O Traidor

Por Maria do Rosário Caetano

Um dos mais premiados filmes da história recente do cinema italiano – “O Traidor”, de Marco Bellochio – estreia no Brasil, nessa quinta-feira, 14 de abril, com atraso de mais de dois anos, provocado pela pandemia. Coprodução ítalo-brasileira, respaldada por capitais germânicos e franceses, o filme recebeu sete troféus Nastro D’Argento, um dos prêmios mais festejados da Itália, e disputou, ano passado, 18 categorias do David di Donatello, o Oscar pensinsular. Triunfou em seis, sendo quatro as mais cobiçadas – melhor filme, diretor, ator protagonista (Pierfrancesco Favino, o Tommaso Buscetta) e roteiro original.

A consagração veio também da mídia. Depois de disputar a Palma de Ouro em Cannes, publicações exigentes como Positif, Libération e Bande à Part lhe atribuíram cinco estrelas. A irascível Cahiers du Cinéma, quatro, mesmo número de L’Humanité, jornal comunista, La Croix, publicação católica, do respeitadíssimo Le Monde e do descolado em Les Inrock.

Bellocchio, aos 82 anos, vive fase de imensa criatividade. Depois de “Vincere” (2008), joia rara que a todos encantou, vem realizando filmes – incluindo o documentário autobiográfico “Marx Pode Esperar”, forte concorrente ao Donatello no próximo dia três de maio – cada vez mais poderosos. E, também, capazes de dialogar com público ansioso por um cinema que signifique mais, muito mais, que mera diversão, pois reflexivo. Nada catártico.

“O Traidor” é uma história que tem muito a ver com o Brasil, pois seu protagonista, o “arrependido” Tommaso Buscetta (1928-2000), radicou-se no Rio de Janeiro, fincando raízes na sociedade carioca e desposando Maria Cristina de Almeida Guimarães, moça bem-situada na pirâmide social brasileira. Para este papel, Bellocchio escalou a bela e elegante Maria Fernanda Candido. Apaixonada por Tommasino, o “Masino” (apelido familiar), a carioca tudo fará para viver em companhia do homem que amava o bolero “História de un Amor” (do panamenho Carlos Almarán, 1955). Esse sucesso estrondoso do cancioneiro latino-americano foi gravado por centenas de vozes, do brasileiro Altemar Dutra ao espanhol Julio Iglesias. No filme, Bellocchio utilizará a canção em momentos de lazer e de violência brutal. Neste caso, em sequência de tortura, na qual Maria Cristina é pendurada num helicóptero, sobre o oceano, pela Polícia, para que “abra o bico”.

Interpretado por Pierfrancesco Favino, astro do cinema italiano contemporâneo, Buscetta (lê-se ‘buscêta’ e não ‘buskêta’, invenção linguística da TV brasileira!) será visto em praticamente todas as cenas do drama bellocchiano, que chega a lembrar, em alguns momentos, “O Poderoso Chefão”. Mas sem o tom mítico e operístico da obra que consagrou Francis Ford Coppola, 50 anos atrás.

Em “O Traidor”, tudo começa na Sicília. Em 1980, numa cerimônia religiosa, devotos festejam Santa Rosalia. Sim, são devotos fervorosos, mas também contraventores e apegados a código de honra baseado no apadrinhamento (proteção) dos que cometem crimes para determinado grupo (os parlemitanos em luta contra os corleoneses). Os primeiros atuam na cidade de Palermo, capital siciliana. Os outros, em Corleone, comuna próxima. O mundo vive a euforia da heroína. A disputa de território gera verdadeiro banho de sangue.

Palermo transforma-se na capital da droga derivada da papoula. Buscetta, o “Masino”, é um soldado bem situado na hierarquia da Cosa Nostra, mas sofre ao ver um dos filhos mergulhado no consumo de heroína. A guerra generalizada se amplifica entre os chefes mafiosos pelo controle do tráfico. Buscetta é obrigado a fugir, escondendo-se no Brasil. Na Itália, os acertos de contas continuam acontecendo. O filme de Bellocchio registra, com números que se multiplicam com a velocidade de um taxímetro, a quantidade de cadáveres (80, 100, 150, 170, 198…)

De longe (no Brasil tropical, na Praia de Grumari e em outras localidades), Buscetta fica sabendo da morte de seus filhos mais velhos e irmãos, assassinados em Palermo. E tem certeza de que será o próximo. Está com os dias contados. Preso pela polícia brasileira, será extraditado para a Itália. A caminho da prisão, ainda em solo brasileiro, tem um ataque epilético. No avião, também, terá transtornos de saúde. Mas será entregue à Justiça peninsular.

