Cine Ceará – “Fortaleza Hotel” une a dor de viúva coreana aos sonhos de camareira cearense

Por Maria do Rosário Caetano

A  soma de talentos vindos de vários pontos do Brasil — e da Coreia do Sul — resultou em “Fortaleza Hotel”, segundo e vigoroso drama social dirigido pelo cearense Armando Praça, filme inaugural da competição ibero-americana da trigésima-primeira edição do Cine Ceará.

Da Coreia do Sul vem a coprotagonista do filme, Shin (Lee Young-Lan), mulher de meia-idade, cujo marido chegou ao Ceará, convocado para trabalhar em siderúrgica construída com capitais brasileiros e coreanos. A morte do companheiro a transforma em hóspede temporária do Fortaleza Hotel, onde ocupará o mesmo quarto deixado vago pelo marido. Shin deverá ocupar-se da cremação e traslado dos restos mortais do cônjuge  a Seul.

No Fortaleza Hotel, trabalha a camareira Pilar (interpretada com vigor pela atriz pernambucana Clébia Sousa), que tenta dominar um inglês básico para ingressar, como “turista”, na Irlanda, onde vive uma amiga. Na verdade, claro, ela quer trabalhar como “clandestina” e treina para enfrentar a burocracia anti-imigratória europeia.

Para registrar o encontro dessas duas mulheres, Armando Praça, vencedor do Cine Ceará 2019 com o potente “Greta” — uma história de amor entre um velho homossexual (Marco Nannini) e um jovem marginal (Démick Lopes) —  fez questão de reunir talentos dos vários Brasis. Cearenses, claro, como os roteiristas Isadora Rodrigues e Pedro Candido, o produtor Maurício Macedo e os atores Larissa Góes e, mais uma vez, Démick Lopes; pernambucanos (além da atriz-protagonista, a montadora Karem Harley e os coprodutores José Vieira Jr e Nara Aragão); mineiros (a trupe sonora do Grivo) e paranaenses (a excelente diretora de fotografia Heloisa Passos).

O que se viu na tela do Cineteatro São Luiz —  depois das homenagens à atriz Marta Aurélia e ao diretor Halder Gomes — reafirma os acertos do Porto Iracema, projeto de formação audiovisual que já se aproxima de sua primeira década. Um projeto que vem preparando, dentro de espírito cosmopolita, profissionais vocacionados à criação de filmes que olhem as particularidades cearenses, mas com inserção no mundo.

Os mentores do projeto — os cineastas Karim Aïnouz, cearense-argelino-berlinense, Marcelo Gomes, pernambucano, e Sérgio Machado, baiano — inseminaram em seus discípulos imenso interesse por projetos universais, mas, ao mesmo tempo, enraizados na realidade brasileira. “Fortaleza Hotel” é isso. Assim como “ O Marinheiro das Montanhas”, de Karim, convidado da noite de encerramento do Cine Ceará. Filmes cearenses e cosmopolitas.

A Coreia do Sul não entra na trama de “Fortaleza Hotel” por oportunismo. Armando Praça e seus roteiristas não estão correndo atrás de migalhas de sucesso que, por acaso, sobrem de “Parasita” e das febres do K-Pop, “Round 6” e assemelhados. A personagem vinda do Oriente está no roteiro, porque a Coreia entrou na corrente sanguínea do estado nordestino. O Governo do Ceará estabeleceu sólidos negócios  com a Coreia do Sul, trouxe muitos engenheiros e técnicos ao estabelecer, entre Pecém e Fortaleza, uma numerosa comunidade coreana. “Semelhante” — brincou Armando Praça — “à do Bom Retiro paulistano”.

O filme já tem data de estreia — 21 de janeiro de 2022, com distribuição da Vitrine. O público poderá conferir o talento de suas duas protagonistas — a experiente coreana Lee Young-Lan e a jovem pernambucana Clébia Sousa, que passou pelos elencos de “O Som ao Redor”, “Tatuagem”, “Bacurau” e “Divino Amor“,  todos do Recife, mas só passados onze anos, conseguiu um papel de protagonista. E no Ceará. Não em seu estado natal, contou ela, no debate do filme, depois de lembrar que nasceu em Limoeiro, terra do ator Irandhir Santos. E que estudou Artes Cênicas na Universidade Federal de Pernambucano, aprendeu inglês instrumental para dar vida a Pilar (todos os diálogos da camareira cearense com a viúva coreana se dão nesse idioma, que a brasileira tenta dominar para imigrar rumo à Dublin).

Num dos momentos mais surpreendentes do filme, descobrimos que Pilar tem uma filha adolescente. Mas como, se ela é uma mulher de menos de trinta anos. Pilar explicará à espantada viúva coreana que engravidou aos 13 anos. Por isso, ela e a filha parecem irmãs. A adolescente namora um jovem envolvido com o submundo das periferias fortalezenses.

Crimes, revezes e solidariedade marcarão as reviravoltas da narrativa, conduzida de forma lacunar por Armando Praça, que confirma o talento revelado em “Greta”. Em cena de grande beleza visual (e sonora), a brasileira e a coreana, ambas bêbadas, confraternizam-se, pela música e pela dança. Pilar tenta ensinar Shin a se movimentar nos passos de forró embalado com letra-chiclete do Mastruz com Leite (aquele que Chico Cesar bem define como forró de plástico) e a coreana liga o celular e apresenta à camareira um “tango coreano”, cultivado em milonga frequentada, em Seul, por plateia de aficionados orientais. Uma maravilha fertilizada pelas trocas culturais.

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