Arquitetura da alma perdida

“Boa Sorte, meu Amor” resulta de um modo peculiar de olhar o mundo, particularmente, Recife e o interior pernambucano, onde transitam os personagens carregados de vazios existenciais. Esta impressão é confirmada pela configuração personalizada dos espaços atravessados por Dirceu (Vinicius Zinn) em sua jornada de autoconhecimento; uma propriedade colonial austera, um apartamento asséptico, uma casa decadente num sertão descaracterizado e uma denúncia: estão modernizando e verticalizando Recife a troco da perda da identidade do passado. “A arquitetura modifica as pessoas e o nosso olhar”, afirma Daniel Aragão, que estreou no terreno do longa-metragem com esse filme, exibido na última edição do Festival de Brasília, de onde saiu com os Candangos de melhor direção e som, além da menção especial para Carlo Mossy.

O cineasta flagra um momento de mudança, em que a tradição é desvalorizada em prol de uma modernização impessoal. Em Recife, casas de “priscas eras” são demolidas para dar lugar a arranha-céus impositivos na paisagem praiana. “Apagar a memória é um movimento muito brasileiro. Não valorizamos a preservação. Gostamos do abandono, de esquecer o passado com o qual deveríamos ser mais generosos”, observa Daniel, que transfere essa discussão para uma esfera intimista: a de Dirceu, um jovem de alma vazia que descobre por acaso um amor, e empreende uma viagem de volta à região onde nasceu, norteado pela busca por uma mulher, Maria (Christiana Ubach), com quem se envolveu e que subitamente desapareceu. No filme, Dirceu ruma para regiões cada vez menos povoadas numa travessia que o leva a um confronto pessoal. “Maria talvez não exista. Pode ser um fantasma da cabeça dele”, aponta.

Começos e fins de ciclos existenciais

Como Dirceu, Daniel sentiu necessidade de resgatar o vínculo com um espaço de infância: o da fazenda da família. “Até os 11 anos, eu viajava obrigado para lá. Na adolescência, tive necessidade de me isolar. Depois, quis retornar para a fazenda, que já estava em processo de desapropriação”, conta Daniel, acerca da propriedade, localizada no interior de Alagoas, desapropriada em 2007. “Minha tentativa de me reconectar com aquele espaço foi abortada pelo movimento do Brasil. Eu me dei conta de que o meu desejo não é o melhor para a nação”, observa.

A súbita morte da avó foi um acontecimento determinante na retomada de um elo com o passado. Daniel tinha acabado de voltar das filmagens de “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), de Marcelo Gomes, em que trabalhou como estagiário na parte de pesquisa e como um dos assistentes de direção. “A minha avó vinha definhando há bastante tempo. O enterro dela se tornou revelador para mim. Retornei de uma experiência de cinema no interior e aquela matriarca estava morta. Reencontrei pessoas que não via há 20 anos. Elas me contaram histórias loucas – uma delas, a de que minha trisavó era índia”, diz Daniel, mencionando uma informação que incluiu em “Boa Sorte, meu Amor”.

Daniel Aragão

Melancolia e morte (na alma de Dirceu) estão presentes no filme através de imagens estranhas, como a de um cadáver soterrado e a de um cavalo estirado no chão. Ao mesmo tempo, Daniel destaca o tortuoso processo de renascimento do protagonista. O desconforto é uma meta em seu cinema. “Quando um relacionamento termina, você passa um mês mal e depois renasce. As pessoas não devem se encontrar por comodidade. O outro tem que cutucar para você melhorar. Não por acaso, procuro desestabilizar o espectador”, conecta.

O incômodo é contrabalançado com o fascínio estético suscitado pela construção visual do filme, evidenciada na fotografia em preto e branco (de Pedro Sotero), na partitura sonora (a cargo de Guga S. Rocha, Philipe Cabeça e Pablo Lopes) e na trilha (de Jimi Tenor). “Sempre pensei em fazer o filme em P&B porque me gera certo distanciamento. A cor me dispersa”, resume Daniel, influenciado por diversas obras em P&B, como “Glória Feita de Sangue” (1957), de Stanley Kubrick, “A Doce Vida” (1960), de Federico Fellini, “Beijo Amargo” (1964), de Samuel Fuller, e “A Última Sessão de Cinema” (1971), de Peter Bogdanovich.

