mais uma prova de que o Irã faz filmes complexos, densos e capazes de dialogar com o grande público. Coisa rara.

É claro que “Crianças do Sol” não está no mesmo nível dos filmes de Kiarostami, um dos grandes nomes da história do cinema. Nem das complexas obras de Ashgar Farhadi, nem dos melhores Panahi. Nem do excelente “Não Há Mal Algum”, que Berlim consagrou. Mas Majidi prova que é possível transformar um “caça-tesouro” em um filme notável, em uma verdadeira aula de roteiro.

Se, até quarta-feira, o espectador quiser ver um dos mais notáveis filmes vindos do país persa, esse filme é o de Mohammad Rasoulof. Ao longo de 152 minutos, “Não Há Mal Algum” mergulha num dos temas mais difíceis do cinema: a pena de morte. Mas essa tragédia humanitária está apenas no pano de fundo.

O que veremos nos quatro episódios que compõem a narrativa é um mergulho profundo (e sutil) em belas histórias humanas e conflitos de consciência. Com direito a casarões com gerânios nas sacadas, estradas poeirentas e contidas demonstrações de amor (sexo e nudez, nem pensar). Um filme obrigatório.

Se formos muito rigorosos, diremos que só sete dos dez longas-metragens abaixo listados como detentores de DNA iraniano (ver tabela) o são de verdade. Isto porque “O Pequeno Refugiado”, de Batin Ghobadi, apresenta-se como coprodução entre Turquia e Irã, filmada na Síria. O ótimo “Pari”, de Siamak Etemadi, é uma produção grega, realizada em parceria com a França, Holanda e Bulgária.

Já “Os Nomes das Flores”, do iraniano Bahman Tavoosi, radicado no Canadá, foi produzido na Bolívia, com apoio dos EUA e Catar, sendo identificado como produção canadense. Trata-se de belo filme, um híbrido de ficção e documentário, que traz muito do cinema de Kiarostami.

Siamak Etemadi, nascido em Teerã há 48 anos, fez de seu longa de estreia – “Pari” – uma narrativa grega de alma iraniana. Ele, que estudou cinema na Inglaterra e na Grécia (e vive em Atenas), escreveu história pungente e feminina, cujos protagonistas são persas. Um casal formado com Pari, mulher de meia idade (a bela Melika Fouroutan) e Farrock (Sahbaz Noshir), o marido mais velho, chega à Grécia para visitar o filho, que escolhera o país helênico para aperfeiçoar-se nos estudos. O rapaz ficara de buscá-los no aeroporto. Mas não aparece.

Dali em diante, Pari protagonizará uma arrebatadora (para ela e para o público) odisseia íntima em busca do filho desaparecido. Mergulhará numa Grécia urbana e caótica, marcada por protestos estudantis, violência e prostituição. E não esmorecerá. Da esposa apagada e coberta de véus, que vimos desembarcar em solo grego, até a mulher que chegará ao porto e ao mar, muito nos será revelado. Uma saga feminina arrebatadora.

Os por quês dos valores (qualitativos e quantitativos) do cinema iraniano continuam, pois, a nos desafiar.

A SAFRA IRANIANA:

. “Não Há Mal Algum”, de Mohammad Rasoulof (Irã-Alemanha, ficção, 152′)
. “Crianças do Sol”, de Majid Majidi (Irã, ficção, 99′)
. “Sem Som”, de Behrang Dezfoulizadeh (Irã, ficção, 86′)
. “Anima”, de Reza Golchin (Irã, ficção, 75′)
. “Corvos”, de Naghi Nemati (Irã, ficção, 80′)
. “Sem Cabeça”, de Kaveh Sajyadi Hosseini (Irã, ficção, 93′)
. “Quando a Lua Estava Cheia”, de Narges Abyar (Irã, ficção, 126)
. “Escondida”, de Jafar Panahi (curta-metragem, Irã, França – 18 minutos)
. “O Pequeno Refugiado”, de Batin Ghobadi (Turquia, Irã, ficção 90′, filmado na Síria)
. “Pari”, de Siamak Etemadi (Grécia, França, Holanda, Bulgária, ficção, 101′)
. “Os Nomes das Flores”, de Bahman Tavoosi (Bolívia, Canadá, EUA, Catar, fic-doc, 79′)

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