“Retrato de um Certo Oriente” emociona o público do Olhar de Cinema e arranca risos com “orgasmo ressuscitatório”

Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba

O “Relato” — transformado em “Retrato”— de um Certo Oriente, do escritor amazonense Milton Hatoum, foi aplaudido calorosamente pelo público de 1.500 pessoas que lotou a Ópera de Arame, palco inaugural da decima-terceira edição do Olhar de Cinema (Festival Internacional de Curitiba).

Enganou-se quem pensou que o novo longa-metragem do pernambucano Marcelo “Cinema, Aspirinas e Urubus” Gomes seria “cabeçudo” demais — em preto-e-branco, sem atores conhecidos, baseado em evocações da memória — para noite festiva em espaço tão amplo (a belíssima Ópera de Arame, cercada de árvores e água).

Terminados os 92 minutos de exibição do “Retrato-Relato”, o público estava inteiro na sala, emocionado e satisfeito. Afinal, vira um “filme de cinema”, construído ao longo de doze anos, com engenharia e arte. E até gargalhara em uníssono, em sequência que — por artes e artimanhas de Marcelo Gomes e sua montadora Karen Harley — fora definida como um “orgasmo ressuscitador”.

Dois dos protagonistas do filme, uma libanesa católica (Emilie) e um libanês muçulmano (Omar) consumam, em meio à floresta amazônica, a conjunção carnal. O irmão de Emilie, o jovem Emir, baleado, passa por processo curativo comandado por um pajé. Na potente e criativa montagem de Harley, o orgasmo dos dois amantes e o ressuscitamento do rapaz são justapostos. A plateia adorou.

No debate do filme, a curadora Geórgia Cynara, do Festival Internacional de Goiânia, cunhou a expressão “orgasmo ressuscitador” e divertiu a equipe do filme. Marcelo Gomes confessou que jamais esperara reação tão entusiástica (e bem-humorada) da plateia naquele momento de sua narrativa. Que empreende transcriação condensada da densa obra de Milton Hatoum.

O cineasta contou que o filme, coproduzido pela Itália, arrancou a mesma reação em sua estreia mundial no Festival de Roterdã. E que o público holandês também riu muito ao deparar-se com o ato sexual de Emilie e Omar e com o acordar de Emir, que finalmente renascia, depois de submetido a práticas curativas e rituais do pajé amazônico.

O realizador de “Retrato de um Certo Oriente” analisou a bem-vinda reação do público holandês e brasileiro: “creio que o riso vem do relaxamento do espectador, tenso com as dificuldades enfrentadas por Emilie e Omar. Finalmente, eles consumavam aquele amor”.

“Retrato de um Certo Oriente” só chegará aos cinemas brasileiros em novembro. Até lá, continuará com exibições especiais em festivais internacionais (são muitos os convites, inclusive dos países árabes) e nacionais. Em outubro, será lançado no circuito comercial libanês. Afinal, seus três protagonistas são oriundos deste país do Oriente Médio.

No “Relato” de Milton e no “Retrato” de Marcelo, a atriz Wafa’a Celine Halawi interpreta Emilie, jovem que deixa convento num Líbano ameaçado por nova guerra civil para rumar, na segunda classe de um navio, em direção à desconhecida Amazônia. Ela se apaixonará, em plena travessia, pelo comerciante Omar (Charbel Kamel, um mix de Omar Sharif com Thiago Lacerda), já radicado em Manaus, onde trabalha com um tio. Contra o relacionamento da irmã católica com o rapaz muçulmano se insurgirá Emir (Zakaria Kaakour), que culpa justo os muçulmanos pela morte de seus pais.

Uma briga, na qual Esmir será ferido por tiro de revólver, levará o trio a conviver com indígenas brasileiros, representados pela família real da atriz Rosa Peixoto (de “A Febre”, de Maya Da-Rin). Pai, mãe e irmã da atriz participam do filme. E emprestaram rituais e costumes, além do idioma Tukano, à narrativa.

