“Lobby de Batom” mostra a luta das mulheres por seus direitos

Por Maria do Rosário Caetano

As imagens já estão diluídas pelo tempo. Mas quem viveu os efervescentes anos de preparação da Constituinte de 1988 guarda na lembrança a ruidosa presença do pequeno exército de Brancaleone, ou melhor, de Ruth Escobar, invadindo o Congresso Nacional com suas pautas em defesa dos Direitos da Mulher.

Junto com a ruidosa atriz luso-brasileira lutavam Benedita da Silva, Jacqueline Pitanguy, Anna Maria Rattes, Comba Marques Porto, Hildete Pereira de Melo, Leila Linhares Barsted, Marina Colasanti e Schuma Schumaher.

Ruth e suas companheiras faziam tanto barulho, que, ao aproximarem-se, os parlamentares ironizavam: lá vem o “Lobby do Batom”. No começo, elas não gostaram. Depois, entenderam que o termo dava voz a segmento importantíssimo de nossa história, calado por séculos. O batom, que coloria bocas, realçava o órgão responsável pela emissão da palavra. Do verbo. Adotaram a expressão com gosto e aumentaram seu poder de pressão.

O exército do “trator” Ruth Escobar adotou, também, símbolo ousado, resultante da união dos dedos polegar e indicador das duas mãos, em forma de losango, simbolizando a vagina feminina. E tiveram a felicidade de ver o deputado Ulysses Guimarães (1916-1992), o “Sr. Constituinte” (e “Sr. Diretas”), fazer o gesto vaginal no dia da programação da nova Constituição brasileira.

Esta história é relembrada no documentário “Lobby de Batom”, comandado por uma verdadeira brigada feminina: Gabriela Gastal, na direção, Christiana Albuquerque, no roteiro, Renata Fraga, na produção, Vera de Paula, na consultoria, e a craque Gabriela Bervian no som. O documentário, de enxutos 60 minutos, estreia nessa segunda-feira, 28 de março, no canal GNT (à meia-noite), dentro dos festejos do Mês da Mulher. Depois, a partir dessa quinta-feira, 31 de março, “Lobby de Batom” estará disponível no streaming (pela Globoplay).

O documentário de Gabriela Gastal é um típico “cabeças falantes”, mas que ganha vivacidade, por não ser meramente declaratório. Ninguém verá corpos solenes, em frente a bibliotecas mumificadas, relembrando o passado. As protagonistas do período (menos Ruth Escobar, que morreu em 2017) relembram com alegria, vivacidade, discurso claro e sintético os anos em que lutaram para colocar os Direitos da Mulher na Constituição brasileira.

Na falta da atriz-empresária-feminista-barraqueira Ruth Escobar, Benedita da Silva, a única negra do grupo, assume o protagonismo. Com sua fala doce e aliciante, ela relembra a efervescência daquele final de década de 1980, quando um grupo de não mais que 20 parlamentares do sexo feminino (num colegiado de mais de 400 homens, em maioria brancos, oriundos de oligarquias rurais e empresariais) teve que lutar até para ter “banheiro próprio”.

Os parlamentares-machos estavam tão acostumados com sua secular hegemonia – “se julgavam donos do mundo por terem pau”, lembrará a escritora Marina Colasanti – que se espantaram quando a delegação de parlamentares exigiu banheiro para elas. “Como?”, indagaram os varões assinalados. “Não poderiam usar os mesmos sanitários dos senhores parlamentares?”

A representação feminina continua terrivelmente desproporcional no Parlamento brasileiro. Mas as lembranças da socióloga Jacqueline Pitanguy (que substituiu Ruth Escobar no imprescindível CNDM – Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, “na prática, uma espécie de Ministério da Mulher”), da pedagoga Schuma, da economista Hildete, da escritora Colasanti, das advogadas Comba, Rattes e Leila Linhares Barsted, somadas à simpatia de Bené, festejam o triunfo de 1988. Naquele momento, a vitória feminina foi empolgante. E não podia ser diferente.

O grupo lembra que chegava chegando. O “Lobby de Batom” entrava no Congresso e abria qualquer porta, qualquer gabinete. Com a eleição de Tancredo, tinham garantida a criação do CNDM. Com a morte do presidente antes da posse, o vice José Sarney assumiu. Ruth Escobar e sua trupe foram cobrar. “Crie nosso Conselho, promessa assumida por Tancredo”. E ameaçou: “Se não criar, nós vamos acampar aqui na porta do Planalto e o senhor não vai ter mais sossego”.

O CNDM ganhou existência legal e orçamento. Ruth o presidiu por sete ou oito meses, até desincompatibilizar-se para concorrer ao cargo de deputada estadual por São Paulo. Jacqueline a substituiu e o grupo continuou seu combate. Conseguiu aprovar 85% de suas reivindicações, entre elas, a mais importante: o Artigo 5º da Constituição – “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. Acabava assim, a tutela do marido sobre a esposa (pelo Código Civil de 1916, a mulher ao contrair matrimônio, passava a ser subordinada ao marido; até sua herança seria gerida pelo ‘chefe do casamento’).

O documentário de Gabriela Gastal conta com rico acervo de imagens, o que imprime dinamismo à narrativa. Arquivos da área de jornalismo da Rede Globo somam-se, inclusive, a trechos de filmes de uma das mais importantes cineastas-feministas do país, a carioca Eunice Gutman.

Num momento emocionante de “Lobby de Batom”, Benedita da Silva, nascida e criada no Chapéu Mangueira, favela da capital fluminense, relembra sua chegada ao Parlamento na condição de deputada constituinte. Lá encontrou Márcia Kubitscheck (1943-2000), filha de JK, também eleita. E foi longo contando à colega: “Márcia, minha mãe foi lavadeira de roupas de seus pais, Juscelino e Dona Sara”. A filha do presidente bossa-nova encontrava-se com a filha da lavadeira para juntas lutarem pelos Direitos da Mulher na Constituinte.

Hildete Pereira de Melo, em momento de rara lucidez, passa seu recado às mulheres contemporâneas: “Aprendam(os) que a política é boca no trombone. Aprendam(os)!”. E Jacqueline Pitanguy se espelha no passado para lembrar paradigma que serve ao Brasil de 2022, ano eleitoral: “Precisávamos ficar atentas em quem votar, ter em mente de que iríamos ter que atuar fortemente a partir da eleição do Congresso Constituinte para poder retirar a mulher brasileira da situação de cidadã de segunda categoria, que éramos até então.”

 

Lobby de Batom
Direção: Gabriela Gastal
Roteiro: Christiana Albuquerque
Produção: Renata Fraga
Montagem: Gabi Paschoal
Som: Gabriela Bervian
Fotografia: Breno Cunha
Trilha: Igor Araújo
Pesquisa de Arquivo: Remier Lion
Consultoria: Vera de Paula e Fred Coelho
Videografismo: Vento Estúdio + Animático
Produção: Mapa Filmes
Duração: 60 minutos
Estreia: 28 de março, no canal GNT, à meia-noite
Disponível no Globoplay a partir de 31 de março

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