Já em mãos de autoridades italianas, o prisioneiro tomará decisão que mudará, pelo menos parcialmente, os rumos da máfia italiana. Ele vai contar o que sabe ao Juiz Giovanni Falcone. Portanto, transformar-se-á em um delator. Quebrará o voto de fidelidade eterna feito à Cosa Nostra.

“O Traidor” ocupará, então, parte substantiva de sua narrativa nas barras de um Tribunal. Ninguém espere, de Bellocchio e de seus atores (em maioria sicilianos, menos Pierfrancesco Favino), a saga de um mafioso arrependido, transformado em herói. Ninguém será visto como mocinho ou bandido, mas sim como seres complexos, que em momentos-limite, buscam a sobrevivência. Com parte da família (o ramo siciliano) destruída na guerra da Cosa Nostra, Buschetta quer salvar sua esposa brasileira e filhos pequenos (já abrigados na Flórida, nos EUA).

O julgamento será visto como um verdadeiro teatro, no qual cada um dos réus veste sua própria máscara para interpretar o papel que lhe convém. E, com a contenção que lhe é característica, Bellocchio desenhará um retrato doloroso da Itália do final do século XX (1980 a 1999), que transformara-se em ponto geográfico crucial no tráfico de drogas. Em abril de 2000, Buscetta morria na Flórida. Sua imagem real será vista, feliz, cantando “História de un Amor”, sua música preferida. Pablo Escobar também tinha seu bolero de estimação.

Duas sequências do filme merecem atenção especial. Uma, porque encantou os italianos e tem muito a ver com a história peninsular. Em determinado momento, Buscetta vai a uma Alfaiataria de ponta encomendar terno de corte alinhado. Lá está o poderoso político Giulio Andreotti (1919-2013), “Il Divo”, tirando suas medidas. Mesmo vestido com o terno mais bem cortado, o siciliano de origem camponesa jamais terá a elegância melíflua de “Il Divo”, nascido na sofisticada Roma, a cidade eterna.

Em outro momento, Maria Cristina (Maria Fernanda Candido, hoje radicada em Paris e dedicada a carreira internacional), espera o marido em sua casa-esconderijo. Ela está na cama. Ele pergunta, em conversa telefônica de longa distância, como ela está vestida. Com voz sedutora de mulher apaixonada, a cônjuge responde: eu não estou vestida (e acaricia o corpo nu).

Bellochio, diretor de “O Diabo no Corpo”, soube, como poucos, ocupar-se da sexualidade. Em “O Traidor”, a violência e a traição, porém, estão em primeiro plano. Mas o amor de uma brasileira por um mafioso italiano ganhou registro, embora breve, ainda assim, marcante.

 

O Traidor
Itália, Brasil, Alemanha, França, 135 minutos, 2019
Direção: Marco Bellocchio
Elenco: Pierfrancesco Favino, Maria Fernanda Candido, Fabricio Ferracane, Luigi de Cascio, Fausto Russo, Giovanni Calcagno, Alessio Praticò, Nunzia Lo Presti, Goffredo Bruno, Federica Butera, Bebo Storti, Nicola Siri, Luciano Quirino, Jonas Bloch, Rainer Cadete
Roteiro: Marco Bellocchio, Ludovica Rampoldi, Valia Santella e Francesco Piccolo
Trilha sonora: Nicola Piovanni
Produtora brasileira: Gullane
Distribuição: Pandora Filmes

 

FILMOGRAFIA
Marco Bellocchio (Bobbio, Itália, 9 de novembro de 1939)

2021 – “Marx Pode Esperar” – documentário
2019 – “O Traidor” – ficção
2016 – “Belos Sonhos”
2015 – “Sangue do meu Sangue”
2012 – “A Bela que Dorme”
2010 – “Irmãs Jamais”
2008 – “Vincere” – ficção
2006 – “Sorelle”
2006 – “Il Regista di Matrimoni”
2003 – “Bom Dia, Noite”
2002 – “A Hora da Religião”
1999 – “La Balia” (Intrusa)
1996 – “Il Príncipe de Hamburg”
1994 – “O Sonho da Borboleta”
1991 – “ O Processo do Desejo”
1988 – “Sedução Diabólica”
1986 – “O Diabo no Corpo”
1984 – “Enrico IV”
1982 – “Olhos na Boca”
1979 – “Vacanze in Val Trebbia”
1978 – “Salto nel Vuoto”
1976 – “Marcha Triunfal”
1974 – “Loucos para Libertar”
1972 – “O Monstro da Primeira Página”
1971 – “Em Nome do Pai”
1969 – “Discutiamo, Discutiamo” (filme em episódios, dirigiu “Amore e Rabbia)
1967 – A China é Vizinha
1965 – De Punhos Cerrados

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