Do longa ao curta
O aquecimento da produção de cinema no Brasil vem abrindo muitas portas a novos diretores que pretendem se arriscar na direção de um longa-metragem. O desfio imposto ao cineasta iniciante para entrar no mercado de longa-metragem é grande, e demanda tempo e aprendizado. Dificilmente, um diretor começa a profissionalizar sua carreira dirigindo longas, o caminho mais usual é dirigir antes alguns curtas-metragens, que servirão para descobrir a sua linguagem, quanto para ganhar currículo para concorrer aos editais, que são muito seletivos. Além de que os caminhos para levantar recursos para um curta é bem diferente do que para um longa.
No longa-metragem, o trajeto é quase sempre árduo. Demanda muito trabalho na escrita do roteiro e no planejamento, e, em geral, muito mais dinheiro do que para o curta. O valor considerado de baixo orçamento está na casa dos R$ 1,3 milhão, sendo que o curta raramente passa dos R$ 100 mil. Captar essa verba, entre leis de incentivos, editais e investidores privados, é sempre trabalhoso, em especial se o cineasta não tiver um portfólio de prestígio para mostrar. Com as facilidades do digital e o barateamento do equipamento, mais acessíveis aos realizadores, tem sido mais comum para uma geração custear seus próprios filmes, caso de coletivos como o Alumbramento, a Cavídeo, entre outros.
“Se há coragem e disposição por parte de alguns, isso não pode se tornar regra nem parâmetro para que não existam esforços para viabilizar longas com financiamento de algum tipo. Todos nós temos contas a pagar, queremos sobreviver desse trabalho. Então, nesta chave, há sim esta dificuldade porque o curta acaba sendo bem mais econômico que o longa, e nele se concentram as produções sem financiamento. Há longas sem financiamentos, mas bem menos. E, assim, passar do curta para o longa tem sido sim difícil”, comenta Eduardo Kishimoto, que finaliza seu primeiro longa-metragem, “Cartografia do Prazer”.
“Quando concebemos um projeto como curta, média ou longa, estamos nos adequando à infelicidade das categorizações; é uma necessidade a que nos sujeitamos para viabilizar o filme. Algumas vezes a pessoa começa o projeto sem saber, e sem defini-lo, para só descobrir onde ele se ‘encaixa’ ao terminar a edição. Essa é uma das belezas que se preserva num projeto sem financiamento. De outra forma, estamos presos a essas definições prévias. Uma vez ‘enquadrado’, o projeto vai criar desafios próprios, não exatamente de seu formato, mas de sua narrativa”, complementa Kishimoto.
Produção alternativa aponta diversas saídas
Por outro lado, há diretores mais alternativos que buscam produzir seus filmes sem editais de longas, com orçamento até menor para um curta, mas contando com ajuda de muitos amigos. É o caso de André Novais Oliveira, que recentemente lançou em festivais sua estreia solo em longas, “Ela Volta na Quinta” (2014), um desses casos em que se desdobrou para fazer o longa com os poucos recursos financeiros que tinha, ainda que contasse com uma verba, e expandiu os horizontes do projeto original. Vencedor do edital do Filme em Minas para curta-metragem, o diretor mudou seu filme. “À medida que lia o roteiro do curta, percebi que faltava algo. Queria contar mais coisas, foi aí que percebi que seria um longa. O processo foi tranquilo por um lado e cansativo por outro. Já tinha feito assistência de direção em longas. Aí na questão de ritmo de filmagem foi legal”, conta Novais, que rodou o longa com R$ 87 mil.
Para Eduardo Kishimoto, a questão do formato varia também de circunstâncias outras, para além do desejo do realizador. “Quando montei uma primeira versão do ‘O Galante Rei da Boca’, com os diretores Alessandro Gamo e Luís Alberto Rocha Melo, nossa intenção era fazer um longa. Tentaram finalizar assim, mas depois de algumas tentativas, resolveram terminar como era possível. Muitas vezes se finaliza em outro formato, menor, de telefilme (como foi o caso do ‘Galante’), porque o projeto pode envelhecer, de tanto que temos que esperar sua seleção em algum edital – e os editais muitas vezes não acontecem anualmente como previsto pelas gestões, e quando acontecem são disputadíssimos. Ou pode acontecer de aos poucos o realizador entender que aquele ciclo de sua vida está terminando, melhor finalizar o filme como dá do que correr o risco de o filme já não trazer mais tantas questões para seus realizadores e para os outros – porque vamos mudando também nossos interesses, nossa visão de mundo, nossa vontade de trazer determinados assuntos. Este risco, de defasagem entre o que queremos dizer, em um determinado lugar e espaço, pode fazer os projetos caducarem, ou o entusiasmo arrefecer”, explica Kishimoto.
