Os festivais como vitrine do curta-metragem
Qual o destino de um curta-metragem? Fora do circuito comercial, este formato de filme, que é o introdutor de novos cineastas, tem um espaço garantido nos festivais de cinema, onde a premiação pode garantir uma virada de carreira ao seu realizador. Os festivais, portanto, são os únicos meios de promoção do filme e de seu diretor, mesmo tendo a internet como um grande aliado para chegar ao seu público.
Um exemplo do poder da internet foi o “Eu Não Quero Voltar Sozinho” (2010), de Daniel Ribeiro, que está na casa dos quatro milhões de visualizações. Mas o filme de Daniel talvez, porém, não teria a mesma repercussão se não tivesse rodado importantes festivais brasileiros sempre com muito sucesso. “O festival é aonde o filme é mais bem compartilhado. Mesmo tendo um visionamento expressivo na internet, não é numa sala de cinema com muitas pessoas vendo o filme ao mesmo tempo. Essa oportunidade de o filme ser visto podendo ser comentado é muito privilegiada. Festival tem duas mãos. Uma é para mostrar a produção do momento. A outra é para os realizadores assistirem a outras coisas, saberem o que está sendo produzido. Trazemos curadores e todos os realizadores do Brasil e do mundo. Essa é uma característica de troca muito importante. Uma oportunidade de assistir seu filme num contexto de vários outros filmes com o público”, comenta Zita Carvalhosa, diretora do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, mais conhecido como Curta Kinoforum, que teve uma ocupação de público de 67% em 2014, nas diversas sessões, em oito cinemas, ao longo de uma semana.
A internet como canal para se chegar ao público
O coordenador de programação do Curta Cinema, que ocorre no Rio de Janeiro, Paulo Roberto Jr. complementa: “No que diz respeito à divulgação e popularização dos filmes, a internet é a maior janela para o curta-metragem atualmente. Ultrapassou em muito esta função dos festivais. Ocorre que o festival é uma janela mais qualitativa. Possui um lugar fundamental na promoção da atividade do cinema propriamente dito. O festival é essencial em aspectos mercadológicos, no lançamento de tendências, no incentivo ao intercâmbio de culturas e de ideias. Possui uma vitalidade que a internet é incapaz de reproduzir, pois lida com o material humano que se congrega fisicamente, pessoalmente, no espaço onde ocorre a reprodução das obras”.
Para Zita, o festival acaba sendo também uma forma de mediação da produção com o público. “Nessa renovação do cinema brasileiro, o curta tem um papel bem importante, mesmo tendo gente indo direto ao longa. Tem gente de longa que volta ao curta para experimentar ideias. O festival é o lugar onde você vê isso. E há quem vá aos festivais em busca de talentos, como a Globo. Essa função também é muito importante”, afirma a produtora cultural, que relaciona o boom de curtas e de festivais à política cultural da Petrobras.
Porém, mesmo havendo uma infinidade de mostras e festivais pelo Brasil – hoje há mais de 200 – e pelo mundo, com os mais diversos recortes, há uma forte concorrência pelo espaço de exibição. Anualmente, o Brasil produz uma média de 800 curtas-metragens. Nos festivais com mais filmes exibidos, esse número raramente ultrapassa a marca dos 150. Muita coisa fica de fora.
Critérios de seleção
O que faz um filme entrar num festival varia de curador para curador e de festival para festival. Nem todos os filmes que são selecionados no no festival de Brasília ou de Gramado, por exemplo, terão uma longa carreira em festivais, ainda que isso certamente possa ajudá-lo. O que parece ser unanimidade é que, para um filme entrar num festival, ele tem que ser bom, ser apreciado pela maioria da comissão. “Acredito que algumas qualidades sejam ponto comum na exigência de qualquer programador ou curador: a originalidade, certa virtuose nos aspectos técnicos, o bom uso dos recursos disponíveis, se um filme cumpre aquilo que propõe etc.”, aponta Paulo Roberto Jr.
À frente, desde 2007, da curadoria da Mostra de Cinema de Tiradentes, uma das preferidas dos cineastas independentes e coletivos, o crítico de cinema e professor Cléber Eduardo não coloca pressuposto anterior aos filmes, ou seja, não há um programa de cinema, um norte estético ou temático a ser procurado nos inscritos.
“Não valorizamos ou rejeitamos de antemão os filmes menos ou mais narrativos, menos ou mais centrados em certos temas e estilos. Partimos dos filmes. Por isso, nenhum curta tem que ter nada. Tem apenas que sensibilizar, provocar e se mostrar singular aos curadores, que, por sinal, tendem a discordar em muitas coisas, inclusive com visões de cinema diferentes entre si. Nós apenas temos como um recorte crítico a personalidade fílmica, certo nível de singularidade e de deslocamento dos hábitos dos curtas, mas sempre pensando os filmes dentro de um conjunto de filmes, o filme dentro da programação. Há curtas que, esteticamente, são menos expressivos, mas eles se enquadram em segmentos direcionados, como a Mostra Juvenil, a Mostra Infantil ou a Mostra Regional”, explica Cléber.
