França se despede de Trintignant, tímida estrela que brilhou em mais de 100 filmes

Por Maria do Rosário Caetano

Ele era tímido, baixinho e não tinha a beleza de Alain Delon, nem de Jean Sorel, nem o tipo charmoso-gângster de Belmondo. Para agravar, era sulista e tinha sotaque. E, o pior de tudo, apresentava tendências suicidas. Mesmo assim, o rapaz que viveu até os vinte anos na pequena Port Saint Esprit, chegou a Paris e venceu. Venceu em seu país natal e na Itália. Seu nome, Jean-Louis Trintignant.

Pois o astro de “Um Homem… Uma Mulher”, que triunfou em Cannes e no Oscar, mesmo com tendências suicidas, viveu longos e produtivos 91 anos. O protagonista de filmes memoráveis como “O Conformista” (Bertolucci), “A Fraternidade é Vermelha” (Kieslowski) e “Amor” (Haneke) morreu em Paris, nesta sexta-feira, 17 de junho. Morreu consagrado como um dos maiores astros do cinema europeu.

Se a origem geográfica (Piolenc, no sul da França, tão distante da metrópole parisiense), a baixa estatura e, principalmente, a timidez, não anunciavam o futuro brilhante que ele teria, o talento e a sorte vieram socorrê-lo. Os professores temiam que ele nem conseguisse submeter-se a testes de elenco, tamanha era sua timidez. Mas o aspirante a ator, nascido em 11 de dezembro de 1930, na região de Vaucluse, estreou no teatro parisiense e, em 1955, portanto aos 24 anos, conseguia papel secundário num filme de Christian-Jacques (“Se Todos os Homens do Mundo…”).

Trintignant parecia estar no lugar certo, na hora certa. Tanto que, um ano depois do filme de Jacques, ele apareceria no elenco do filme que mudou a história do cinema francês – “E Deus Criou a Mulher”, de Roger Vadim. No centro da tela, magnetizando olhares de todo o planeta, a explosiva beleza de Brigitte Bardot com aquelas curvas que dali em diante seriam sinônimo de erotismo. O cinema europeu acabava com qualquer puritanismo de códigos Hayes, amarras impostas ao cinema anglo-saxão. Dizem que a blondie BB tentou (fora das telas) seduzir o rapaz. Tiveram um breve affair. Do filme, restou o papel que caberia ao ator, como uma luva: o jovem tímido e terno.

Em 1962, Trintignant dividiria o protagonismo de “Il Sorpasso” (“Aquele que Sabe Viver”), deliciosa comédia amarga de Dino Risi, com Vittorio Gassman. No filme, que teve Ettore Scola entre seus roteiristas, o romano era o conquistador descolado (um fanfarrão) que levava um jovem dos mais inexperientes para aventuras amorosas e loucas “ultrapassagens” por estradas italianas. Dizem que Dennis Hopper inspirou-se nesse road movie europeu para criar “Sem Destino” (Easy Rider, 1969).

A sorte do baixinho francês estava lançada. E Cannes seria a vitrine de seu maior sucesso comercial: “Um Homem… Uma Mulher”, de Claude Lelouch, que conquistou a Palma de Ouro no festival de 1966. O filme e sua trilha sonora transformaram-se em febre planetária. Uma das composições de Francis Lay (aquela do “sabadá-badá”) e criações bossanovistas, difundidas por Pierre Barouh, cantor presente no elenco, ganharam destaque nas rádios de todos os quadrantes.

Os protagonistas de Lelouch, dois viúvos, o piloto de automóvel (Trintignant) e a roteirista de cinema (Anouk Aimée), transformaram-se em astros dos mais badalados e requisitados do cinema europeu. Duas sequências, estreladas ambas pelos mesmos e longevos Trintignant e Aimée e dirigidas por Lelouch (“Um Homem… Uma Mulher – Vinte Anos Depois” e “Os Melhores Anos de Uma Vida”), foram realizadas. Não obtiveram o sucesso da versão original.

No final dos anos 1960, dois grandes diretores da Nouvelle Vague, Claude Chabrol e Eric Rohmer, escalariam Trintignant para filmes obrigatórios – “As Corças” (do primeiro) e “Minha Noite com Ela” (Ma Nuit chez Maude). Em 1970, ele seria o protagonista absoluto do complexo “O Conformista”, de Bertolucci, baseado em romance de Alberto Moravia.

Para muitos, Bertolucci deu a Trintignant seu maior papel. Outros lembram que ele voltaria a brilhar, aos 81 anos, em “Amor”, filme do austríaco Michael Haneke, em que dividiu a trama com a grande Emmanuelle Riva (de “Hiroshima, mon Amour”). O show dos dois atores rendeu ao filme a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro.

O pequeno e tímido Jean-Louis Trintignant tinha muita história para contar. Além de ter-se perdido com irmãos numa caverna, durante a Segunda Guerra Mundial (era adolescente), viu dois filmes protagonizados por ele somarem a Palma de Ouro e o Oscar, ganhou o prêmio máximo em Berlim e Cannes, e o Cesar, a láurea máxima de seu país, pelo denso “Amor”. E quem pôde anotar em sua caderneta lista tão notável de diretores – Vadim, Risi, Chabrol, Rohmer, Bertolucci, Costa-Gavras, Zurlini, Scola, Truffaut, Kieslowski, Blier e Haneke?

Sem perfil de conquistador, Trintignant teria, após relacionamento com a atriz Stéphane Audran (depois esposa de Claude Chabrol), um sólido matrimônio com a atriz Nadine Trintignant, mãe de seus três filhos. Se sua vida de ator somava um sucesso atrás do outro, na vida familiar enfrentou dois grandes traumas: durante as filmagens de “O Conformista”, de Bertolucci, perdeu uma filha, ainda bebê, que afogou-se com leite. E, na década passada, em 2003, sua filha, a atriz Marie Trintignant, de 41 anos, foi espancada até a morte pelo companheiro Bertrand Cantat. O ator ficou em estado de choque.

Sua última companheira, Marianne Hoepfner, fôra praticante de uma das maiores, junto com o cinema, paixões de Trintignant: piloto de automóvel. Os dois, como o protagonista de “Um Homem… Uma Mulher”, amavam a velocidade das pistas de corrida.

 

PRINCIPAIS FILMES DE JEAN-LOUIS TRINTIGNANT

1956 – “E Deus Criou a Mulher”, Roger Vadi
1962 – “Aquele que Sabe Viver” (Il Sorpasso), de Dino Risi
1966 – Um Homem… Uma Mulher”, 1986 – “Um Homem… Uma Mulher – Vinte Anos Depois” – 2019 – “Os Melhores Anos de Uma Vida” – os três de Claude Lelouch
1968 – “O Homem que Mente”, de Alain Robbe-Grillet (ganha Urso de Prata de melhor ator em Berlim)
1968 – “As Corças” (Les Biches), de Claude Chabrol
1969 – “Minha Noite com Ela”, de Eric Rohmer
1969 – “Z”, de Constantin Costa-Gavras (ganha o prêmio de melhor ator em Cannes)
1976 – “O Deserto dos Tártaros”, de Valério Zurlini
1980 – “O Terraço”, de Ettore Scola
1983 – “De Repente, Num Domingo” (Vivement Dimanche), de François Truffaut
1986 – “A Mulher da minha Vida”, de Regis Wagnier
1989 – “Merci à la Vie!”, de Bertrand Blier
1994 – “A Fraternidade é Vermelha”, de Krzysztof Kieslowski
2012 – “Amor”, de Michael Haneke (Palma de Ouro e Oscar de filme internacional)

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