China quer roubar mercado de Hollywood com as “armas do inimigo”

Por Maria do Rosário Caetano

Até que a Quinta Geração – liderada por Chen Kaige (“Terra Amarela”), Zhang Yimou (“Sorgo Vermelho”) e pela pele de porcelana de Gong Li – chegasse aos festivais internacionais e ao circuito de arte mundial, o cinema do grande país asiático vivia escondido atrás das Muralhas da China.

Da Revolução de 1949 até meados da década de 1980, a China filmava histórias edificantes e balés revolucionários, aqueles que mostravam militantes comunistas marchando e louvando os feitos de maotsetunguianos.

Hong Kong, “um enclave colonial britânico”, seguia realizando filmes que somavam a cultura milenar chinesa ao cinema de gênero e influência ocidental. Até explodir com filmes de ação que eletrizaram o mundo e puseram abaixo a lei da gravidade. Influenciaram Hollywood e, até, Zhang Yimou, que iria aderir aos operísticos filmes de lutadores-bailarinos que voavam.

O tempo passou, Hong Kong foi devolvida à China (em 1997) e o país dos herdeiros de Mao Tsé-Tung promoveu curiosa metamorfose: adotou o capitalismo de Estado, sem abandonar o socialismo como via política. A prova mais eloquente da nova China, essa que soma capitalismo-e-comunismo, é o épico “A Batalha do Lago Changjin”, um dos maiores blockbusters da história do cinema. Em tempos de pandemia, e mesmo sem conseguir espaço no mercado ocidental, o filme só perdeu nas bilheterias planetárias para “Homem Aranha: sem Volta para Casa”.

Para dirigir essa empolgante narrativa chinesa de quase três horas, foram convocados seis diretores. Um deles é Chen Kaige. Sim, o chinês da Quinta Geração, que dirigiu o seminal “Terra Amarela” (1985), fotografado por Zhang Yimou, e depois vencedor da Palma de Ouro com “Adeus minha Concubina” (1993). Cineasta que ganhou retrospectiva de todos os seus filmes na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e tornou-se cult entre os cinéfilos, aqueles que detestavam (detestam) blockbusters e filmes de super-heróis.

A Kaige se agregaram Tsui Hark, Dante Lam, Ju-Chum Park, Haiqiang Ning e Jianxin Huang. Parece equipe de criação de samba-enredo de agremiação carnavalesca brasileira. Mas o resultado fílmico é um prodígio. Hark, que nasceu no Vietnã, tornou-se famoso como diretor ou roteirista de filmes de ação com Jet Li e Jean-Claude Van Damme. Dante Lam, da Escola de Hong Kong, somou sucessos e mais sucessos adrenalinados. Assim como o quarteto que ajudou a realizar o épico bélico-patriótico que serve, agora, de cartão postal-comercial à nova China.

Com “A Batalha do Lago Changjin”, o país de Gong Li quer mostrar que sabe fazer filmes para milhões de espectadores. Produções capazes de render bilhões de dólares e chegar a outros mercados (por enquanto, só na banda oriental, aliás, bastante populosa).

No Boletim “Filme B”, o editor (e cineasta) Paulo Sérgio Almeida constatou que “o cinema vive crise no Ocidente e explode no Oriente”. E argumentou, depois de lembrar que não podemos mais nos ater só aos dados de Hollywood e suas ramificações: “isso fazia sentido porque o mercado americano era o maior do mundo, enquanto os outros eram extensões de um cinema hegemônico (o dos EUA) com grande qualidade mercadológica, que se acreditava ser insuperável”. Mas, “eis que os tempos mudaram, e não foi apenas com as crises recentes da pandemia. Sim, Hollywood está sofrendo perdas, desde o blockbuster até o filme independente, em suas coproduções internacionais, que levaram baque muito grande nestes últimos anos”.

O editor do “Filme B” destaca duas cinematografias que há muito se preparavam para se impor no mercado mundial: a da Coreia do Sul e a da China. O país asiático que venceu, em 2020, o Oscar de melhor filme com “Parasita”, produção falada em coreano, com atores, diretor e técnicos 100% coreanos, já detém mais de 50% de seu mercado interno e assiste à expansão de seus filmes e séries pelos mercados mundiais.

O outro caso é a China. Paulo Sérgio Almeida destaca “o espírito nacionalista chinês” e, também, a imensa malha de exibição espalhada pelo território do grande país asiático (mais de 82 mil salas). No Brasil, dispomos de menos de 4 mil; nos EUA são 40 mil.

