Memórias de Festivais
Por Maria do Rosário Caetano
A Revista de CINEMA prossegue, nessa semana, série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais brasileiros (ou internacionais).
A sétima dessas lembranças tem Gabriel García Márquez como personagem e o Rio de Janeiro como cenário. O ano era o de 1995, marcado pelos festejos do Centenário do Cinema. O invento que notabilizara os irmãos Louis e Auguste Lumière se multiplicava em mostras, festivais e celebrações.
O Centro Cultural Banco do Brasil, em sua bela sede no Centro histórico do Rio, ambientava o CineSul, festival de cinema latino-americano, comandado por Ângela José, biógrafa de Olney São Paulo (1936-1978), e mostras festejavam o cinema latino-americano. Uma delas tinha Maria Senna, fonte de inspiração do curta “Leucemia” (Noilton Nunes, 1978), como uma das curadoras. O estado fluminense, que vivera a segunda gestão do governador Leonel Brizola, tinha em Darcy Ribeiro uma espécie de embaixador cultural. Juntos, eles haviam fomentado, em Campos, projeto de curso de cinema semelhante ao da cubana Escuela Internacional de Cine, TV y Video de San Antonio de los Baños. Um projeto implantado por Gabriel García Márquez e Fernando Birri, escorado em duas instituições – a Fundação do Novo Cinema Latino-Americano e o Comitê de Cineastas da América Latina. Com o Governo de Cuba na retaguarda, claro.
Gabo, famoso como ficcionista e detentor de um Nobel de Literatura (1982), era louco por Cinema (e Jornalismo). Comandava, em Cuba, na aprazível Finca Santa Bárbara, a Fundação do Novo Cinema Latino-Americano, e em Cartagena de Índias, no Caribe colombiano, a Fundación del Nuevo Periodismo Latinoamericano. A turma brasileira moveu montanhas para trazê-lo ao Brasil naquele ano lumière. “Foi um custo”, relembra Maria Senna. Ele chegou em companhia da esposa, Mercedes Bacha, e já no Aeroporto começou “a dar trabalho”. Estava gripado e “muito indisposto, reclamava de tudo, não queria saber de repórteres, só dos amigos cineastas”.
Estávamos no Rio, um grupo grande de jornalistas, escalados para cobrir o festival, a mostra de filmes e seu convidado mais famoso: o colombiano Gabo, claro, autor do best-seller “Cem Anos de Solidão”. Que participaria de seminários e estrelaria debate mediado por Antonio Callado, tradutor de seu “O Amor nos Tempos do Cólera”. Filho de médico, o autor de “Quarup” decidira, em sua primorosa tradução, por “o Cólera”, no masculino, para deixar claro do que se tratava.
Além de Gabo, o festival reunia os mexicanos Guillermo del Toro (que mostrava seu primeiro longa, “Cronos” e mais tarde se consagraria com “Labirinto do Fauno” e com o oscarizado “A Forma da Água”) e Paul Leduc, do belo “Frida, Naturaleza Viva”, o chileno Miguel Littín (“El Chacal de Nahueltoro”), o cubano Pastor Vega (“Retrato de Tereza”) e o venezuelano Edmundo Aray (“Simón Bolivar, Ese Soy Yo”). Gabo até deu o ar da graça no debate “O Cinema Diante do Desafio de uma Nova Estética para o Próximo Século”, que reuniu brasileiros como Orlando Senna e Cosme Alves Netto e os convidados hispano-americanos. Na mediação, José Carlos Avellar.
Maria Senna lembra que, além da gripe, Gabo tinha dor de garganta e não gostou do hotel em que fora hospedado. E que, ao encontrar amigos como Cosme Alves Netto, dizia que o escondiam de todos os brasileiros de quem gostava. “Foi um custo explicar que não era verdade, que ele estava irritado com os problemas de saúde e que já chegara do Chile muito indisposto”.
Os jornalistas, porém, esperavam Gabo para uma coletiva de imprensa no começo da tarde. Portanto, horas antes daquele aguardado debate, que deveria uni-lo a Callado. A procura pelo encontro era tamanha, que o CCBB montara telão para atender aos que ficariam fora do auditório. Em seu belo saguão.
