A grande virada da TV
Aprovada há mais de um ano, e regulamentada em junho, finalmente, passou a valer, a partir do último setembro, a Lei 12.485/11, mais conhecida como Lei da TV paga. Visando um público de mais de 14 milhões de assinantes, o setor audiovisual está em ebulição. Mudanças previstas agora começam a tomar forma e a previsão é de enorme crescimento. Uma das medidas responsáveis por isso é a instauração dos chamados “canais brasileiros de espaço qualificado”, canais que exibem programas ficcionais e documentários brasileiros na maior parte do horário nobre.
Recentemente, a Ancine publicou a lista dos canais de espaço qualificado, atendendo a algumas particularidades da legislação. A lei determina que, em todos os pacotes de assinatura ofertados, a cada três canais de espaço qualificado, um deve ser brasileiro, tendo como limite máximo 12 canais brasileiros de espaço qualificado. Desses canais, ao menos dois deverão veicular, no mínimo, 12 horas diárias de conteúdo audiovisual brasileiro, produzido por produtora brasileira independente, três das quais em horário nobre. Quatro canais foram habilitados nesta categoria: CineBrasil TV, Prime Box Brazil, Curta! O Canal Independente e Canal Brasil, sendo que apenas o último não pertence a uma programadora brasileira independente – no caso, a Globosat. “Esses canais são os que farão a diferença para a produção independente. Os outros mais facilmente ficarão numa terceirização de sua produção própria”, afirma a diretora geral do CineBrasil TV, Tereza Trautman.
A mudança e a necessidade de cumprir as cotas vêm sendo festejadas pelo setor, porque permite a funcionalidade de uma emergente indústria audiovisual brasileira. Mas nem todos veem assim. Trautman crê que a Ancine cometeu um grande erro ao referendar o autocredenciamento dos próprios canais dentro dos regimentos – ou seja, quem diz se o espaço é qualificado e aonde se encaixa na lei é o próprio canal. Segundo Trautman, vários desses canais tidos como espaço qualificado não obedecem à lei. “Isso criou falsas expectativas no mercado que agora pretende a classificação desses canais, pelos quais nada ou muito pouco se paga, para o cumprimento das cotas de canais, e desta forma diminuíram ainda mais os parcos centavos por assinante que as operadoras se predispunham a pagar pela veiculação dos verdadeiros canais das cotas. Ou seja, os canais brasileiros independentes estão numa sinuca, de um lado o conteúdo, que vem a ser o seu insumo principal, disparando de preços, e de outro as operadoras querendo o canal grátis. É uma conta que não fecha”, lamenta.
A autodeclaração funciona quase como um voto de confiança nos canais, mas a diretora colegiada da Ancine, Vera Zaverucha, garante que haverá fiscalização e haverá mudança no credenciamento se for o caso. “A fiscalização será feita com base nas informações que os canais estão obrigados a nos fornecer”, explica.
Produção independente e mudanças no FSA
“As cotas, como em outros segmentos, são apenas um fator impulsionador para uma indústria sustentável. Em países como o Canadá, por exemplo, isso funcionou perfeitamente, e hoje aquele país tem uma realidade sustentável. Portanto, além de maior visibilidade ao conteúdo nacional e um incremento de investimento no setor, certamente a lei beneficiará a atividade de produção de conteúdo audiovisual como um todo. Este primeiro impacto foi muito positivo. Algumas programadoras já haviam obtido excelentes resultados com a produção independente brasileira e, com a lei, esta relação ficou mais clara e direta, houve um amadurecimento do setor”, comenta Marco Altberg, presidente da ABPITV (Associação Brasileira de Produtoras Independentes de Televisão). “Com a regulamentação, esperamos um equilíbrio das possibilidades entre a produção de conteúdo dos canais por assinatura já existentes e os novos que serão criados. Quanto à criação de uma indústria audiovisual, essa responsabilidade não deve ser atribuída unicamente à TV por assinatura, por ser este apenas um segmento importante e em franco crescimento”, complementa.
O aumento da demanda por produtos para cumprir as cotas diversas já vem sendo visto desde a aprovação da lei no ano passado e cada vez é maior. “Temos sentindo um grande e natural aumento na busca de conteúdo por parte dos canais. Esta procura se dá em dois sentidos: busca por conteúdo já existente, no qual estamos conversando com o mercado sobre projetos, como a minissérie ‘Natália’, os documentários ‘Amores Expressos’ e ‘Histórias do Rio Negro’, além de longas-metragens como ‘Natimorto’ e ‘Amanhã Nunca Mais’, e produção de novos conteúdos, que já estamos negociando”, conta Paulo Schmidt, sócio do Grupo INK, que já trabalha em cinco novas séries, “O Vigilante Rodoviário”, “Destemperados”, “Adorável Dora”, “Santa Teresa” e “Zona Lost”.