O governo socialista da China deixou de lado os filmes de propaganda ideológica em sentido estrito (o dos balés e narrativas didático-pedagógicas de outrora) e resolveu produzir filmes com os mesmos ingredientes de Hollywood. Ou seja, grandes aventuras, com heróis populares, que amam suas famílias, seu país, seu povo, que têm humor, que enchem os olhos de lágrimas frente à monumentalidade da Muralha da China, enfim, que são gente como a gente.

O que é “A Batalha do Lago de Changjin” – disponível no YouTube, com legendas em português – senão um épico de guerra patriótico, semelhante a tantos outros realizados pela poderosa indústria cinematográfica dos EUA?

A narrativa começa em 1950, portanto, no ano seguinte ao triunfo da Revolução comandada por Mao Tsé-Tung. Um militar (Wu Qianli, interpretado pelo astro Jing Wu), que lutou com o exército maoísta regressa ao lar, e entrega aos pais já idosos, e ao irmão mais novo, o inquieto Wu Wanli (Jackson Yee), um pote com as cinzas de outro irmão, morto em combate. Avisa que os tempos agora são de paz e que, finalmente, irá construir uma casa para os pais, que vivem precariamente numa velha embarcação.

Mal reiniciou a convivência familiar e dá-se nova e inesperada convocação – Wu Qianli deve integrar-se, por sua experiência, ao Exército de Voluntários da China, que lutará ao lado da Coreia comunista, “invadida pelos EUA”. No comando das forças norte-americanas, equipadas com aviões de última geração, está o poderoso e respeitado General MacCarthur.

Em duas partes, veremos, primeiro, o Exército de Voluntários se deslocando, em imenso comboio, rumo ao palco da guerra, a Coreia, sob intensos bombardeios dos aviões dos EUA. Tudo filmado sem nada a dever ao cinema norte-americano. Na segunda parte, ainda mais adrenalinada – alucinante até – como os filmes de ação de Hollywood inseminados por Hong Kong, assistiremos à batalha na represa que abarca o imenso lago Chongjin, durante inverno rigoroso (30 graus abaixo de zero).

Para fascinar os milhões de espectadores chineses que pagaram ingresso para ver o filme, construiu-se roteiro que soma ingredientes irresistíveis: um irmão jovem que deseja lutar na Guerra da Coreia ao lado irmão mais velho. Este exige que o mano fique com os pais e estude. Por isso parte sozinho. O mais novo foge e dá um jeito de se agregar às tropas de voluntários, embora nada entenda do riscado. Tem, por sorte, ótima pontaria.

Os soldados e oficiais mais experientes irão fazer troça do rapaz (alívio cômico em filme marcado por combates incessantes). As cenas de ação têm ritmo vertiginoso, montagem acelerada, bombardeios e explosões merecem figurar em qualquer antologia do gênero.

Mao Tsé-Tung aparecerá, mas muito pouco. Dará as coordenadas aos que comandarão o Exército de Voluntários, impregnará os soldados de coragem para que defendam os irmãos coreanos e as fronteiras da própria China. Afinal, garante, depois de derrotar os coreanos, é a própria China que os EUA querem subjugar.

E o que diferencia “A Batalha do Lago Changjin” de um blockbuster norte-americano?

A origem dos que lutam e triunfam. Se nos filmes estadunidenses os orientais são fanáticos sem rosto, hordas sem individualidade, aqui eles são seres humanos, que amam seu território e são capazes de enfrentar aviões/armas-de-última-geração/comida enlatada-e-farta. E o fazem com armas inferiores e batatas congeladas (Antônio Callado, que cobriu a Guerra do Vietnã, gostava de lembrar que os vietnamitas enfrentaram os EUA à base de arroz integral, único alimento de que dispunham).

A relação entre os irmãos e o destaque dado a alguns soldados e oficiais do imenso Exército que saiu da China, de trem, até chegar ao congelado Lago Chongjin, dão ao filme um rosto que a nova China quer mostrar ao mundo. Uma China pragmática, disposta a lutar com as armas do “inimigo”.

Por fim, vale anotar: 1. Não há mulheres, nem história de amor em “A Batalha do Lago Chongjin” (fora a mãe dos irmãos-soldados e uma linda adolescente, que joga um cachecol vermelho para o irmão mais novo, quando ele embarca no comboio, rumo ao palco da guerra, só veremos homens, milhares de homens), 2. A China não está brincando em serviço. Sua indústria de cinema vem estimulando países vizinhos a produzir seus próprios filmes. O tocante “A Felicidade das Pequenas Coisas”, de Pawo Choyning Dorji, um dos 15 semifinalistas ao Oscar de melhor produção internacional, é fruto de parceria do Butão com o país de Jia Zhang-Ke.

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