No Curta Kinoforum, sete pessoas de diferentes perfis (críticos, realizadores etc.) participam de um comitê de seleção de curtas brasileiros. Cada filme é assistido por, no mínimo, três pessoas, que faz comentários e dá um parecer (sim, não ou talvez – nos últimos anos, foi usado também o talvez sim e o talvez não). Se ele tem um sim, está na discussão. Em 2014, dos 570 inscritos, 150 entraram. “Quando você faz uma seleção num festival, nem sempre consegue colocar tudo de bom pra dentro. É um ponto de vista subjetivo do comitê de seleção. É o retrato de um momento. Os curtas bons imediatamente pulam fora. Um bom filme é um filme evidente. E aí tem os filmes com qualidade, boa proposta, boa técnica. O festival é uma vitrine mais fácil para conferir um bloco de produções. O curta também deve cumprir bem o que ele se propõe. Se é para ser inovador na linguagem, tem que ser realmente inovador; se é para um cartão de visitas, tem que ter um nível de excelência técnica e narrativa”, aponta Zita Carvalhosa, que também produz filmes por meio de sua Cinematográfica Superfilmes.
No Curta Cinema, o processo de seleção varia a cada ano, buscando sempre aperfeiçoar o método. “O processo sempre varia porque, a cada ano, mudam também os avaliadores. Há alguns anos, acreditava que um número significativo de avaliadores (por volta de 12) poderia dar um caráter mais democrático e objetivo à seleção final. Estava enganado. Muita gente costuma acreditar nisso também: que um festival com poucos selecionadores ou sem comitês de seleção, no qual a decisão reside nas mãos de poucos curadores, corre o risco de ser muito exclusivista ou personalista em seu conteúdo. Mas, por estranho que possa parecer, ocorre justamente o contrário. Na minha experiência com o Curta Cinema, as maiores injustiças, personalismos e idiossincrasias ocorreram justamente quando o maior número de selecionadores agregavam ao debate. O poder de decisão de poucos é sempre mais qualitativo, é um caso típico de ‘menos é mais’”, reflete Paulo Roberto Jr.
As tendências e os gêneros que ganham mais espaço
Se o festival é o instantâneo do cenário de curtas-metragens no Brasil naquele ano, é comum perceber tendências temáticas e estéticas. Muitas vezes, o espaço para determinados tipos de filmes incentivam certas tendências, porque há espaço para ele – caso de filmes experimentais e de horror, que têm tido cada vez mais visibilidade.
“Todo ano percebemos uma tendência. Há assuntos mais recorrentes, maneiras de fazer mais na berlinda. Como o curta tem certa agilidade, faz um retrato muito contemporâneo. Por exemplo, os efeitos da globalização apareceram muito antes nos curtas do que nos longas. As manifestações de junho de 2013 apareceram num curtinha, nem que fosse de oficina, já na mostra em agosto. No ano seguinte, havia vários. No longa, isso demora a aparecer. Os assuntos em pauta despertam simpatia dos selecionadores, claro”, afirma Zita Carvalhosa.
“É curioso como a cada ano renova-se certo ‘espírito da época’. Só para falar em uma questão de gênero: na minha opinião, o ano de 2013 foi fabuloso para os documentários, o mesmo não ocorreu no ano passado. Existem muitas outras matizes e tendências que aparecem, somem e reaparecem. Isso vai se tornando mais evidente nos momentos finais da seleção, isto é, as novidades. Tem também as obviedades. Não existe nada mais irritante do que um filme que repete maneirismos de cinco anos atrás e tenta apresentar isso como estilo. Pior ainda quando se trata de uma série deles. Aqui posso voltar àquele assunto dos critérios. Se um filme não faz mais do que reafirmar e repetir modelos já exauridos, então, o filme é ruim. Mesmo que seja um primor de realização técnica em todos os sentidos. Filme maneirista é filme ruim e ponto final. Às vezes um filme se destrói por conta de conceitos muito simples. Um exemplo que gosto de usar é a quantidade absurda de filmes onde vemos palhaços vertendo lágrimas. Muita gente ainda aposta que tal artifício possa ter algo de profundamente poético. No entanto, não passa de uma bobagem ruminada por centenas e centenas de filmes, ano após ano. Hoje em dia, não existe nada mais cretino do que filmar a tristeza do palhaço. As pessoas deveriam parar de fazer isso. Deixar a ideia ir embora, respirar. Deixar com que ele possa voltar no futuro transformado, livre de maneirismos e vícios”, provoca Paulo Roberto Jr.
Cléber Eduardo também vê muitos problemas em certas tendências por conta da repetição de artifícios. “Percebemos, nos anos recentes e principalmente na última edição, uma expansão do modelo de curta ensaio, em primeira pessoa ou não, a ponto de em muitos deles o ensaísmo ter se tornado cacoete e modismo. Também percebemos uma dificuldade de narrar nos curtas de maior investimento narrativo, por questões de roteiro e por questões estilísticas, com um destaque neste sentido para os curtas universitários narrativos. De modo amplo, porém, o curta está muito livre, apontando em várias direções. Sentimos falta de curtas com humor, mas isso é uma falta também nos longas e, aparentemente, os novos realizadores são bem humorados na vida, mas sérios em suas expressões. Talvez achem que a seriedade seja mais artística. E não é”, conclui.
Por Gabriel Carneiro