Prêmios em festivais ajudam a chegar ao longa
Já Daniel Ribeiro, que viu seu primeiro longa, “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” (2014), ganhar muitos prêmios, circular o mundo e ser selecionado como representante brasileiro a uma vaga ao Oscar de filme estrangeiro, e ainda levar 200 mil espectadores ao cinema no país, planejou muito sua estreia em longas. A origem do filme é o curta “Eu Não Quero Voltar Sozinho” (2010), em que se aproveitou do formato para experimentar os personagens, a história, a condução da narrativa, o elenco e a equipe técnica. “Depois que realizamos o curta e ele foi bem recebido nos festivais e na internet, senti que seria possível fazer o longa. O objetivo de fazer o longa existia desde quando pensei o curta, mas, com a boa recepção do ‘Eu Não Quero Voltar Sozinho’, além da carreira do meu primeiro curta, ‘Café com Leite’, senti que um longa era o passo seguinte”, comenta Ribeiro, que passou o ano viajando com o longa para promovê-lo pelo mundo.
Para o cineasta, o complicado passou a ser não tanto o fazer o longa e sim superar as expectativas dos fãs do curta. “Depois que o curta foi muito assistido na internet, muita gente queria uma continuação e sempre soube que não era uma continuação que queria fazer. Mas isso me deixou um pouco inseguro durante todo o processo, com medo de que estaria contando a mesma história, mesmo sabendo que tinha me dedicado bastante a tentar criar uma história que mantivesse a alma do curta, mas que fosse um filme diferente. Agora, que o filme foi exibido e os espectadores que haviam assistido o curta também gostaram do longa, fico aliviado”, conta.
Os primeiros passos no curta-metragem
Tanto Daniel Ribeiro quanto André Novais Oliveira e Eduardo Kishimoto tiveram uma carreira de sucesso dentro do curta-metragem, o que pode ter ajudado em suas estreias em longa-metragem.
Ribeiro, formado na ECA/USP, fez “Café com Leite” (2007) com edital da Petrobras, com R$ 80 mil reais, e “Eu Não Quero Voltar Sozinho”, com edital do MinC, no valor de R$ 100 mil. Com o primeiro filme, levou o Urso de Cristal, no Festival de Berlim, entre outros, e com o segundo ganhou prêmios diversos de melhor filme, incluindo o de Paulínia, além de ter sido visto por mais de 3 milhões de pessoas no YouTube – o que o cineasta credita como principal fator para ter impulsionado suas possibilidades de estreia no longa.
Para “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, Daniel Ribeiro conseguiu captar R$ 2,7 milhões, em diversas fontes, como Prefeitura e Governo do Estado de São Paulo, Eletrobras, BNDES e Fundo Setorial do Audiovisual. O filme acompanha Leo, um garoto cego que tem seu despertar sexual e amoroso com seu novo colega de classe e amigo, Gabriel. Com um plot adolescente e com um roteiro bem estruturado, o longa ganhou o Teddy e o prêmio FIPRESCI de melhor filme em Berlim. “A repercussão internacional foi impressionante e surpreendente. A gente nunca imaginou que chegaríamos tão longe. Ter um filme pequeno, um filme de estreia, que fala de um personagem tão específico (um adolescente cego e gay), alcançando um público no mundo inteiro e dialogando com culturas muito diferentes da nossa é muito gratificante. O que isso vai influenciar na minha carreira e nos próximos filmes ainda estou descobrindo. Algumas portas estão se abrindo, mas ainda é cedo pra saber o que tem do outro lado dessas portas”, conta Ribeiro.
André Novais Oliveira faz parte da produtora mineira coletiva Filmes de Plástico. Seus curtas “Fantasmas” (2010), exibido em Uppsala e em Santa Maria da Feira, entre outros, e “Pouco Mais de um Mês” (2013), ganhador de uma menção especial na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, feitos sem dinheiro, ajudaram a sedimentar seu nome e seu estilo. “Ela Volta na Quinta” foi o primeiro filme de Novais a ganhar um edital – desde então, conseguiu um edital de curtas de baixo orçamento da Fundação Clóvis Salgado, com “Quintal”, e um de longa no Filme em Minas, com “Temporada”.
“Ela Volta na Quinta”, feito com R$ 87 mil, ganho em edital de curtas, acompanha uma crise matrimonial que se reflete na família inteira. O longa segue o mesmo estilo de “Pouco Mais de um Mês”, calcado em planos longos e estáticos, interpretado pelos próprios familiares do diretor, realizado de maneira coletiva, e versando sobre o cotidiano. “A equipe foi bem reduzida e todos ganharam cachê de curta. Seria muito bom pagar todo mundo com um cachê de longa. Quem cuidou da administração muito bem foi o Thiago Macêdo Correia, grande produtor executivo que está produzindo grande parte dos filmes mineiros atuais”, comenta Novais.