Visando promover o desenvolvimento audiovisual de quem está tentando se afirmar na área, mas não tem tanta experiência, a regulamentação do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual) prevê dois indutores: para produtoras estreantes e para estados da federação que não tenham sido contemplados na seleção inicial do edital de produção. Pela sistemática, cinco projetos serão de diretores estreantes e cinco para produtoras sediadas em estados que não tenham tido projetos contemplados dentre os 30 selecionados. Ou seja, ao todo serão 40 projetos contemplados, com 10 obedecendo à regra de indução.
Um dos medos dos produtores – e do público – é a reprise excessiva do conteúdo brasileiro, desgastando-o – assim como costumam fazer com os produtos estrangeiros –, especialmente buscando cumprir a cota sem desembolsar um pouco mais. “Não acredito que as programadoras façam reprises excessivas apenas para cumprimento das cotas. Temos que lembrar que o espectador tem o controle remoto na mão e que caso haja abuso nas repetições, bastará mudar de canal. Desta forma, a diretoria optou por não regular o número de repetições permitidas, mas restringiu o tempo em que a obra poderá ser utilizada para cumprir a cota”, explica Vera Zaverucha o porquê das reprises não serem normatizadas.
A maior demanda de produtos pelos canais não tem como propósito aumentar os bolsos das produtoras e sim tornar possível que mais pessoas sobrevivam do audiovisual, fazendo com que o mercado absorva mais profissionais, sejam técnicos ou criadores de conteúdo. “As produtoras terão que estar prontas para atender a uma grande demanda dos canais e isso envolve profissionalização do mercado, tanto do ponto de vista de profissionais, quanto à estrutura e equipamentos prontos para suportar o aumento de gravações. É necessária a criação de novos empregos para reforçar um mercado que hoje é limitado e que, atualmente, os profissionais que dirigem programas de TV são do meio publicitário. Estamos falando de um verdadeiro boom de pessoal e estrutura. Aqui na casa, damos bastante atenção a novos talentos que nos procuram e mantemos profissionais criativos voltados a pensar novas e interessantes possibilidades para as emissoras. Talentos escondidos serão revelados”, pontua Paulo Schmidt.
Produtoras aumentam custos de produção e licenciamento
A ideia é, também, que a maior demanda e o fluxo contínuo de projetos diminuam os custos de produção desses novos produtos. “Está aberta a temporada de caça, ou seja, há uma possibilidade de negociação aberta para se chegar num ponto de equilíbrio entre o desejo da emissora e o da produtora. Não creio que haverá um encarecimento na produção. Isso seria muito ruim, pois em São Paulo já temos um alto custo de produção, em comparação a outros estados e, principalmente, países vizinhos”, comenta o cineasta Rubens Rewald, presidente da APACI (Associação Paulista de Cineastas).
“O desafio é que os produtores consigam propor modelos de negócio que atendam aos limites de investimento das programadoras independentes brasileiras neste momento de consolidação, oferecendo alternativas de conteúdos de orçamentos variados, composto por um mix de projetos de grande estatura e com produção diferenciada de alta qualidade, somados a projetos mais econômicos”, afirma Cícero Aragon, diretor-presidente da programadora Box Brazil. Vera Zaverucha também crê que não deverá haver inflação. “Os valores de licenciamento não são tão elásticos a ponto de permitir que os valores de produção aumentem de forma a inviabilizar o lucro. Considerando que para a produtora ter um projeto de TV aprovado é necessário um contrato de licenciamento com um canal de televisão, quanto mais alto o valor do orçamento, mais alto será também o valor de licenciamento. Desta forma, o projeto terá que se adaptar aos valores praticados no mercado”, argumenta.
“Os valores praticados em produção de TV são tradicionalmente bem menores que os de cinema, mas existem características inerentes aos diferentes formatos que determinam os valores praticados em TV. A produção em maior escala tende a reduzir os custos e isso é desejável, diferente da valoração em licenciamento de produtos prontos que certamente será revista”, complementa Marco Altberg.