Rosa relembrou a rica experiência com os atores do filme e o prazer de atuar com sua família. Com lágrimas nos olhos, evocou a memória do pai, que faleceu recentemente. “Tive receio” — contou— “de ver ‘Retrato’ ontem. Me emocionei muito, mas tive a alegria de ver o último trabalho de meu pai eternizado na tela”.

Marcelo Gomes evocou sequência do filme em que Emilie aprende palavras da língua portuguesa com Anastácia, a personagem de Rosa Peixoto. Num improviso, as duas conversavam sobre temas femininos. Emilie se mostrou encantada com os longuíssimos cabelos da indígena brasileira. As duas uniram os próprios fios, como se os medissem. O cineasta ficou encantado com o que viu. “Não estava no roteiro, mas entrou no filme”.

Marcelo Gomes e Milton Hatoum no festival © Walter Thoms

Em debate com a imprensa e o público, Milton Hatoum, Marcelo Gomes, a montadora Karen Harley, a atriz Rosa Peixoto e a co-roteirista Maria Camargo (o produtor Ernesto Soto Canny estava na plateia) brilharam. Marcelo elogiou a inteligência de Hatoum, mas ele também mostrou por que é um dos grandes diretores de nossa produção contemporânea. Tem um profundo conhecimento do cinema e sabe o quer realizar com cada novo filme (aliás, ele acaba de filmar “Dolores”, roteiro que herdou de Chico Teixeira).

Apaixonado pela ficção e pelo documentário, o pernambucano contou de seu deslumbramento com o primeiro romance de Hatoum, escrito em 1987 e publicado dois anos depois. “Para mim, Milton Hatoum vê a Amazônia como a última parte do Gênesis”. Ao lê-lo “percebi que ali estavam temas que me apaixonam — o encontro radical de alteridades e a memória e um de seus registros, a fotografia”. Para, em seguida, citar frase que abre o livro: “A vida começa de verdade com a memória”.

A adaptação do romance de Milton Hatoum é muito livre. Uma transcriação. Marcelo construiu o roteiro em parceria com Maria Camargo e Gustavo Campos. E o fez com liberdade total, já que o escritor entende que um filme (ou uma minissérie) traz o olhar de um novo criador. No romance, que abarca um longo tempo histórico, quem rememora as vivências de Emilie é sua neta. Fotografias são o dispositivo desta rememoração. No “Retrato” de Marcelo, quem mira as fotos é a própria Emilie, que as recebe das mãos de um fotógrafo francês, amigo de Emir (representado pelo italiano Eros Galbiati).

Os roteirista optaram por narrativa “em linha reta”, abandonando as idas e vindas no tempo, presentes no romance. “Queríamos”, detalhou Marcelo Gomes, “mostrar que, para Hatoum, a vida começa, mesmo e de verdade, com a memória, e que a fotografia salva nossa personagem de traumas do passado”.

Com a trama inteira de “Relato de um Certo Oriente”, Marcelo teria material para uma série de dez capítulos. Optou por um filme de enxutos 92 minutos”. Mas que lhe tomou dez anos de trabalho, desde a aquisição dos direitos de filmagem.

“Tivemos imensa dificuldade de somar recursos para a produção do filme”, relatou o diretor. Quando finalmente puderam mobilizar elenco internacional e as necessárias condições financeiras, veio a pandemia. “Estávamos no terceiro dia de filmagem, quando tomamos consciência da gravidade do que estava acontecendo. Tivemos que desmobilizar o set e reencaminhar os atores para seus países de origem. Um deles ficou conosco no Brasil por três meses, pois não havia mais como voar de volta ao seu país”. Para economizar, “havíamos pago hotel e outras despesas de produção com antecedência e, assim agindo, obter descontos. Tudo em vão”.

Quando novas e melhores condições se apresentaram (e Ernesto Soto conseguiu coprodução com a Itália e apoio da Globo Filmes), as filmagens foram retomadas. E o filme estreou, finalmente e para alegria de Milton Hatoum, em Roterdã.

A fotografia do “Retrato de um Certo Oriente” foi muito elogiada no debate realizado pelo Olhar de Cinema. E Marcelo justificou a arriscada opção pelo preto-e-branco. Em conversas mantidas com o diretor de fotografia, Pierre de Kerchove, brasileiro de origem belga, cineasta e seu colaborador concluíram que “a Amazônia, um mundo de águas e florestas, é exuberante demais para ser filmada em cores”. Especialmente, “num filme que trabalha a memória e histórias íntimas”.

