Paul Schrader encerra trilogia dos homens de passado sombrio com “Jardim dos Desejos”

Por Maria do Rosário Caetano

Faz parte do folclore brasileiro (e lusitano, em especial) dizer que nossos distribuidores costumam providenciar péssimas traduções para títulos internacionais. Verdade parcial. Claro que muitos filmes, ao terem seus títulos vertidos para a língua portuguesa, acabaram vítimas de traduções desalentadoras ou, até, esdrúxulas.

Em compensação, o Brasil já escolheu títulos mais inspirados que os originais. O mais belo de todos é, sem dúvida, “A Rotina Tem seu Encanto”, derradeiro filme do japonês Yasujiro Ozu. O original – “O Gosto do Sanma”, um peixe consumido por trabalhadores de baixa renda – transformou-se em um verso poético capaz de sintetizar a essência e beleza da obra do mestre japonês.

Outra maravilha dos “transcriadores” brasileiros: “Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder (no lugar de “Sunset Boulevard”). Também inspirado é o título que a Pandora Filmes, de André Sturm, escolheu para o fecho da “Trilogia dos Homens de Passado Sombrio”, do grande roteirista (“Taxi Driver”, “Touro Indomável”) e cineasta Paul Schrader.

“Jardim dos Desejos” é bem mais instigante que “Master Gardener” (jardineiro-mestre). E traz a essência, complexidade e beleza do filme do veterano realizador estadunidense, que fará 88 anos em julho próximo. Quem duvidar, que vá assistir ao penúltimo retrato desenhado por Schrader de mais um personagem atormentado. No caso, um ex-supremacista branco, interpretado com sobriedade e tensa contenção pelo australiano Joel Edgerton.

O filme chega aos cinemas brasileiros nessa quinta-feira, 30 de maio. E mostra que, mesmo perto dos 90 anos, o grande roteirista de Scorsese, De Palma, Pollock e Peter Weir continua sendo um artista inquieto e interessado em revelar zonas sombrias da poderosa e conturbada América. Como fez nos tempos em que atuou junto às forças renovadoras (e transgressoras) da Nova Hollywood.

Há quem veja Paul Schrader como um roteirista mais inspirado que o realizador de duas dezenas de filmes. Pode ser. Mas, convenhamos, ele nunca assinou um título medíocre. Em algum ponto obscuro da história de sua poderosa América, ele encontrará matéria-prima para construir narrativas complexas e mostrar personagens atormentados pelo passado e em busca de redenção.

Os filmes de Schrader são, no geral, produções de orçamento reduzido, se tomarmos o padrão médio da indústria norte-americana. Caso de sua trilogia encerrada com “Jardim dos Desejos”. Os anteriores – “O Contador de Cartas” (2021) e “Fé Corrompida” (2017) – tiveram um ex-militar metido com a jogatina ilegal (o primeiro) e o fanatismo religioso (o segundo). E resultaram em filmes inquietos e instigantes.

E ele já tem novo filme pronto (será que chegará ao mercado brasileiro?).  A ficção “Oh, Canadá” participou, dias atrás, da competição pela Palma de Ouro, em Cannes. Nesta obra, o protagonista é um homem atormentado pelo câncer (Richard Ghere), que vê a morte cada vez mais próxima. Ele, que fora documentarista, revê suas memórias em projeto filmado por ex-alunos. Na juventude, depois de se negar a lutar na Guerra do Vietnã, acabaria exilando-se no Canadá, onde sequenciaria sua militância de esquerda.

Já o “Jardim dos Desejos” teve sua première mundial na septuagésima-nona edição do Festival de Veneza, que atribuiu ao cineasta-e-roteirista um Leão de Ouro especial, por sua trajetória de 50 anos dedicados ao audiovisual (filmes e séries). Aliás, registre-se, Paul Schrader vive fase de significativa redescoberta pelo circuito de festivais.

“Master Gardener” traz, mais uma vez, o tema da redenção como um de seus elementos propulsores. Narvel Roth (Joel Edgerton) é um jardineiro, dedicado e meticuloso, que cuida, com auxílio de aprendizes, dos amplos viveiros, estufas e canteiros que embelezam a Mansão Gracewood, propriedade da rica Sra. Haverhill (Sigourney Weaver).