Aliás, o licenciamento de obras já prontas tem subido exponencialmente. Tereza Trautman aponta que, nos últimos três meses, subiu em 250%. Cícero Aragon também notou aumento nos licenciamentos, mas está esperançoso. “O valor dos licenciamentos de conteúdos prontos tem subido mensalmente e, neste caso sim, a maior procura inflacionou. Todavia, acredito que a busca por mais produtos vai gerar novas oportunidades para diversos produtores que antes não tinham para quem produzir e, neste caso, vai aumentar a concorrência, com o surgimento de novos fornecedores e, consequentemente, uma tendência ao reequilíbrio de valores”, aponta.
A fonte dos recursos
Atualmente, todos os recursos federais disponibilizados ao audiovisual, através dos mecanismos existentes, figuram na casa dos R$ 500 milhões por ano. Só o PRODAV tem R$ 55 milhões à disposição das produtoras que queiram produzir projetos para TV. “Com os recursos novos que incre mentaram o FSA, teremos mais recursos que ajudarão, inicialmente, o processo de cumprimentos das cotas da TV paga. No futuro, acredito que estes recursos poderão deixar de apoiar projeto a projeto e passar a apoiar as empresas. Existem diversas necessidades apontadas pelo mercado que poderiam vir a ser contempladas com recursos do FSA, tais como capacitação, empresas e núcleos de criação, desenvolvimento de formatos, pesquisa e inovação, entre outros”, explica Vera Zaverucha. “O FSA passou a contar com recursos para as diversas ações de fomento, garantindo assim uma quantidade de recursos capaz de alavancar de vez o setor, e assim competir com a indústria hegemônica estrangeira”, complementa.
A importância do FSA tem sido bastante grande nesse planejamento. Por conta disso, a Ancine tem tentado desburocratizar os processos, como, por exemplo, a aprovação de projetos. “Verificamos que cerca de 40% a 50% dos projetos aprovados não captavam recursos suficientes para terem os valores captados liberados. Isto fez com que mudássemos a regra. Hoje, só passam por uma análise mais minuciosa os projetos que tem captação correspondente a, pelo menos, 20% do valor estimado aprovado quando da sua apresentação à Ancine”, esclarece Zaverucha.
Essas medidas são cruciais, na opinião do produtor Paulo Schmidt, especialmente nos próximos dois anos, quando as três horas e trinta minutos de programação brasileira semanal já estiver em vigor. “A lei foi sábia em prever a possibilidade de recursos para financiar parte destes conteúdos que cumprirão cota de produção nacional. A utilização de recursos dos fundos setoriais e de renúncia fiscal será fundamental”, aponta. “Imagina-se que com o passar do tempo os canais comprem mais conteúdos nacionais além da cota estabelecida nesta lei e que os recursos necessários para a produção venham da receita do próprio canal, já que a aumento da base de assinantes terá um crescimento geométrico nos próximos anos”, complementa, esperançoso.
O governo do Rio de Janeiro, através da RioFilme, já está se mobilizando para atender o setor. Até 2012, foram R$ 7,9 milhões investidos. Para 2013, os valores disponibilizados para TV serão equivalentes aos do cinema. “Elevaremos o investimento em conteúdo para TV de modo que a indústria audiovisual carioca aproveite plenamente o contexto favorável do setor”, explica o presidente da RioFilme, Sérgio Sá Leitão, que ainda não pode divulgar valores por conta da mudança de mandato. “Faremos investimentos reembolsáveis e não-reembolsáveis, com critérios e normas distintos. Ter um canal interessado no projeto será fundamental. Manteremos as parcerias com o Canal Brasil e a Oi TV. E estamos abertos a novas propostas”, complementa.
A RioFilme é uma empresa estatal que age no Rio de Janeiro, ou seja, tem como mote alavancar a produção do estado. “Com o nosso investimento, será mais interessante para os canais selecionarem e investirem em projetos de empresas do Rio. Haverá um crescimento de pelo menos 10 vezes no número de horas de conteúdo nacional exibido em TV paga no país”, estima.
São Paulo, o outro grande estado produtor audiovisual, em contrapartida, não tem projetos semelhantes. “Estamos sempre lutando por maiores aportes do poder público para o setor, tanto junto ao estado como no município. Esse ano, graças a nossa pressão, a Secretaria Municipal da Cultura teve um orçamento para o cinema maior que nos últimos anos e parte dessa verba foi aplicada para o desenvolvimento de projetos para TV”, comenta Rubens Rewald. Dentro da APACI, a movimentação também não é muito maior. “Não há nenhuma ação específica para o setor. O que fazemos é uma divulgação em nossa lista de associados se haverá algum pitching ou edital aberto. Antes de qualquer ação específica, temos que ver como os produtores e realizadores de São Paulo irão se movimentar nos próximos meses, para sentirmos as carências do processo e aí sim propor alguma ação”, explica.
