“Soldadera” de “Como Água para Chocolate” cavalgou nua em Gramado

Por Maria do Rosário Caetano

A Revista de CINEMA prossegue, nessa semana, com série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais. Brasileiros ou internacionais.

A segunda dessas lembranças tem, mais uma vez, o Festival de Gramado – que festejará seus 50 anos em agosto (de 12 a 20), na Serra Gaúcha – como cenário. O fato relembrado tem origem mexicana. Afinal, aconteceu em agosto de 1993, quando a vigésima-primeira edição do mais badalado festival brasileiro reuniu 14 filmes latinos, em maioria hispano-americanos, sem esquecer Espanha, Itália e França. Do México veio “Como Água para Chocolate”, de Alfonso Arau, baseado em best-seller de Laura Esquivel.

Antes de descrevermos o fato que motiva esse rememoramento, vale registrar tema noticioso, destacado dias atrás, pelo jornal O Globo: o Governo AMLO (Andrés Manuel Lopes Obrador) acaba de designar Laura Esquivel como embaixadora do México no Brasil. Embaixadora, não embaixatriz. Ou seja, ela será a representante oficial do país da América do Norte junto ao Governo brasileiro. Em entrevista ao jornal carioca, a escritora mostrou imenso entusiamo com a nova missão e garantiu que, tão logo o Parlamento aprove seu nome, chegará a Brasília (o que deve acontecer em maio). Prometeu estreitar ainda mais as relações comerciais e culturais entre os dois países.

O romance “Como Água para Chocolate” foi lançado em 1989. Filiado ao Realismo Mágico, o livro fisgou leitores seduzindo-os com sua história de amor e dons culinários de sua protagonista, Tita (no filme, a bela Lumi Cavazos). Ela prepara 12 receitas tradicionais mexicanas, uma para cada mês do ano. Vertido para 35 idiomas, o livro vendeu quase 5 milhões de exemplares.

Tita é vista de seu nascimento, num rancho no norte do México, até sua juventude, quando apaixona-se por Pedro (Marco Leonardi). Cabe a ela zelar pela mãe, a dominadora Elena (Regina Torné). No pano de fundo, a Revolução Mexicana comandada por Pancho Villa e Emiliano Zapata. Uma irmã de Tita, a bela e fogosa Gertrudis (Claudette Maillé), torna-se uma “soldadera”. Ou seja, mulher de soldado dos exércitos zapatistas (ou villistas), que o acompanhava em suas batalhas revolucionárias.

Coube à atriz Claudette Maillé, de tradicional família artística mexicana, representar o filme em Gramado. Jovem, simpática e muito despachada, ela atendeu à imprensa com grande entusiamo. Eu cobria o festival para o Jornal de Brasília. Formava dupla comigo o fotógrafo Sebastião Paccó, profissional dos mais ousados, entusiasmadíssimo com sua primeira cobertura de Gramado.

Ele saiu pela cidade para produzir fotos especiais para enriquecer nossa cobertura. Fotos que ele revelava, com produtos químicos e improviso, numa banheira, no quarto do hotel. E transmitia por complexos mecanismos (nada a ver com as facilidades digitais de hoje). Quando Paccó me mostrou a foto de Claudette Maillé, objetei: “a foto está linda, mas ela está de perfil, beijando um gari numa rua de Gramado. Como nosso leitor não viu o filme, nem a conhece, fica complicado. Se fosse Cahtherine Deneuve, tudo bem”. Conversamos e contei a ele que, no filme, Claudette interpretava uma “soldadera”, que cavalgava nua, montada num cavalo. Ele riu e se dispôs a uma nova rodada de fotos. Fui escrever meus (caudalosos) textos.

Qual não fui minha surpresa! Horas depois, Paccó chegava ao meu hotel com a foto de Claudette Maillé nua (Gramado, em agosto, é gelada!), montada num belo cavalo castanho, num parque de Gramado. “Criatura, como você conseguiu isso?!”, indaguei estupefata. “Você é louco?!”

Ele me explicou. Somou forças com Lulude (Maria de Lourdes Melo), a fotógrafa do Estadão, e com a prata-da-casa, a repórter fotográfica do jornal O Pioneiro, da Serra Gaúcha (de quem não guardei o nome). Juntos, os três propuseram à atriz mexicana levá-la ao haras de Gramado, para uma foto na qual ela evocasse a cena de “Como Água para chocolate”. Claudette Maillé, filha de museológa e irmã de cineasta, topou na hora. Sem nenhum moralismo ou constrangimento. As fotos ficaram lindas e desprovidas de sensacionalismo. E tinham tudo a ver com o filme.

O Jornal de Brasília deu imenso destaque à foto. O Pioneiro também. O vetusto Estadão, em respeito a seus tradicionais leitores, preferiu ilustrar a matéria de seu enviado especial, Luiz Zanin Oricchio, com outras imagens. Mas a Agência Estado vendeu a foto da atriz nua para jornais de todo os cantos do território nacional.

Quem comandava a curadoria do Festival de Gramado, naquele tempo, era o cineasta Walter Hugo Khouri (1929-2003). Com a produção nacional em frangalhos, por causa do desmonte da Era Collor, o evento gaúcho internacionalizou-se. Só um filme brasileiro competiu com a produção latina: “Capitalismo Selvagem”, de André Klotzel. Na hora da premiação, a Argentina triunfou com “Um Lugar no Mundo”, de Adolfo Aristarain, e com o melhor diretor – Eliseo Subiela, e melhor ator, Dario Grandinetti, ambos por “O Lado Escuro do Coração”.

A nudez de Claudette Maillé não foi castigada. Ela saiu de Gramado com um Kikito de melhor atriz coadjuvante. Já o Kikito de melhor atriz coube à protagonista, sua “irmã” Tita (Lumi Cavazos). O Prêmio Especial do Júri ficou com “Belle Époque – Sedução”, do espanhol Fernando Trueba, que no ano seguinte conquistaria o Oscar de melhor filme estrangeiro. E o veterano Fernando Fernán Gómez, mix de Procópio Ferreira com Paulo Autran castelhano, ganhou o Kikito de melhor ator coadjuvante.

Um dos assuntos mais momentosos do festival, em sua parte brasileira, foi o “desentendimento” entre o produtor de “Forever”, Aníbal Massaíni, e o diretor Walter Hugo Khouri. Massaíni queria concorrer aos Kikitos, pois tinha um filme “de padrão internacional” para mostrar. Com Ben Gazzara, a ninfeta Ana Paula Arósio e a “felliniana” Eva Grimaldi no elenco. Khouri, como responsável pela curadoria, estava certíssimo em não colocar o próprio filme na competição. O comando de Gramado torcia por sessão hors concours. Produtor e diretor chegaram a consenso: o filme não iria à Serra Gaúcha. Intrigados, jornalistas foram investigar se La Grimaldi tinha, mesmo, pisado num set de Fellini. Tinha sim. Ela fizera aparição de quase um minuto em “Entrevista”, o híbrido do mestre de Rímini.

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