Realismo poético
Gólgota é o lugar do calvário, onde Cristo foi crucificado, e descrito nos quatro Evangelhos como o lugar da caveira. Este é o título que o cineasta francês Julien Duvivier deu à sua versão do Evangelho de São Matheus, que sai agora em DVD distribuído pela Coleção Cult Classic. Duvivier foi um dos grandes nomes do realismo poético francês nos anos 30, ao lado de Jean Renoir e Marcel Carné. “Gólgota”, de 1935, se insere no conjunto de suas preocupações com a temática religiosa, como antes já havia feito em seu “A vida milagrosa de Teresa Martin” (não disponível em DVD no Brasil), na época ainda do cinema mudo.
Cineasta extremamente prolífico, Duvivier, ao contrário de Renoir e Carné, não é tão conhecido do público brasileiro. Com o lançamento de “Gólgota”, temos a oportunidade de ver um cineasta que se tornou conhecido principalmente por seus “A bandeira” (1935) e “Camaradas” (1936). Distribuídos aqui de forma discreta, refletem o ambiente político francês no período entre guerras.
Nós nos acostumamos a ter como referência para a Paixão de Cristo a versão recente de Mel Gibson (2004), ou mesmo o “Jesus de Nazaré” (1977), de Franco Zeffirelli: ambas concebidas como espetáculo de acordo com o padrão das grandes produções hollywoodianas. A oportunidade que se abre com a vida de Cristo contada por Duvivier, com roteiro do padre Joseph Raymond, é a de ver que o cinema nos anos 30 na França foi capaz de realizar ao mesmo tempo um filme com grande orçamento e centrado na Sua imagem, na dos judeus e não no espetáculo masoquista do flagelo.
Visto hoje, “Gólgota” traz ao espectador muito das preocupações sociais e políticas e da visão de cinema da época: a França passava por momento econômico e político terrível, que culminará em 1940 com a ocupação nazista. O realismo poético reflete aquele momento; retratar a vida de Cristo e extrair como título o lugar onde se deu o calvário carrega um sentido alegórico que o próprio Duvivier não podia desconfiar.
Não se trata propriamente de um grande filme, quando se pensa no conjunto da obra de Duvivier, ou mesmo do que foi feito de melhor na França no período. Há algo um tanto gélido e impreciso na condução da narrativa, na apresentação dos personagens. A imagem de Cristo, de fato, em alguns momentos é congelada; com exceção de Judas Iscariotes, a face de seus discípulos é exibida num enquadramento oblíquo.
Mas esse é, justamente, o dado do filme que, observado com atenção, deixa o espectador atual inquieto. Duvivier acentua o contraste entre a placidez do rosto de Cristo e a ânsia e furor dos judeus para crucificá-lo. Jesus Cristo praticamente não se dirige aos discípulos, e diante de Pilatos ou Herodes é inexpressivo, mas boa parte do “Gólgota” de Duvivier se ocupa da exibição do escárnio e humilhação que Lhe são dirigidas pelos judeus.
Na década de 30, não se pode esquecer, o antissemitismo se espraia pela Europa. Esse é um dado que é preciso ter em vista a fim de entendermos certas motivações de fundo que levam Duvivier a conceber um filme obtuso em relação à mensagem do Evangelho e atento à condenação e ao julgamento do Messias. É como se, de modo subliminar, na mensagem do filme estivesse a própria situação da França.
Por Humberto Pereira da Silva