Atrás da Sombra
Por Maria do Rosário Caetano
Bukassa Kabengele, ator e músico de duas nacionalidades – congolesa e brasileira – só tornou-se protagonista aos 40 anos. E que protagonista. No dia 17 de julho, chega ao streaming o longa-metragem goiano “Atrás da Sombra”, de Thiago Camargo. O ator está praticamente em todas as cenas desse thriller com pitadas sobrenaturais.
No dia cinco de novembro, será a vez de Kabengele chegar aos cinemas com o drama social “Pacificado”, de alma carioca, embora comandado pelo norte-americano Paxton Winters. O ator interpreta um ex-chefe do tráfico que repensa sua existência, marcada pelo sangue, depois de longa temporada na prisão. Seu principal desafio consiste em estabelecer-se como dono de modesta pizzaria e, assim, abandonar a violência. Conseguirá?
“Atrás da Sombra” desenvolve sua narrativa em torno de Jorge, um detetive de Goiânia, que ganha a vida desvendando crimes que a polícia local, corporação da qual já fez parte, não tem interesse ou capacidade de resolver. Ao lado de atores como Elisa Lucinda, Zécarlos Machado, Érico Brás, Stepan Nercessian e importantes nomes do cinema do Centro-Oeste, Kabengele investirá todas as energias de “Jorge” na investigação de intrigante crime ambientado no mundo do agronegócio.
O detetive se vê em um beco sem saída quando, por causa de uma dívida, recebe séria ameaça. O que fazer? Sem alternativa, aceita trabalhar em novo, e misterioso, caso. A nova investigação o leva ao interior de Goiás. Jorge começará, então, a ter sonhos com uma assombração, à qual moradores atribuem os assassinatos por ele investigados. Mas o lado cético do investigador refuta essa ideia. Ele começará a suspeitar do envolvimento de políticos e, também, de moradores locais nesses misteriosos crimes.
O filme, inédito nos cinemas, foi rodado em Gameleiras de Goiás e Silvânia, que se fazem passar pela fictícia Golinópolis. “Uma cidade interiorana e calma” – explica o diretor –, “mas longe daquele interior estereotipado”. Em Golinópolis, “tecnologia e modernidade se fundem com a vida tranquila dos pequenos municípios”. “Atrás da Sombra” poderá ser visto na Net Now, Vivo Play, Oi Play, Looke e Canal Brasil Play. Ele é fruto de políticas públicas que investiram na regionalização da produção cinematográfica nacional.
O grande trunfo de “Atrás da Sombra” é seu protagonista. Bukassa Kabengele comprova, aos 43 anos, sua aptidão para interpretar personagens densos e ensimesmados. Há vinte anos, ele vem dedicando-se à música, ao cinema, à TV e ao teatro. Mas vinha exercendo funções coadjuvantes.
Como músico, ele participou da banda Skowa e a Máfia, dedicada ao soul e ao funk. E acompanhou cantoras como Marisa Monte e Elba Ramalho. Como ator, fez trabalhos em telenovelas (“Liberdade, Liberdade”, na Globo, e “Vidas Opostas”, na Record), filmes (“Carandiru”, “Sonhos Tropicais”) e seriados (“Cidade dos Homens”, “Carcereiros” e “Irmandade”).
A Revista de CINEMA conversou com Bukassa Kabengele sobre os filmes “Atrás da Sombra” e “Pacificado”, sobre racismo, sobre seu pai, o antropólogo Kabengele Munaga, professor da USP, e sobre seus novos projetos.
Revista de CINEMA – Antes de entrarmos em “Atrás da Sombra” e “Pacificado”, filmes que o têm como força motora, quero entender sua origem e saber por que fala português tão bem, sem que ninguém perceba que você é congolês e nasceu na Bélgica. Qual é, afinal, sua língua materna?
Bukassa Kabengele – Eu nasci em Bruxelas, onde meu pai concluía seus estudos em Antropologia. Regressamos ao Congo, onde permaneci até os dez anos. Viemos, então, para o Brasil. Meu pai casou-se com minha segunda mãe, a psicóloga Irene, que é brasileira. Por ter sido criado por intelectuais, eles cuidaram, com muito zelo, para que eu me dedicasse aos estudos da língua portuguesa. Cheguei aqui fluente no francês, língua do colonizador (o Congo, que se libertou em junho de 1960, foi colonizado pela Bélgica) e em suaíli. Conhecia e me expressava razoavelmente em tshiluba e lingala, este o idioma falado em Kinshasa, a capital congolesa. Ao chegar ao Brasil, vi que tinha que imergir no português, meu novo idioma. Foi o que fiz na escola, nos grupos de convivência e, sempre, com o apoio de minha segunda mãe, Irene. Como cheguei com apenas dez anos, tudo aconteceu naturalmente.
Vamos, pois, aos dois filmes cujos diretores o transformaram em protagonista: “Pacificado” e “Atrás da Sombra”. O jovem Thiago Camargo o convidou para protagonizar este filme depois de seu sucesso e prêmios com “Pacificado”?