Marcelo e Pierre recorreram a lentes do início da fotografia e assumiram postura “meio documental” em busca de vestígios da memória. Assumiram, também, a intenção de dialogar com o cinema do passado. “Revi o DVD de ‘Limite’ e fiz homenagem a Mario Peixoto, assim como ao cinema de Sergei Eisenstein. O que são aquelas redes (de dormir) e os rostos dos personagens que estão naquela embarcação? São homenagem ao cinema épico do realizador soviético”. Karen Harley lembrou-evocou também o cinema clássico de Hollywood, com suas imagens em preto-e-branco e seus closes nos rostos dos atores.

Maria Camargo, que escreveu sozinha o roteiro da minissérie “Dois Irmãos” (TV Globo) e colaborou com Sérgio Machado (“Rio dos Desejos”) e com Marcelo Gomes, tornou-se uma espécie de guardiã das transposições da obra de Hatoum para o audiovisual.

A Revista de CINEMA perguntou a ela se, no processo de criação do roteiro de “Retrato de um Certo Oriente”, ela exercera a função de defensora da obra do escritor frente às imensas liberdades tomadas por Marcelo Gomes. Ela respondeu:

— Sou uma guardiã da visão de mundo de Milton, não uma defensora deste ou daquele trecho de sua obra. “Retrato” é meu terceiro projeto ligado ao escritor. E nesses projetos minha atuação foi diferenciada. A minissérie “Dois Irmãos” nasceu de iniciativa minha, que me consumiu por 12 anos. Adquiri os direitos autorais e escrevi o roteiro sozinha. Milton me deu liberdade total, até me disse que eu poderia eliminar um dos gêmeos protagonistas (risos). O que eu jamais faria, pois nesse caso estaria desrespeitando sua visão de mundo. No trabalho com Sérgio Machado, que teve Milton Hatoum como um dos roteiristas, minha experiência foi a de me somar a um trabalho coletivo. Com Marcelo, colaborei na fase inicial e na final de roteirização. Mas sempre compreendendo que meu papel é estar entre dois artistas (o romancista e o cineasta) com duas visões de mundo. E ajudar na soma dos desejos de cada um. Jamais atuar como uma guardiã em defesa deste ou daquele parágrafo do livro”.

E o que Milton Hatoum achou da transcriação de seu romance?

Antes de explicitar sua avaliação, vale lembrar a ode consagradora de Dalton Trevisan ao filme “Guerra Conjugal” (1975), de Joaquim Pedro de Andrade, documentada na internet. Raras vezes, em mais de um século de cinema brasileiro, se viu sintonia tão fina entre escritor e cineasta, tamanha comunhão de almas.

Pois o o autor de “Relato de um Certo Oriente” está apaixonado pelo “Retrato” desenhado por Marcelo Gomes. Ele contou até que, em algum momento da história de seu romance, escrito 37 anos atrás, pensou em “Retrato” ao invés de “Relato” (para o título final). O “Relato” acabou por se impor. Guarda, até, um marcador de livro com a primeira opção.

Para o que viu na imensa tela da Ópera de Arame (foi seu segundo contato com o filme), Hatoum só tem elogios. Gostou das transmutações feitas pelo cineasta-roteirista, viu no navio que traz os libaneses (do deserto para a imensidão da Amazônia) a casa de Manaus que ambienta boa parte do livro.

O escritor ponderou, durante o debate, ter visto na tela os grandes temas de seu romance — a viagem, o amor, a morte e a memória. Para concluir: “o filme de Marcelo adota o mar como espaço épico, assim como antes o fizeram tantos poetas da literatura épica. Ele concentrou seu olhar num recorte muito criativo e fez, coletivamente, com seus colaboradores cinematográficos, aquilo que eu fiz sozinho. Vendo o filme mais uma vez, e quero ver muitas outras, descobri coisas que estavam no meu próprio livro e eu não percebera”.

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