O dia em que o cinema baiano chorou
Difícil medir a perda de uma pessoa tão atuante, culta e eclética quanto o crítico de cinema baiano João Carlos Sampaio, que morreu de enfarte aos 44 anos de idade. João era o legítimo herdeiro do legado cinéfilo de Walter da Silveira, o grande crítico baiano dos anos 60 que, com seus artigos e debates, criou em Salvador o meio ambiente que propiciou o surgimento de Glauber Rocha. Disse isso a ele uma vez e ele respondeu “Ôxe Lyra, obrigado, mas eu não tenho essa envergadura. O Walter formou gerações, promovia debates, foi um cara histórico, fundamental para o cinema baiano”.
“Modéstia sua à parte, João, você tem sim”, gostaria de poder dizer hoje, enquanto enxugo minhas lágrimas. Ele era imprescindível para o assistir e o fazer cinema baiano. Em suas aulas, palestras e debates, João ajudou a formar público, a semear cinema. Faria isso por mais algumas décadas se o coração não o traísse, e é essa a maior perda. Eu o imaginava velhinho, dando aulas em universidade, ensinando às novas gerações tudo o que aprendeu.
Para além de ser amigo pessoal, eu admirava muito o João. Não apenas por ser uma pessoa generosa, inteligente, gregária, divertida, espirituosa, capaz de frases e tiradas geniais. Admirava João por sua determinação. Nasceu pobre, numa pequenina cidade do sertão baiano, Aratuípe. Seu destino seria se tornar um simpático motorista de caminhão, pedreiro ou um gerente de supermercado em sua cidade, destino de vários de seus colegas da escola primária, segundo ele mesmo me contou certa vez.
Mas João, como um atacante do Vitória, seu time do coração, driblou o destino. Mudou-se para Salvador e, com um pouco de sorte, conseguiu uma bolsa de estudos num colégio de elite. Era o único com trajes surrados onde todos usavam roupas e tênis da moda. Em compensação, tinha algo mais valioso do que qualquer riqueza: era inteligente, de raciocínio rápido, gentil e afável, tudo embalado por sua eterna simplicidade. Formou-se em jornalismo em 1995 e, depois de uma rápida passagem pelo extinto jornal “Bahia Hoje”, chegou à redação de “A Tarde”, onde se consagraria.
João sempre leu muito e tinha um interesse diversificado. Conhecia quadrinhos como poucos, futebol como raros, música como nenhum outro e cinema mais que qualquer um. Isso obviamente se refletia nos textos. Basta dar um Google para conferir que sua maneira de escrever sobre cinema aliava simplicidade com sagacidade e erudição. Muitos críticos adoram mostrar erudição, o que só serve para o próprio ego e torna os textos herméticos. Com ele, era o contrário. Qualquer pessoa, mesmo sem ser cinéfila, entende as ideias do João. Isso é uma qualidade rara.
Nos debates e palestras, ele sabia falar com simplicidade e bom humor, o que também é privilégio de poucos. Era o cara ideal para mediar debates. Tinha muito carisma e cativava as plateias com simpatia e raro poder de síntese. Não assisti as aulas dele, eu que gosto de assistir aulas de colegas para aprender diferentes técnicas de ensino. Mas imagino que não devia ser muito diferente dos debates.
Em festivais de cinema, era uma presença indispensável, e ele cobria muitos. Costumava dizer que passava mais tempo viajando do que em seu apartamento em Salvador e por onde passava, deixava amigos queridos. Nas salas de cinema ou debates, e também nos almoços, jantares e cafés da manhã, sentar ao seu lado era garantia de sair contagiado por seu espírito leve e alegre. Por sinal, esses lugares eram disputados, já que João era uma das pessoas mais queridas do meio.
Sua morte prematura é uma perda inestimável para os colegas, mas ainda muito mais para a cultura baiana. Futuros jornalistas e cinéfilos ficaram órfãos, e nunca vão ter a dimensão da enorme perda que tiveram. Certamente, seria um ótimo professor universitário, daqueles que se tornam inesquecíveis para os alunos. Eu que, como inúmeros colegas, tive o privilégio da sua amizade, posso garantir: é como se uma cinemateca, um museu e uma biblioteca tivessem pegado fogo. Uma perda para chorar.
Ah, sim, e o mínimo que espero das pessoas ligadas à cultura em Salvador é a publicação de um livro com as melhores críticas de cinema do João.
Por Marcelo Lyra