O cinema rigoroso de Petrus Cariry

“O Grão” (2008), estreia de Petrus Cariry em longas, arrebatou mais de 30 prêmios em 50 festivais mundo afora e delineou o que seria um cineasta promissor dentro do cenário audiovisual brasileiro. “Mãe e Filha”, segundo longa de Petrus, que teve sua primeira exibição no 21º Cine Ceará e já levou cinco prêmios – incluindo o de melhor filme –, é a confirmação de uma espécie rara no Brasil: o cineasta de vasto rigor formal.

Tal característica já podia ser vista em seus curtas, como “Dos Restos e das Solidões” (2006) e “O Som do Tempo” (2010), mas parece chegar ao seu ponto máximo, até o momento, em “Mãe e Filha”. “Os filmes que venho fazendo, desde os curtas, são muito coerentes entre si e seguem uma linha muito pessoal. Não sei se vou continuar assim daqui uns cinco anos, mas o que faço é o tipo de cinema que me interessa. Não sei como serão as políticas públicas, mas está cada vez mais complicado fazer filmes com um teor mais artístico, mais autorais, que não buscam um grande mercado”, afirma Petrus, que tem como inspiração os cineastas russos, em especial Andrei Tarkosvky e Alexandr Sokurov.

O longa traz o encontro de mãe e filha após muitos anos separadas. A filha, moradora de Fortaleza, volta à cidade natal, completamente abandonada, para fechar um ciclo: leva o filho natimorto para a mãe batizar, como a havia prometido. “Vi uma nota de jornal local de uma mãe que carregava o filho morto de um hospital para casa. Ela não tinha dinheiro e levava o filho de carona, para depois colocar num caixão e enterrar. Eu guardo recortes de jornais, algumas notícias que me instigam, porque podem me dar ideia para algum argumento”, conta, sobre a origem do filme.

O rigor é visto nos belos planos, muito bem cuidados tanto no enquadramento, quanto na luz, para que se aproximem das artes plásticas. “Queria fazer Rembrandt, com luz de velas, micropontuadas”, aponta o diretor, que é filho do cineasta Rosemberg Cariry, um dos três autores do roteiro de “Mãe e Filha” – junto com Petrus e seu habitual colaborador Firmino de Hollanda; a irmã de Petrus, Bárbara, também faz parte da equipe, como produtora e assistente de direção. O rigor também é visto no tempo dos planos. “Tem uma frase da [cineasta japonesa] Naomi Kawase que adoro: ‘As pessoas estão muito acostumadas a ter um prazer imediato e a reposta imediata e vão ao cinema para ter uma experiência instantânea.’ Em ‘Mãe e Filha’, as coisas acontecem aos poucos, é um crescendo. Micro tensões que acontecem aos poucos. Tenho essa coisa forte com o quadro e o rigor formal, dos tempos mortos, das dilatações de tempo. Gosto desses planos longos, para dar tempo de você entrar na história. Não gosto de videoclipe, dessa linguagem mais acelerada, não me diz muito. Quando falo do tempo mais depurado, não é só estética, acho que a história pedia mais tempo. É uma cidade que parou no tempo, estática, morta, com uma senhora que está morta de espírito e cuja renovação é uma criança morta. Fiz isso justamente para convidar o espectador a essa experiência sensorial, de tempo, sentir o tempo escorrendo pelos dedos”, explica Petrus, que começou em 2002 com o curta “A Ordem dos Penitentes”.

A cidade fantasma de Cococi

Outro fator que desperta bastante atenção em “Mãe e Filha” é o cenário. Rodado todo na cidade fantasma de Cococi, no Sertão dos Inhamuns, a 600 quilômetros de Fortaleza, o longa se aproveita das ruínas da cidade, que foi abandonada no final dos anos 70 pelos seus moradores e que hoje abriga apenas duas famílias. “Em 2000, meu pai filmou lá, uma espécie de prólogo de ‘Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio’. Achei fantástica a cidade e quis voltar ao local. Desde que fiz ‘Dos Restos e das Solidões’, onde o documentário curto se passa, tinha essa ideia fixa de voltar a Cococi. Queria muito fazer uma ficção lá. É quase uma espécie de palco, de tragédia grega, que servia de cenário para o drama, de tensões silenciosas, que eu queria contar. Era o lugar ideal. Quero voltar lá daqui a dez, 15 anos, para arrematar uma espécie de trilogia do local. Hoje ela já está bem derrubada, quero ver como vai estar daqui um tempo”, conta.

Petrus não voltou à cidade para desenvolver o roteiro ou para decupar as cenas, tão forte eram as imagens do local. “Conhecia bem o lugar, tinha-o todo na minha cabeça. Tinha muitas imagens da casa. Tinha ideias de quadros e de mise-en-scène, mas o legal é colocar a atriz e criar com ela. Tive que fazer de forma muito rápida. Fazia na hora. De dia filmava, à noite descarregava o cartão e revia para checar se tinha cena fora de foco até 2h da manhã. Dormia três horas”, afirma.

Em “Mãe e Filha”, o teor místico e religioso é muito trabalhado como construção de personagens. “Os vaqueiros que aparecem, por exemplo, são a ancestralidade, os fantasmas da mãe. Deixei de forma aberta. A ancestralidade fechando a passagem”, pontua. “Para haver vida, precisa ter morte; aquele ciclo precisa ser cristalizado. É um filme denso, rigoroso, austero. Queria fazer um filme sensorial e a trilha gera muitas tensões”, explica Petrus, cujo filme versa muito sobre a vida e a morte, o passado e o futuro.

Dificuldade em emplacar projetos

“Depois de ‘O Grão’, tinha o projeto de rodar ‘Clarisse ou Alguma Coisa sobre Nós Dois’, que iria ser o segundo longa. Ficou difícil a viabilização em editais e em levantamento de recursos. Você acha que depois de fazer o primeiro filme vai ser fácil fazer o segundo, mas não, é mais difícil. Aí no ano passado, 2010, ganhei um edital de curta-metragem da Secretaria do Estado, por um projeto chamado ‘Mãe e Filha’, que já foi feito como roteiro de longa, mas foi reduzido para um de curta. Ganhei e fiz o longa”, conta.

Além do dinheiro do edital de curta (R$ 75 mil), Petrus usou parte dos prêmios em dinheiro recebido por “O Grão” – caso dos R$ 80 mil recebidos pelo prêmio de melhor filme, no III Festival do Paraná. Orçamento fechado em R$ 150 mil, o cineasta agilizou a produção. Contemplado no final de 2010, entrou em pré-produção em dezembro e filmou por 18 dias em Cococi, a partir de 10 de janeiro. No começo de fevereiro, já entrava na montagem e finalização. “Não é o ideal fazer cinema sem dinheiro, precisava de no mínimo R$ 500 mil. Mas, caso contrário, não faria”, afirma. Filmado com uma câmera 7D, Petrus vai fazer ainda um transfer para 35mm. Quer fazer cópia única, direto para positivo, e legendá-la em inglês para fazer circular fora do Brasil.

Enquanto “Mãe e Filha” circula por festivais – a ideia é lançá-lo no circuito comercial apenas no ano que vem –, o cineasta retomou “Clarisse ou Alguma Coisa sobre Nós Dois”, um drama sobre uma mulher que desce aos infernos; e prepara o documentário em curta “O Homem da Lua”. “O Grão” também terá uma sobrevida após o lançamento quase invisível que teve nos cinemas no ano passado, sendo lançado em outubro, pela Lume Filmes, em DVD.

Por Gabriel Carneiro

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