Para Daniel Aragão, a música é poderosa fonte de inspiração. “A música gera em mim pontos de vista enigmáticos, emotivos, subjetivos e poéticos. Penso nos personagens através dela”, explica Daniel, que se confessa um músico frustrado. “Não toco nenhum instrumento. Pensei em comprar um piano, mas aí deixaria de ser um músico frustrado e perderia a angústia que me move”, constata. Daniel tem mais dificuldade em detectar referências específicas nesse campo. “Sou colecionador. Tenho cinco mil discos. Deixo que conversem comigo. Às vezes, escolho aleatoriamente”, sublinha o diretor, fã, em todo caso, da banda Steely Dan.

A construção do filme

O envolvimento com os diversos quesitos do filme levanta a suspeita de que Daniel não ficou restrito à função de cineasta. A desconfiança faz sentido. “Devo ter feito 50% da câmera. Para mim é algo natural. Não penso em me tornar um técnico. Filmo cenas em que me afasto de um padrão de segurança. Basta dizer que há sequências em que fiz um único take”, assume.

Antes de “Boa Sorte, meu Amor”, assinou alguns curtas-metragens: “A Conta-Gotas” (2006), “Uma Vida e Outra” (2007), “Solidão Pública” (2008) e “Não me Deixe em Casa” (2009). Sua carreira começou pouco antes, com a citada experiência em “Cinema, Aspirinas e Urubus”. “A produtora Nara Aragão me chamou para trabalhar com Marcelo Gomes. Até então, eu tinha feito um curta em VHS, “Cinema Pornô e Outras Não Formações Congênitas”, que passou no Mix Brasil”, informa.

Hoje, Daniel faz parte da nova e promissora leva de cineastas pernambucanos. Nas produções desses realizadores, Recife desponta como personagem fundamental. Em “Boa Sorte, meu Amor”, não é diferente. “Não conseguiria fazer um filme hoje que não se passasse no Recife. Por mais que Lírio Ferreira diga que diretor não tem CEP, eu preciso me descobrir na minha cidade”, garante Daniel, que sempre morou em Recife.

O encanto não o impede de perceber as mazelas da cidade. “Comprava discos de vinil no centro. Eu me deparava com a pobreza. Você vê muita gente sem rumo por lá. E todos têm um passado que fico com vontade de descobrir. O contraste social continua presente, mesmo que a situação esteja melhorando. As pessoas progridem financeiramente. Por outro lado, se mostram mais vazias”, diagnostica. Daniel chama atenção para mazelas existenciais que identifica como próprias da cidade. “É marcante a tentativa de se deslocar de um lugar para o outro, o desejo de deixar de ser uma coisa para se tornar outra. Entretanto, as pessoas tendem a evitar falar sobre os assuntos polêmicos. Fazem coisas erradas e abafam, como na época do coronelismo”, compara.

Na esfera prática, a situação na área de cultura ainda não é fácil. “Ganhar dinheiro com cultura é complicado. Se a pessoa escolhe ser cineasta no Recife, provavelmente, brigará em casa. A família tende a querer que o jovem seja advogado ou médico. Por outro lado, o governo está dando R$ 12 milhões por ano para o cinema. É uma luta antiga de Lírio Ferreira e de Cláudio Assis”, revela Daniel, que deu partida à carreira de “Boa Sorte, meu Amor” no exterior. Basta dizer que o filme já foi exibido em Locarno, Amsterdã e Montreal. No dia 9 de novembro abrirá a Janela Internacional de Cinema do Recife. Daniel deseja que desembarque nos cinemas brasileiros em março de 2013. Enquanto isso, inicia um novo projeto. “Tenho um roteiro com Gregorio (Graziosi) sobre a relação de uma personagem com a cidade (Recife). Voltarei abordar a inadequação com o espaço, a sensação de falta de pertencimento a um lugar”, anuncia.

 

Por Daniel Schenker

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