Os canais para produção independente
São três os canais brasileiros de espaço qualificado, programados por programadoras independentes, com mais de 12 horas diárias de produção independente. São justamente eles que estão tentando realmente fazer a lei, e os ainda parcos recursos têm feito que encontrem soluções para veicular uma grade de programação de qualidade. Dos três, o CineBrasil TV é o mais antigo. São mais de oito anos. O Prime Box Brazil tem um ano e Curta! O Canal Independente ainda não está no ar.
Segundo o diretor responsável pela Synapse Brasil, Julio Worcman, Curta! O Canal Independente ainda está em negociações com as operadoras, mas deve seguir a receita do portal de internet Porta Curtas, que permite que os usuários assistam online, gratuitamente, a mais de mil curtas do acervo, desde 2002. O canal já possui um acervo com 622 curtas-metragens e 505 documentários brasileiros independentes, além de ter projetos de programas feitos por produtoras independentes.
O CineBrasil TV é comandado pela programadora Conceito A, de Tereza Trautman, voltado à cultura popular, com preferência por obras de classificação etária livre. Atualmente, negociando com a grandes operadoras, Net, Sky e Claro TV, o CineBrasil TV está sempre em busca de novos conteúdos (os produtores podem inscrevê-los via site www.cinebrasiltv.com.br), porém prefere obras prontas. A ideia é começar, agora com a valoração do canal para as operadoras, a buscar fomentos para produções novas. “Uma coisa é querer, outra é poder. Tudo vai depender da distribuição que o canal tiver e do valor que as operadoras se predispuserem a pagar por ele. Se este valor for muito baixo, mas a distribuição do canal tiver uma base de assinantes considerável, teremos que obter os recursos da publicidade, o que não acontece da noite para o dia. São ainda muitas as incógnitas. Por ora, estamos vivendo na expectativa”, comenta Tereza.
O Prime Box Brazil, voltado para o cinema e para o audiovisual, é o principal canal da programadora Box Brazil, que ainda conta com o Music Box Brazil, voltado à música, o Fashion TV Brazil, voltado à moda, e o Travel Box Brazil, voltado ao turismo, todos classificados como canais brasileiros de espaço qualificado. Cícero Aragon quer, para a programadora, ser um dos mais importantes parceiros da produção independente brasileira. Segundo ele, mais de 80% dos conteúdos brasileiros exibidos nos canais serão licenciados ou coproduzidos com a produção independente brasileira. “Estamos em plena negociação com todas as empacotadoras brasileiras e também com o mercado internacional. A Box Brazil nasceu pensando no mercado brasileiro e internacional, formatada também para exportação, começando pelo Brasil com Z, que é como o país é conhecido internacionalmente, além dos nomes dos canais com nomes internacionais apesar do foco no conteúdo brasileiro”, comenta.
Atualmente, a Box Brazil busca filmes, séries, documentários e programas especiais em geral e também com temas específicos como música, folclore, cultura, gastronomia, esportes, turismo, moda, comportamento e qualidade de vida. “O grande desafio é encontramos projetos que pensem em volume de produção, em valores muito competitivos por capítulo, em que todos ganham com o volume de contratação. Em geral, os projetos que recebemos têm um alto valor por capítulo e como um todo. Estes projetos são importantes, interessantes, mas é preciso que tenhamos uma maior oferta de conteúdos de grade, de baixo valor, para que consigamos ter um mix mais equilibrado de conteúdos quanto aos seus financiamentos”, argumenta. “A referência seria programas que fiquem, por capítulo, com preços próximos daqueles que se o próprio canal fosse contratar uma equipe básica fixa e produzí-los. Logicamente, o valor proposto pelo produtor independente precisa ter também uma taxa de produção, natural do negócio e da contratação”, esmiúça. As coproduções e os licenciamentos de conteúdos serão financiados com um misto de recursos dos fundos, editais, leis de incentivo e recursos próprios.
“O mundo está olhado para o Brasil e certamente seus conteúdos passam a ter um apelo infinitamente superior ao de anos atrás, dentro e fora do país. Como disse, este é o momento do Brasil e, em especial, o momento do audiovisual brasileiro”, conclui Cícero Aragon.
Por Gabriel Carneiro