Eduardo Kishimoto, também formado na ECA/USP, prepara seu “Cartografia do Prazer” com a verba do edital de telefilmes do governo do Estado, no valor de R$ 600 mil. O projeto, originalmente um longa, teve seu roteiro reduzido para TV e seu orçamento bastante enxugado, seguindo uma tendência em São Paulo. A versão para TV já foi entregue. A versão para cinema já está montada e aguarda levantar a verba restante para finalização. O filme acompanha um ex-militante que se tornou clandestino durante a ditadura e, muitos anos depois, recebe uma ligação telefônica de uma antiga namorada pedindo para ele encontrar o filho que tiveram, cuja existência ele desconhecia.
Na carreira de curtas, Kishimoto filmou com e sem dinheiro de edital. “A Psicose de Valter” (2007), exibido em Gramado, Cine Ceará e Tiradentes, entre outros, foi feito com o Programa Petrobras Cultural. “O Cozinheiro Negro” (2010) contou com financiamento do edital Curta Criança. Em 2010, sem nenhum financiamento, fez ainda “As Verdades Temporárias”. “Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada” (2011), premiado em Goiânia e exibido em Tiradentes, Curta Cinema e Santa Maria da Feira, entre outros, foi feito com edital da prefeitura.
O cineasta conta que, quando fez “As Verdades Temporárias”, sem dinheiro, mas com uma equipe de cinema, não soube dimensionar de forma econômica e ágil. “Se fossemos desta nova geração de realizadores, o projeto teria sido feito de forma bem mais tranquila e satisfatória por uma equipe de cinco pessoas, com todas as adaptações/restrições típicas de produções deste porte, mas por outro lado com todas as vantagens disso também. Ali tínhamos 30 pessoas”, comenta. “Tentamos trabalhar de forma reduzida no ‘Cartografia do Prazer’, mas uma vez convidados os integrantes da equipe central, todos preferiram que montássemos uma equipe maior, mais típica de cinema. Quando se tem pouco dinheiro e muita equipe/equipamento, o planejamento é essencial, e aí todos exigem que o roteiro não tenha surpresas, que se filme exatamente o que está no papel.”
Os desafios maiores
Para além do financiamento e da estruturação de um filme, realizar curtas e longas envolve outros desafios. O primeiro está na própria concepção do roteiro, na escritura do projeto, e no processo de direção. “Escrever um curta é mais fácil porque dá pra ter uma melhor noção geral da história. Você consegue ler o roteiro quatro vezes no mesmo dia e ir fazendo anotações e alterações. O longa exige um processo diferente, porque a visão geral da história é mais difícil de ter quando você está fazendo alterações pontuais. Por outro lado, na hora de dirigir, o curta é mais intenso, você tem pouco tempo e pouco dinheiro pra fazer tudo. Se alguma coisa dá errado, você tem menos material pra resolver na edição. Além disso, quando a equipe já está ficando mais entrosada, a filmagem acaba. Já no longa, apesar do tempo também ser corrido, é um processo que permite mais tempo pra pensar e trabalhar com a equipe; quando alguma diária dá problema, você tem um pouco mais de tempo pra tentar compensar ou repensar soluções”, aponta Daniel Ribeiro.
Para André Novais Oliveira, o roteiro não é tão diferente, mas a direção sim. “No caso do roteiro, foi muito parecido o processo, pois o roteiro do ‘Ela Volta na Quinta’ tinha só 36 páginas. Claro que é bem diferente contar uma história maior, mas o modo de escrever foi parecido e meio intuitivo. Foi muito diferente dirigir um longa, que tem muitas cenas, muitos planos. Meus últimos curtas não tinham muitos planos e cenas. O ‘Fantasmas’, por exemplo, só tinha uma cena que foi filmada em plano sequência. Então, esse processo de decupar foi um desafio muito grande. Como a maioria das cenas seriam rodadas na casa dos meus pais, pude pensar bem no que queria de enquadramento bem antes das filmagens. Na filmagem, senti um cansaço muito grande. Foram 15 dias e dois dias de folga. Até são poucos dias em comparação a muitos longas. Mas senti o cansaço, toda equipe, na verdade. Ainda mais por ser uma equipe bem reduzida e tendo que acumular algumas funções”, comenta.
Outro aspecto, esse um problema enorme para quem entra no mundo dos longas, é o circuito de exibição. Os curtas são escoados, hoje, basicamente em festivais do Brasil e do mundo, podendo ser comercializados em televisão, internet e outros serviços multiplataformas, mas sem muito retorno financeiro. Os longas, por sua vez, além desse circuito, que envolve mais dinheiro, compete por um espaço no circuito comercial. Daniel Ribeiro, por exemplo, se policiou para ter uma classificação indicativa mais baixa. “A nossa única preocupação era com a classificação indicativa, pois queríamos que o filme fosse visto por adolescentes, então tomamos cuidado com algumas cenas que poderiam deixar o filme com classificação de 16 ou 18 anos”, conta. “Não queremos circular apenas em festivais. A grande batalha atualmente é fazer o mercado exibidor dar espaço para a produção nacional de baixo orçamento”, conclui Kishimoto, que vê na exibição o grande desafio do curta para o longa.
Por Gabriel Carneiro
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