Varda por Agnès
Por Maria do Rosário Caetano
“Varda por Agnès”, o filme-testamento da cineasta belga, de origem greco-francesa, Arlette “Agnès” Varda, chega ao circuito brasileiro nesta quinta-feira, 9 de maio.
O documentário, uma declaração de amor ao cinema, à fotografia e a instalações plástico-conceituais, estreou em fevereiro último, no Festival de Berlim. Os alemães prestaram derradeiro tributo à cineasta, autora de obras da grandeza de “Os Catadores e a Catadora”, eleito um dos dez melhores documentários do mundo (segundo a revista Sigth & Sound e o BFI), de “L’ Ópera-Mouffe”, “Cleo de 5 às 7”, “Os Renegados” e “As Praias de Agnès”.
Homenagem e reconhecimento foram atos notáveis e costumeiros na trajetória da artista. Ela recebeu, em vida, uma Palma de Ouro honorária, um Oscar idem, um Urso Especial, o Prêmio Humanidades da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o Leão de Ouro, em Veneza, pelo ousado e duro “Os Renegados” etc, etc.
Varda foi reconhecida, também, como uma das grandes discípulas de Henri Cartier-Bresson (por suas fotos fixas de beleza singular), como precursora da Nouvelle Vague (e seu único nome feminino), pelo seminal “La Pointe Courte”, e como artista plástica (ou “visual”) por instalações que ergueu em importantes museus internacionais.
Para completar sua grandeza, tornou-se o nome mais famoso e influente do “cinema no feminino”. Neste momento, em que a quarta vaga do feminismo varre o mundo, ela deixa mulheres de todas as idades em estado de euforia e engajamento. Seus 50 curtas e longas-metragens são redescobertos a cada novo dia.
A mignon Agnès, que em certo momento pareceu viver à sombra do marido, o palmaré Jacques Demy (1931-1990), hoje desfruta o brilho de cem holofotes. Ela festejou, prazerosamente, os anos de glória do companheiro-cineasta, da Palma de Ouro por “Os Guarda-Chuvas do Amor” (1964), passando por “Duas Garotas Românticas” e fechando, com “Pele de Asno”, o ciclo da “princesa” Catherine Deneuve.
Demy, registre-se, foi tema de três filmes de Varda (“Jacquot de Nantes”, “Les Demoiselles Ont eu 25 Ans” e “L’Univers de Jacques Demy”). E ele tem presença a se notar em “As Praias de Agnes”. Ela o homenageou até em um filme brasileiro (“Janela da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho, 2001).
A cineasta foi viver com Jacques Demy nos EUA, mas nunca descuidou de sua própria carreira. Em solo norte-americano redescobriu um parente, o “Tio Yanco”, grego muito do divertido, registrou a militância febril dos “Panteras Negras”, documentou o movimento hippie e pobreza que poucos queriam ver. Regressou com ele a Paris, seguiu sua carreira e, em momento dos mais difíceis, cuidou amorosamente do companheiro, quando a Aids o levou, aos 59 anos.
Hoje, só uma realizadora, sua conterrânea Chantal Akerman (1950-2015), se aproxima da notoriedade e influência de Agnès Varda, mas em círculo menos amplo, o homoafetivo. Realizadoras lésbicas como Nara Normande (“Guaxuma”) e Juliana Antunes (“Baronesa”) a têm como fonte de permanente diálogo.
O alcance de Varda é bem mais abrangente. No jantar em homenagem aos nominados ao Oscar, em fevereiro de 2017, quando ela disputou a estatueta de melhor documentário (com “Visages, Villages”, parceria com JR), a saúde frágil a impediu de comparecer. JR levou, então, foto em tamanho natural da baixinha Varda, que tornou-se objeto de culto de estrelas da grandeza de Meryl Streep. No Brasil – Rio e São Paulo –, artistas, mulheres e homens, fizeram questão de posar com o totem fotográfico da diretora de “Varda por Agnès”. A inquieta e nonagenária Arlette virou patrimônio do cinema mundial.
Toda esta história, que soma fotografia-cinema-e-artes plástico-visuais, está na base de “Varda por Agnès”. Ao longo de quase duas horas, a realizadora ministra masterclass de raros poder persuasivo e encantamento. Não desgrudamos os olhos da tela. E aprendemos muito.
Vale destacar quatro lições de Varda em seu filme-testamento, marcado pela subjetividade (sem jamais abandonar o espírito coletivo, marca de sua vida). Lições ministradas sob três palavras-geradoras: “inspiração, criação, partilhamento”.
1. A diretora relembra sua iniciação no cinema – com o longa “La Pointe Courte”, filmado em 1954 –, sendo ela uma jovem inexperiente, que aprendia ao fazer (seria auxiliada, na montagem, pelo jovem Alain Resnais). O filme – nos ensina a cineasta-professora – somava duas partes, uma neorrealista, de base documental, protagonizada por pescadores de Pointe Courte. Outra, ficcional (construída com leveza narrativa, marca da futura Nouvelle Vague de Truffaut, Godard, Rivette, Rohmer e Chabrol). Com zelo de uma maestra da Femis, ela registra procedimento inovador: a câmara mostra um casal (os jovens atores Philippe Noiret e Silvia Monfort) que conversa em plano aproximado. E se afasta deles, mas o som de suas falas continua em primeiro plano, ou seja, sem alterar sua altura (apesar do distanciamento físico).