Os editores dos cadernos culturais (que são concluídos no começo da tarde) continuavam com página aberta, esperando pela entrevista do autor de “O Outono do Patriarca”. E ele não chegava. E o tempo passando. E nada. Final da tarde, todos os repórteres com os nervos à flor da pele, aparece Gabo, de camisa amarelo-ouro, calça branca, acompanhado de diretores do CCBB, e começa a percorrer os corredores do antigo prédio. E nós correndo atrás.
— E nossa entrevista?
— “Que entrevista?”, perguntavam amigos do escritor de Aracataca.
— “A que estamos esperando desde às 14h” (já passava das 17h).
Gabo admirava trabalhos de exposições de Fayga Ostrower e Carlito Carvalhosa, calmamente, como se fosse um personagem de Macondo. E nós, como uns doidos, correndo atrás, esbaforidos, tentando arrancar alguma declaração dele. Nossos editores esperavam que cumpríssemos com nossa obrigação. E obrigação de jornalista é tirar o que puder de sua fonte.
Depois da calma visita, Gabo entrou numa sala (até porque estava cercado por um grupo de jornalistas decidido a tudo para não deixá-lo escapar), sentou-se, nos olhou e perguntou: o que vocês querem?
“Queremos entrevistá-lo”. Ele disse que estava gripado, com dor de garganta, quase sem voz, e que conversaria conosco brevemente, não daria “uma entrevista”. Acabou falando das dificuldades enfrentadas pelo cinema latino-americano, sobre a adaptação que Arturo Ripstein faria de “Ninguém Escreve ao Coronel” e, principalmente, de “Edipo Alcalde”, roteiro que escrevera com Orlando Senna, inspirado em “Édipo Rei”, de Sófocles, e adaptado à Colômbia moderna. Os protagonistas seriam o cubano Jorge Perugorría (de “Morango e Chocolate”) e a espanhola Angela Molina. Ele como o prefeito Édipo, ela como Jocasta. Mas, brincou, Perugorría teria que emagrecer para tornar-se convincente no papel. “Ninguém vai acreditar na tragédia de um alcalde gordo daquele jeito”.
E decifrou mistério que intrigava os jornalistas. Por que tantos livros (e contos) dele chegavam ao cinema e à TV, e o mais famoso e traduzido de todos (“Cem Anos de Solidão”) não despertava interesse em produtores e cineastas. Será que o romance os assombrava?
Ele sorriu e afirmou: “Tanto não os assombra, que anualmente rejeito várias solicitações de compra de direitos para cinema. Elevo o preço cada vez mais para que desistam”. No fundo – admitiu –, “tenho ciúmes de ‘Cem Anos de Solidão’. O livro é tão familiar a seus leitores, que cada um tem uma avó Úrsula desenhada em sua imaginação, ou um tio louco como Buendía. Criaram tal afeto por estes personagens que, creio, vê-los no cinema não será bom”.
A conversa durou uns 20 minutos. E a noite já se anunciava. Gabo e seus amigos foram embora e alguns de nós corremos para os telefones disponíveis para encaminhar resumo às nossas redações do que ele dissera. Outros, meu caso, deixaram para escrever a matéria no dia seguinte, para o Caderno de Cultura, somando a conversa breve com a palestra noturna, aquela que uniria a dupla Gabo e Callado. Nem ao hotel, para tomar um banho, fomos. Continuamos de prontidão no CCBB, esperando o encontro do aracataquense com o niteroiense.
Nova espera. E nada. O tempo passando e nada… Até que veio o anúncio oficial. Gabriel García Márquez estava gripado, quase afônico e não participaria de nenhuma palestra literária. Viera ao Rio para encontrar colegas do Cinema e debater com eles a situação de nossas cinematografias, além de parcerias entre a Escuela de San Antonio e a Escola de Campos. Estava quase sem voz e não havia se comprometido com nenhum debate literário. Colocamos a viola no saco (ou caneta e gravador na mochila) e fomos assistir a filmes latino-americanos. Perto da meia-noite, voltamos para o hotel. O dia fora muito intenso.
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