Não. Quando ele me fez o convite, ele não conhecia o filme do Paxton. Ele e seu produtor, Daniel Calil, me viram no seriado “Carcereiros” (José Eduardo Belmonte, Rede Globo) e, me contariam depois, naquelas conversas entabuladas em intervalos das filmagens, que eu era o ator que ele queriam para interpretar o detetive Jorge. Me mandaram o roteiro, li e gostei muito. Jorge é um ex-policial que vira detetive para seguir fazendo o que gosta de fazer, que é investigar. Eu já tinha atuado em “Pacificado”, mas o filme só começaria sua carreira internacional e nacional no final de 2019, quando venceria o Festival de San Sebastián, na Espanha (além de melhor filme, melhor ator para Bukassa).
Depois do triunfo espanhol, o filme começaria carreira vitoriosa e você, até então, um coadjuvante, protagonizava um vencedor da Concha de Oro, em festival que o elegera como o melhor ator da competição internacional…
Pois é. Em seguida, nós participamos da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (melhor ficção brasileira pelo Júri Popular), do Festival do Rio e do Festival Aruanda, na Paraíba (melhor atriz para Débora Nascimento e melhor ator para Bukassa). E, para nossa agradável surpresa, o filme ganhou dois prêmios na Polônia, num festival respeitadíssimo pelos técnicos da imagem, o Camerimage. Lá, eles reúnem os maiores nomes da fotografia internacional para eleger os melhores entre os veteranos e os estreantes. Entre os veteranos, os vencedores foram os fotógrafos Lawrence Sher, de “Coringa”, que ganhou o Frog de Ouro, e o uruguaio-brasileiro Cesar Charlone, o Frog de Prata, com “Dois Papas”. “Pacificado” foi o eleito pela melhor fotografia de estreante (Laura Merians) e melhor diretor estreante (Paxton Winters). Ficamos muito orgulhosos.
Você é congolês e brasileiro. Seu país de origem, o ex-Congo Belga, tem uma trágica história colonial. O rei Leopoldo II (1835-1909) é tido como um dos racistas mais execráveis da História. Em busca de látex para a nascente indústria da bicicleta, ele, que governava a colônia como propriedade privada, estabeleceu cotas para cada seringueiro. Quem não atingisse o estabelecido, teria as mãos decepadas. Como você vê a campanha que vem derrubando estátuas de colonialistas e racistas, pelo mundo, incluindo as de Leopoldo da Bélgica?
Sou oriundo de um país independente, pós-sistema colonial, mas tenho clareza de que muito da herança colonial restou em nossa sociedade. E que há uma espécie de neocolonialismo entranhado nas mentalidades. O racismo e os símbolos racistas continuam a existir. Estão fundados na exclusão, em estigmas terríveis. A morte de George Floyd, em Minneapolis, nos EUA, serviu para nos mostrar que racismo e discriminação não são cicatrizes. Na verdade, são feridas abertas, causam dores profundas a milhões de seres humanos. No Brasil, 56% da população é composta de negros e pardos. E eles convivem com essas feridas abertas. Não defendo o apagamento da história. Que essas estátuas sejam colocadas em museus. Mas que suas permanências em espaços públicos sejam revistas. Colocadas em espaços nobres, elas reafirmam, de forma subliminar, no inconsciente das pessoas, que devem ser reverenciadas. Na verdade, tais estátuas seguem cultivando esses opressores.
Seu pai, o antropólogo Kabengele Munanga, é hoje um professor aposentado da USP, que assiste ao reconhecimento do filho?
Aposentado e respeitando a quarentena, pois já soma 80 anos. Mas parado, de jeito nenhum. Aceita com gosto participar de “lives”, trocar ideias, passar adiante o que sabe. Ele é muito dinâmico. Mesmo aposentado segue, na qualidade de professor titular, como orientador de teses e sempre disposto a abraçar novos desafios. Nos últimos seis anos, ele desenvolveu importante trabalho na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, sediada em Cachoeira.
Você tem novos convites para cinema ou TV? E sua carreira de músico, como vai?
Tenho convites para séries e para teatro. A pandemia interrompeu tudo. Mas quando tudo isso passar, voltaremos ao batente. E minha carreira solo como músico segue em frente. Sabe que durante 15 anos fui muito requisitado para gravar jingles? Depois de trabalhar na banda Skowa e a Máfia e enfrentar o desmonte da indústria do disco, fomos forçados a buscar novas saídas. Investi em carreira solo e me propus a resgatar minha africanidade, me dedicando à música afro-brasileira. Este resgate consiste em valorizar as matrizes africanas de nossa música e lutar contra os muitos estigmas que pesam sobre o continente africano. Gravei, com um produtor francês, o CD “Mutoto”, um projeto autoral, que foi lançado com boa aceitação na França. Novos shows virão.
Atrás da Sombra
Brasil, 85 minutos, 2020
Direção: Thiago Camargo
Produção: Pira Filmes e Mandra
Elenco: Bukassa Kabengele, Elisa Lucinda, Zécarlos Machado, Érico Brás, Stepan Nercessian, Bruna Brito, Allan Jacinto, Chico Santana
Distribuição: Elo Company em parceria com o Canal Brasil
Estreia: 17 de julho, nas plataformas digitais (Net Now, Vivo Play, Oi Play, Looke e Canal Brasil Play)
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