Bárbara Cariry estreia no Cine Ceará com road movie sobre pequenos guerreiros

Por Maria do Rosário Caetano

Fortaleza (CE) — A jovem Bárbara Cariry mostrou, no Cine Ceará, seu primeiro longa-metragem, o infanto-juvenil “Pequenos Guerreiros”, cujo roteiro escreveu com o pai, o veterano cineasta Rosemberg Cariry, e que ela montou com o irmão, o também cineasta Petrus Cariry. Petrus assina, também, a exuberante fotografia deste road movie ensolarado, que parte — num jipe velho — do litoral cearense até a mística Barbalha, no sertão. Passando por Quixadá, “terra do ETs”, por Santana do Cariri e seu vale dos dinossauros, e, como não poderia deixar de ser, pelo Crato e pela estátua do Padre Cícero, no Juazeiro.

O vigésimo longa-metragem do clã cearense (13 dirigidos por Rosemberg, seis por Petrus e este por Bárbara) resultou em bela surpresa. Um filme-raiz, bem ao gosto do autor de “Corisco & Dadá” e “Os Pobres Diabos”, mas sem passadismo nostálgico. Como diria Gilberto Gil, um filme “parabolicamará”, sintonizado em ondas planetárias, por antenas parabólicas, sem esquecer nutritivas forças telúricas.

Tudo começa na casa do pescador Cosme (Bruno Goya) e de sua mulher Maria (Georgina de Castro). Os dois recordam, ao alvorecer, de sonhos sonhados e muito parecidos. Concluem que são sinais de que devem pagar promessa em Festa do Pau da Bandeira, em devoção a Santo Antônio, em Barbalha. Avisam ao filho pequeno, Benedito (Juan de Calado), que partirão rumo ao sertão. Levam junto, também, os sobrinhos Bruna (Lara Ferreira) e o encapetado Matheuzinho (Daniel Almeida), louco por ETs e super-heróis. A viagem será feita num jipe caindo ao pedaços. Maria conseguirá, com a professora dos meninos, a dispensa deles, desde que tragam detalhado relato da viagem para a sala de aula.

Pelo caminho, que se alonga com os enguiços do jipe, a bela paisagem cearense se descortinará, os meninos dialogarão com o ET de Quixadá, com os dinossauros de Santana do Cariri (e levarão alguns sustos num museu às escuras), conhecerão artistas populares, grupos mascarados, figuras ancestrais. Em Barbalha, a câmara de Petrus Cariry registrará poderosas imagens de imensa multidão de fieis carregando (e erguendo) gigantesco e pesado pau da Bandeira, que se transformará em mastro para a imagem do Santo. A família Cariry conhece, em profundidade a fé religiosa da região e já fez documentários sobre a Irmandade dos Penitentes da Cruz, confraria religiosa que mantém seu núcleo no Sítio de Cabaceiras, no complexo Barbalha-Crato-Juazeiro do Norte.

“Pequenos Guerreiros”, de Bárbara Cariry

A montagem de Barbara e Petrus é ágil, a trilha sonora vigorosa, a engenharia de som atilada, o roteiro divertido (com algumas doses de didatismo que não comprometem). Enfim, um filme infanto-juvenil inteligente e filiado a vertente que já nos deu “A Dança dos Bonecos”, “Meninos Maluquinhos”, “Castelo Rá-Tim-Bum” e “Pequenas Histórias”. E mais: com brasileiros de peles negras e morenas e cabelos crespos como protagonistas. Encantadores protagonistas.

“Pequenos Guerreiros” não participa de nenhuma competição do Cine Ceará. O filme foi projetado para duas centenas de alunos de escolas públicas dentro do segmento O Primeiro Filme a Gente Nunca Esquece. A garotada manteve sintonia fina. Riu e aplaudiu muito. Todo mundo sabe que criança não aguenta filme chato. Começa a andar pela sala, a zoar, mesmo que haja cinco ou 10 inspectores de butuca ligada. Pois ninguém arredou pé. O filme já foi selecionado para três festivais infanto-juvenis internacionais e deve, agora, iniciar carreira em mostras competitivas nacionais.

No terreno das competições — de longas ibero-americanos e de curtas brasileiros — o Cine Ceará já apresentou oito filmes. Duas ficções longas (o equatoriano “Vacio”, de Paul Vénegas, do Equador, e o cearense ”Fortaleza Hotel”, de Armando Praça. E o documentário uruguaio “Bosco” (Bosque), de Alícia Cano Menoni. Uma pequena joia, que passou pelo poderoso IDFA (Festival de Amsterdã, meca do cinema documental) e pelo Cannes Doc.