2. Varda parte, então, para “Cleo de 5 às 7”, sua ficção protagonizada pela belíssima “cantora” Corinne Marchand. A moça ouve de uma cartomante que a morte está em seu horizonte. Dali a duas horas, ela buscará o resultado de exame laboratorial que confirmará, ou não, diagnóstico de câncer. Qual Alice no País das Maravilhas, a moça perambula pelas ruas de Paris, povoadas de estranhos encantamentos. Num momento inesquecível, Varda nos mostra sua protagonista assistindo a um homem que literalmente engole sapos (vivos).
3. A nonagenária Varda senta-se, em lugar rural e ermo, ao lado de uma Sandrine Bonnaire madura (aos 50 anos). As duas conversam sem nenhuma verborragia. Só o essencial. Falam da “sem-teto” adolescente, suja, transgressora, des-documentada, que está no centro nevrálgico de “Os Renegados” (“Sans Toi Ni Loi”). A entrega da jovem “renegada” arrebatou Varda, Veneza e a todos que assistiram ao filme em 1985 (e em oportunidades vindouras).
4. A cineasta, que sempre fez filmes baratos, dentro de casa ou nas ruas em que morou (ou numa praia falsa que recriou numa via de Paris), relembra seu mais belo ensaio fílmico, “L’Ópera Mouffe” (brincadeira com “ópera bufa”). Na cena inaugural, o corpo de Varda, grávido de muitos meses. Depois a gente callejera, com seus rostos estranhos ou comuns, seus gestos e hábitos costumeiros, seus ares surrealistas. Um filme-poema.
Além destes longas e curtas, ficcionais ou documentais, Agnès Varda destacará as quatro mil imagens fixas que realizou em Cuba e transformou em filme de fotomontagem (“Saudação aos Cubanos”), as deliciosas e bem-humoradas (a cineasta não existiria sua alegria de viver) filmagens com Tio Yanko, morador de um barco muito colorido, o corpo feminino que ela tanto valorizou, os homens que desnudou, as aventuras malucas com Jane Birkin, seu maior fracasso (o amalucado “As 101 Noites de Simon Cinéma”, com Michel Piccoli e astros do porte de Mastroianni, Deneuve e De Niro). E, claro, de um filme que muito amou – “Documenteur” (Documentiroso) e não “Documentaire” (documentário).
Além do lírico e ousado “Le Bonheur” (“As Duas Faces da Felicidade”), tributo da cineasta aos pintores impressionistas e ao direito de amar a duas pessoas ao mesmo tempo, Varda dedicará, em seu filme-testamento, espaço sensível ao incontornável “Les Glaneurs et la Glaneuse” (“Os Catadores e a Catadora”, pois há que se evitar o título made in USA, “Os Catadores e Eu”) e ao belo e estradeiro “Visages, Villages”, de forte presença em telas e mundos.
Depois de ver o filme derradeiro de Agnès Varda, recomenda-se ao cinéfilo que empreenda busca no espaço digital por outros títulos da prolífica realizadora franco-greco-belga. E, na mesma internet, que se busque o brilhante (e consagrador) ensaio que Jean-Claude Bernardet dedicou a “Les Glaneurs e la Glaneuse”. O exibidor Jean-Thomas Bernardini promete lançar, nos próximos anos, em cópias restauradas, seis dos melhores filmes agnesianos.
Aos que amam Jean-Luc Godard e sabem da importância dele na vida de Varda, um filme se faz obrigatório (apesar da “grosseria” que ele impingiu à amiga e colega de percurso, quando não a recebeu, junto com JR, durante as filmagens de “Visages, Villages”). Ela – neste filme – chora, enxuga os olhos e, depois, conformada, diz que continuará a gostar do amigo suíço. Pois foi Agnès Varda, a precursora da Nouvelle Vague, que transformou o grande cineasta em ator do delicado e encantador “Les Fiancés du Pont Mac Donald” ou “Méfiez-Vous des Lunettes Noires”, 1961). Este curta, em que o autor de “Acossado” contracena com a linda Anna Karina, virou parte de “Cleo de 5 a 7”, lançado um ano depois.
A Nouvelle Vague, tão masculina, deve muito a Agnès Varda, diretora prolífica de meia centena de filmes e hoje uma inquestionável potência do cinema. Graças ao feminismo, sim, mas principalmente à inventividade e ousadia de sua obra.
Varda por Agnès
França, 116 minutos, 2019
Direção: Agnès Varda
Documentário que se inicia como uma masterclass para ampla plateia e soma diálogos e trechos de dezenas de filmes da diretora belga realizados entre 1954 e 2017
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