A sofisticada e conservadora viúva, proprietária dos Jardins Gracewood, ama flores e jantares solenes. Cultiva e preserva a tradição que alimentou sua família. Só que, do lado rico dos Harverhill, só resta ela. Sua irmã teve uma filha destrambelhada e esta, por sua vez, morreu envolvida com o consumo de drogas. À velha dama resta uma única parente, a sobrinha-neta Maya, que é mestiça. Filha de sua sobrinha, que uniu-se a um afro-americano.

Em nome de tal parentesco, a alva dona dos belíssimos Jardins Gracewood pede ao jardineiro-mestre, que eduque a jovem Maya. Que a tome como aprendiz nos afazeres florais, a afaste das más companhias e, principalmente, do vício que consumira a filha de sua irmã.

O poder disciplinador de Narval é evidente. Ele, que abraçou procedimentos militares em sua militância em grupo de supremacistas brancos, tem o corpo tatuado com suásticas e outros terríveis e aflitivos símbolos. O que acontecerá dali em diante resultará da fina ourivesaria urdida por um grande roteirista e diretor capaz de, com poucos recursos financeiros e ótimo elenco, revelar segredos sombrios de seus personagens, marcados, de alguma forma, pela violência. Seja ela brutal e física ou disfarçada (no caso da praticada pela autoritária e possessiva Sra. Haverhill).

A beleza colorida das flores, seus aromas, o traçado geométrico dos canteiros, tudo no Jardim da Sra. Haverhill evoca ordem, disciplina e trabalho. O mesmo se dá no interior da mansão (as filmagens foram realizadas em New Orleans). A mesa é posta com refinamento. A aristocrática proprietária veste-se como uma lady. Leva para as roupas temas florais, que simbolizam sua paixão e hobby. Nas paredes do grande salão vemos seres ligados ao mar profundo, mas nunca revolto. Na aparência, tudo ali parece sob controle, na mais santa paz.

A chegada de Maya, com seus cabelos crespos e roupas modestas, seus hábitos nada aristocráticos e sua vontade de viver livremente, acabará alterando a pasmaceira reinante nos Jardins Gracewood. Tudo será registrado por Schrader com diálogos sintéticos e cortantes. E personagens nuançados.

O diretor de “O Dono da Noite” prova, mais uma vez, que merece a “redescoberta” empreendida pelos grandes festivais europeus de cinema. Além de Veneza e Cannes, até o Oscar o reconheceu na última década, mesmo que com modesta indicação — a de melhor roteiro, para “Fé Corrompida”.

 

Jardim dos Desejos | Master Gardener
EUA, 2022, 111 minutos
Direção e roteiro: Paul Schrader
Elenco: Joel Edgerton, Sigourney Weaver, Quintessa Swindell, Esai Morales, Eduardo Losan, Victoria Hill, Amy Le, Erika Ashley, Timothy McKinney, Jared Bankens, Matt Mercurio
Fotografia: Alexander Dynan
Trilha Sonora: Devonté Hynes
Montagem: Benjamin Rodriguez Jr.
Figurino: Wendy Talley
Distribuição: Pandora Filmes

 

FILMOGRAFIA
Paul Schrader (Grand Rapids, Michigan, EUA, 22 de julho de 1946)

2024 – “Oh, Canadá”
2022 – “Jardim dos Desejos”
2021 – “O Contador de Cartas”
2018 – “No Coração da Escuridão”
2017 – “Fé Corrompida”
2016 – “Cães Selvagens”
2014 – “Vingança ao Anoitecer”
2013 – “Vale do Pecado”
2008 – “A Ressurreição de Adam”
2007 – “O Acompanhante”
2002 – “Auto Focus”
1999 – “Vivendo no Limite”
1997 – “ Temporada de Caça”
1995 – “Ilusões Satânicas”
1992 – “O Dono da Noite”
1991 – “The Comfort of Strangers”
1988 – “Luz da Fama”
1987 – “O Sequestro de Patty Hearst”
1985 – “Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos”
1982- “A Marca da Pantera”
1980 – “Gigolô Americano”
1979 – “Hardcore, o Submundo do Sexo”
1978 – “Vivendo na Corda Bamba”

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