Bosco dos Rossano é uma minúscula cidade italiana plantada na montanha, entre imensas castanheiras. Depois de perigosa inundação, parte de sua população partiu. Restaram 123 casas, só sete delas habitadas. A cineasta uruguaia é neta de um originário da italiana Bosco, o velho Menoni, que guarda muitas saudades daquele rincão. Resolve, então, ao longo de 13 anos, registrar a vida de alguns dos rarefeitos e teimosos moradores de Bosco. Em especial de duas mulheres. Uma delas, uma pastora, que cuida de animais mais teimosos do que ela. O filme é irresistível. E estabelece delicada relação entre a Itália daquele pequeno bosque com o Uruguai do Sr. Menoni e suas muitas lembranças. Um forte concorrente aos troféus Mucuripe.

“Vacio” é uma ficção hispano-americana que aborda tema da hora: a imigração, no caso, a chinesa. Dois jovens — um rapaz e uma moça — vão parar em Guayaquil, cidade portuária e industrial, a maior do Equador. Sem documentos, eles caem nas mãos da máfia. Ela sonha chegar a Nova York.

Falado majoritariamente em mandarim, às vezes em inglês e de vez em quando em espanhol, o filme trabalha com atores não-profissionais, que Paul Vénegas escolheu no bairro chinês guayaquileño. Ele viveu por seis anos em Hong Kong e Pequim. Formado em Finanças em universidade dos EUA, foi fazer pós-doutorado nas Filipinas, passou por Hong Kong e resolveu estudar línguas em Pequim. Realizou documentários na China (um deles, “Rumo a Xanadu”), e escreveu roteiro ficcional que aproximava a cultura chinesa da equatoriana. O projeto foi premiado pelo Festival de Pequim. Mas, com o filme pronto, nenhum festival chinês quis exibi-lo.

Vénegas crê que sejam várias as razões: “os chineses não admitem que haja processo migratório, não aceitam cenas de sexo, nem temas como máfias”. Aliás, sobre processos migratórios, o equatoriano defende ideia curiosa: “há uma política de Estado, promovida, mas não admitida, pelos governantes chineses, de estimular fluxos migratórios por todo o mundo, da África à América Latina, da Austrália aos EUA, para difundir planetariamente sua cultura e seus valores”.

Dos cinco curtas exibidos até agora na competição, o que mais chamou atenção foi o paulistano “Chão de Fábrica”, de Nina Kopko. Protagonizado pelas atrizes Helena Albergaria (“Trabalhar Cansa”), Carol Duarte (“Vida Invisível”), Alice Marcone e Joana Castro, o filme reúne, em uma única locação — o banheiro de uma fábrica no ABC Paulista — quatro operárias em horário de almoço. Elas falam de suas vidas, problemas, desejos, greve e tentam absorver, em seus corpos untados com coca-cola, réstias de sol que entram por um vidro quebrado. O roteiro nasceu de fragmento de peça de mesmo nome escrita por Sérgio Carvalho e montada pela Companhia do Latão. Um filme feminino, enriquecido com imagens de arquivo da era do cinema e da fotografia metalúrgicos, tão masculinos, que chega para fazer companhia a títulos raros como “Mulheres Metalúrgicas”, de Olga Futemma e Renato Tapajós.

Do Piauí, outra bela surpresa: “Encarnado”, de Otávio Almeida e Ana Clara Ribeiro. Em formato híbrido, o filme soma ficção, documentário e ensaio, em narrativa sobre vaqueiros, com seus chapéus de couro, em suas duras lidas laborais. Registros de arquivo, bem antigos, introduzem imagens colhidas no presente, de paisagens compostas de pedra e água, de mistérios e fé. O filme é fruto de parceria entre piauienses e cubanos, pois os dois brasileiros passaram pela Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, nos arredores de Havana.

Petrus Cariry, que encerrará a mostra competitiva do Cine Ceará com o longa ficcional “A Praia do Fim do Mundo”, participa da competição de curtas com seu filme mais confessional — “Era um Tempo de Poesia”. Ele é, inclusive, personagem da narrativa, pois o filme é dedicado à trajetória de seu padrinho, o poeta, cantador e compositor popular Patativa do Assaré (1909-2002).

De Pernambuco chegou curta de título misterioso — “O Durião Proibido”. Seu realizador, Txai Ferraz, constrói um documentário-colagem-híbrido, que nos apresenta um cineasta brasileiro (o narrador), vivendo em Bangkok, apaixonado por Haruki, um japonês que, em breve tempo, deixará o país e o namorado. E aí entra o durião, um estranho fruto, muito apreciado pelo japoneses, mas que por suas características (aroma, inclusive) não deve ser degustado em ambientes públicos.

De São Carlos, no interior de São Paulo, veio a ficção (em diálogo com o documental), “Ausências”, de Antônio Fargoni. Uma mulher vai visitar a família. Diálogos livres, encontros, sustos, as águas revoltas e perigosas de um rio, a pequena capelinha com suas velas acesas, o cachorro. Um filme de realizador de muitos ofícios. Fargoni assina a direção, produção, roteiro e fotografia. Chama sua proposta de trabalho de “Cinema Instantâneo”.

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